
É necessário reafirmar a centralidade do conselho como instância legítima e legal para conduzir a política energética nacional
A formulação da política energética de um país é uma tarefa de alta complexidade política e estratégica, que demanda conhecimento aprofundado sobre geopolítica, segurança nacional, economia industrial, inovação tecnológica, defesa da soberania brasileira, mudanças climáticas e as necessidades de desenvolvimento da sociedade.
No Brasil, essa tarefa é, por desígnio constitucional e legal, de competência do Poder Executivo federal, exercida de forma coordenada entre o MME (Ministério de Minas e Energia) e seus órgãos de assessoramento e execução, entre os quais o mais importante, que é o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética).
O CNPE foi criado pela lei 9.478 de 1997, que instituiu a chamada Lei do Petróleo, e é responsável por estabelecer as diretrizes da política energética nacional. Sempre orientado pelos princípios da preservação do interesse nacional, da promoção do desenvolvimento sustentável, da expansão das fontes renováveis e da garantia da segurança do abastecimento.
A centralidade do CNPE decorre justamente de seu desenho institucional: ele reúne 11 ministros de Estado das áreas mais sensíveis ao tema –como Fazenda, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia e Relações Exteriores, da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e da EPE (Empresa de Pesquisas Energéticas)— sob o comando do presidente da República.
É, portanto, um conselho de natureza interministerial, com visão transversal e capacidade de articular diferentes dimensões das necessidades de energia do país, seja ela de eletricidade, de combustíveis fósseis, de biocombustíveis ou nuclear. Sua função é eminentemente estratégica.
Cabe ao CNPE, por exemplo, aprovar a inclusão de blocos exploratórios em leilões de petróleo, definir políticas de conteúdo local, orientar metas de expansão da matriz energética e dirimir conflitos entre diferentes setores e visões do Estado sobre o aproveitamento dos recursos naturais.
O CNPE foi palco de embates memoráveis –eu estava com diretor da ANP à época e acompanhava nas lutas o saudoso Haroldo Lima ou a competente Magda Chambriard, hoje presidente da Petrobras– como a definição do regime de partilha, em contraste com o modelo de concessão ou a criação da Pré Sal Petróleo (PPSA), além das regras para conteúdo local.
A decisão de destinar parte dos royalties do pré-sal para educação e saúde, por exemplo, foi uma vitória política, mas também um reconhecimento de que a riqueza produzida pelo petróleo precisava ser convertida em desenvolvimento estrutural, já que sabíamos que o Brasil é um país pobre, necessitado que era –e é– dos recursos dos combustíveis fósseis para a sua sobrevivência por décadas.
No entanto, nos últimos anos, tem-se observado uma desarticulação preocupante dessa arquitetura institucional.
O que deveria ser uma diretriz coordenada pelo CNPE, com apoio técnico da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), da ANP e de outras instituições públicas, tem cedido espaço a decisões fragmentadas e muitas vezes de profundo conteúdo ideológico, determinadas por órgãos infralegais que não têm como missão nem atribuição legal a formulação de política energética.
Entre eles, destaca-se o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, cuja competência é fiscalizar e licenciar atividades potencialmente poluidoras, à luz das normas ambientais estabelecidas pelo Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente).
É evidente, por exemplo, que alguns pareceres extrapolam as competências daquele órgão, quando se posiciona formalmente sobre a política energética nacional, como:
-“Cabe, portanto, ressaltar a latente necessidade de se avaliar, previamente à execução de atividades de perfuração exploratória, o quanto a inserção da cadeia de petróleo e gás é compatível com as demais vocações econômicas e ecológicas na região. Em uma perspectiva ainda mais ampla, caberia ainda ao governo brasileiro avaliar a pertinência da expansão de um novo polo produtor de hidrocarbonetos” (Parecer Técnico 128 de 2023-Coexp/CGMac/Dilic);
-“a ausência de consulta pública destes temas (como a política energética) com a sociedade, em fóruns específicos e apropriados, faz o tema surgir corriqueiramente no âmbito dos processos de licenciamento ambiental, especialmente em audiências públicas e outros espaços de consulta.” (Parecer Técnico no 223 de 2024-Coexp/CGMac/Dilic).
O Ibama desempenha um papel fundamental na proteção do meio ambiente e no desenvolvimento sustentável do Brasil, seja atuando em decisões de licenciamento ambiental ou em ações fiscalizatórias imprescindíveis para o Brasil.
No entanto, é importante recordar que sua função é, como definido na lei 6.938 de 1981, que define a Política Nacional do Meio Ambiente, em proteger e preservar a qualidade do meio ambiente, exercendo o poder de fiscalização ambiental. Além do decreto 8.973 de 2017, que regulamenta parte de sua atuação, reitera que ela deve se dar dentro do campo da análise ambiental, com foco na emissão de licenças, autorizações e sanções administrativas.
Ao CNPE, portanto, cabe o protagonismo na definição sobre onde, como ou quando o país deve explorar petróleo, expandir sua infraestrutura de gás ou instalar novos empreendimentos energéticos estratégicos. Tais definições exigem avaliação de oportunidade econômica, impacto geopolítico, defesa da soberania e interesse nacional, temas que escapam à missão institucional do licenciamento ambiental.
É importante que o CNPE retome seu protagonismo no desenvolvimento nacional e que declare a Margem Equatorial como um investimento fundamental para o país.
A Petrobras descobriu o pré-sal, a 4 km, 5 km, 6 km ou mais de profundidade quando o planeta pesquisava majoritariamente a algumas centenas de metros. Repetiu a ousadia brasileira da Embraer, que construiu aviões quando o Brasil não fabricava nem bicicletas.
Historicamente, foi no pré-sal que o CNPE demonstrou seu papel mais decisivo. A descoberta daquelas reservas, na década dos anos 2000, colocou o Brasil no centro do mapa energético mundial, mas também acirrou disputas sobre como explorar essa riqueza.
O debate, portanto, não deve ser colocado como uma oposição entre desenvolvimento e sustentabilidade, mas como um imperativo de coordenação institucional, no qual o CNPE desempenha o papel de articulador entre os diferentes interesses do Estado brasileiro.
A estrutura legal que fundamenta o CNPE, reforçada pelo decreto 2.455 de 1998, posteriormente pelo decreto 9.308 de 2018, depois pelo decreto 9.888 de 2019 e por sucessivas resoluções e pareceres do TCU (Tribunal de Contas da União), deixa claro que a política energética deve ser definida por critérios estratégicos, econômicos, sociais e e ambientais considerados de forma integrada.
A resolução CNPE 1 de 2020, por exemplo, estabeleceu diretrizes para a expansão do setor de gás natural, determinando inclusive ações coordenadas com o Ibama para otimizar o processo de licenciamento, sem que isso significasse a transferência da formulação de políticas ao órgão ambiental. O mesmo se dá com as resoluções sobre o pré-sal e as metas de descarbonização, que envolvem a Secretaria de Clima e Meio Ambiente, mas que continuam sob a égide do CNPE.
A fragmentação decisória entre órgãos de diferentes naturezas e missões, como ocorre atualmente, compromete a previsibilidade regulatória, afasta investimentos e acirra conflitos entre setores do Estado que deveriam atuar em sinergia. Portanto, é necessário reafirmar a centralidade do CNPE como instância legítima e legal para conduzir a política energética nacional.
Allan Kardec Duailibe Barros Filho, 55 anos, é doutor em engenharia da informação pela Universidade de Nagoya (Japão). É professor titular da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Foi diretor da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e atualmente é presidente da Gasmar (Companhia Maranhense de Gás). Escreve para o Poder360 mensalmente aos domingos.
Reproduzido do Poder 360