WALTER NEVES
MARIA HELENA SENGER
Núcleo de Popularização dos Conhecimentos sobre
Evolução Humana do Instituto de Estudos Avançados – USP
Muitos vegetarianos justificam sua opção alimentar usando como base a afirmação de que nós evoluímos para comer vegetais e não carne. Pretendemos demonstrar neste artigo que o vegetarianismo não tem qualquer base evolutiva entre os humanos.
Nossos parentes mais próximos na natureza, os chimpanzés, são basicamente herbívoros. Grande parte de sua alimentação vem de frutas, altamente calóricas. Entretanto, entre 5 e 15% de sua dieta inclui também proteína animal, que é obtida através da “caça” de pequenos animais, como répteis, roedores e macacos menores. Eles, simplesmente, não dispõem de tecnologia para de fato caçar animais de médio e grande porte.
Nós repartimos com o chimpanzé um ancestral comum que viveu por volta de 7,5 milhões de anos. Esse ancestral, pelo que tudo indica, também não possuía tecnologia para caçar ativamente animais de médio e grande porte. Assim, sua alimentação deve ter sido muito similar à dos chimpanzés de hoje.
Assim como nossos parentes mais próximos ainda vivos, esses nossos primeiros ancestrais tinham cérebro pequeno, entre 350 e 450 cm3, portanto um terço do nosso. O cérebro é um órgão muito caro e consome entre 20 e 30% de toda a caloria que ingerimos diariamente para se manter ativo. Assim, é impossível manter um cérebro grande sem o aporte de proteína animal, que é a maior fonte de energia disponível na natureza, principalmente a gordura a ela associada.
Interessantemente, no registro paleontológico, os primeiros cérebros grandes, com cerca de 700 cm3 surgiram por volta de 2,5 milhões de anos, exatamente quando aparecem as primeiras ferramentas de pedra lascada para processar carne. Essas ferramentas eram muito simples, constituídas apenas de lascas naturalmente afiadas que eram produzidas batendo-se, de forma controlada, uma pedra numa outra. Geralmente a primeira era mais densa e dura que a segunda. Os chimpanzés são incapazes de fazer isso.
Portanto, as primeiras ferramentas não eram propriamente armas de caça. Não havia, por exemplo, pontas nessa época. Mas as lascas cortantes nos permitiram uma grande inovação e a exploração de um novo nicho: processar carniças deixadas pelos grandes felinos nas savanas africanas. Assim, com esse comportamento de carniceiro, nossos ancestrais foram capazes de aumentar significativamente o aporte de proteína animal na dieta, porque agora eram capazes de desmembrar e descarnar cadáveres frescos de animais como zebras, gnus, veados, girafas, etc.
Não muito depois disso, nossos cérebros aumentaram para cerca de 850cm3. Não é que a exploração de carniças pressionou a fixação de cérebros maiores, ao contrário. Cérebros maiores, pressionados por outros agentes seletivos, só puderam ser fixados na nossa linhagem porque agora consumíamos calorias suficientes para mantê-los.
Hoje em dia, a ingestão de carne por parte dos poucos grupos de caçadores-coletores ainda sobreviventes (muitos deles desapareceram completamente nos últimos 4 anos em virtude da política de extermínio indígena perpetrada pelo governo Bolsonaro) varia de ambiente para ambiente.
Entre os esquimós, por exemplo, ela representa quase 100% do consumo de alimentos. Entre os Kung do deserto do Kalahari, na Namíbia, que vivem num ambiente extremo, a ingestão de proteína animal oscila em torno de 30%, ao passo que caçadores-coletores de florestas tropicais, incluindo a Amazônia, onde o extermínio indígena bolsonarista foi especialmente cruel, ingerem cerca de 50% de sua alimentação oriunda de carne de animais de médio e grande porte. Em todos eles, a gordura é a alimentação preferida, como não poderia deixar de ser. Mas essas populações caçam ativamente, porque dispõe de tecnologia para tanto.
A pergunta que se faz, portanto, é: quando, no passado pré-histórico, começamos a caçar grandes mamíferos, incluindo aí a megafauna?
A resposta a essa pergunta ainda se encontra em aberto, mas, evidências arqueológicas recentes parecem indicar que esse comportamento começou por volta de 2 milhões de anos, com o surgimento dos primeiros representantes do gênero Homo, notadamente o Homo erectus.
É com essa espécie que surgem, por volta de 1,7 milhão de anos, as primeiras ferramentas que poderiam ser usadas, com certa liberdade poética, para a caça ativa de grandes mamíferos. Eles também viviam em grupos maiores que os dos seus antecessores, o que facilitaria a caça coletiva.
Um estudo recente efetuado em sítios africanos desse período mostrou que há uma coincidência entre o surgimento dessa espécie e dessas ferramentas e a extinção de alguns herbívoros e carnívoros nas savanas africanas. Os primeiros podem ter se extinguido por predação direta, ao passo que os últimos, por concorrência pelos mesmos recursos. Se isso se confirmar, estaríamos diante do primeiro exemplo de impacto ambiental significativo causado por nossa linhagem evolutiva, que só fez crescer ao longo do tempo, chegando à extinção em massa que estamos causando hoje.
Ocorre que outros estudos têm indicado o contrário, ou seja, que o Homo erectus e que as ferramentas por eles feitas não causaram grande impacto na paisagem. Ou seja, que esses nossos ancestrais ainda viviam também da exploração de carniça, atividade de baixo impacto.
O fato é que as primeiras pontas de pedra que poderiam ser usadas em lanças ou arpões só surgiram no registro arqueológico por volta de 350 mil anos com outro ancestral nosso, o Homo heidelbergensis.
Entretanto, não é impossível que antes disso, nossos ancestrais tenham feito lanças de madeira, usando apenas lascas afiadas para isso, que, como vimos, já existiam desde 2,5 milhões de anos. Infelizmente a madeira não se conserva em sítios tão antigos e, provavelmente, nunca teremos uma resposta direta para isso.
De qualquer forma, continuar investigando o grau de impacto ambiental associado a cada grande inovação tecnológica que fizemos ao longo da evolução de nossa linhagem, parece ser uma estratégia bastante promissora para respondermos à pergunta de um milhão de dólares: quando começamos a caçar ativamente grandes animais? E mais ainda: quando essa caça ativa ultrapassou os limites da sustentabilidade? Se é que isso de fato ocorreu entre sociedades de pequena escala.
Sobre a proteína dos peixes.
Como elas se encadeia na formação dos seres humanos com cerebros com maiores dimensões?