O economista José Luis Oreiro, professor da UnB, responde a sua pergunta negativamente. Ele afirma que “se a curva de juros da economia brasileira tem “imbicado” para cima nas últimas semanas, isso não se deve a pressão do desequilíbrio fiscal sobre a estrutura a termo das taxas de juros; mas à inoperância do Banco Central do Brasil que não tem atuado, com todos os instrumentos que dispõe, para resolver um problema que é, basicamente, de liquidez no mercado de títulos da dívida pública”.
Segundo o economista, “desde a crise financeira internacional de 2008 a dívida pública como proporção do PIB nos países desenvolvidos se ampliou de forma considerável; mas esse movimento foi seguido por uma redução sem precedentes nas taxas de juros nominais dos títulos da dívida pública desses países, sendo que, em alguns casos, as taxas de juros na maturidade alcançaram valores nominais negativos”. Reproduzimos a seguir o artigo.
O desequilíbrio fiscal pode levar a um aumento da taxa de juros?
José Luís Oreiro
Em matéria vinculada recentemente na grande mídia um dos diretores do Banco Central do Brasil afirmou que o quadro macroeconômico de inflação baixa e juros baixos está condicionado à estabilidade do quadro fiscal. Uma deterioração adicional das contas públicas – por exemplo, devido a “flexibilização’ do teto de gastos – poderia levar a um aumento das expectativas de inflação, obrigando o BCB a abandonar a política monetária estimulativa mesmo numa situação de elevado nível de ociosidade dos fatores de produção. Outros economistas alegam, além disso, que o desequilíbrio fiscal atual da economia brasileira – manifestado na expectativa de um déficit primário superior a 10% do PIB para o ano de 2020 – já estaria tendo efeitos negativos sobre a taxa de juros de longo-prazo dos títulos públicos. O argumento é que a elevação da dívida pública para valores próximos a 100% do PIB no final de 2020 estaria produzindo um aumento do prêmio de risco sobre os papéis mais longos e, dessa forma, elevando a taxa de juros de longo prazo, mesmo num contexto de elevada ociosidade dos fatores de produção.
Mas será mesmo que a estrutura a termo da taxa de juros, ou seja, a relação entre a taxa de juros anual obtida sobre um título da dívida pública quando carregado até o seu prazo de vencimento e a maturidade do título tem alguma relação com a situação fiscal de uma economia como a do Brasil?
Se olharmos o que passa fora do Brasil, a resposta a essa pergunta parece ser negativa. Com efeito, desde a crise financeira internacional de 2008 a dívida pública como proporção do PIB nos países desenvolvidos se ampliou de forma considerável; mas esse movimento foi seguido por uma redução sem precedentes nas taxas de juros nominais dos títulos da dívida pública desses países, sendo que, em alguns casos, as taxas de juros na maturidade alcançaram valores nominais negativos.
Quando olhamos para a história recente do Brasil, a grande recessão de 2014 a 2016 deixou como legado a taxa de juros de curto-prazo, a taxa Selic, no seu valor mais baixo da história, mesmo antes de começarem os efeitos da Pandemia do Covid-19. Deve-se observar também que entre 2017 e 2019 o Brasil não obteve nenhum avanço significativo no resultado primário das contas públicas, o qual permaneceu deficitário durante todo esse período. Ocorreu sim uma redução significativa do déficit nominal do setor público, resultado do processo “lento, gradual e seguro” de redução da taxa Selic iniciada pelo BCB no final de 2016.
Os economistas ortodoxos dirão que essa redução só foi possível pela (sic) aprovação da EC 95 do “Teto de Gastos” a qual mudou as expectativas do mercado financeiro sobre a “solvência intertemporal” das contas públicas. Não concordo com essa visão. Com efeito, a redução da Selic ocorrida desde 2016 foi possível devido a persistência de um elevado grau de ociosidade dos fatores de produção – ou, na linguagem dos economistas, um elevado hiato do produto – o qual fez com que a inflação média no período 2017-2019 ficasse muito abaixo da meta de inflação para o mesmo período.
Mas retornemos a questão inicial: como a estrutura a termo das taxas de juros é determinada? A taxa de juros de curto-prazo é determinada pelo Banco Central por intermédio das operações de mercado aberto. Como o Banco Central tem o monopólio legal da emissão de meio circulante, segue-se que ele pode fixar o preço do dinheiro no patamar que ele achar mais conveniente. Esse patamar será determinado pelos objetivos da política monetária – que no caso Brasileiro é manter a inflação dentro das metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional – mas o regime de metas de inflação confere um grau razoável de discricionariedade na fixação desse valor. Em outras palavras, o atendimento da meta de inflação pode ser compatível com valores diversos da taxa Selic, a depender das preferências dos membros do Copom. O comportamento da inflação entre 2017 e 2019 nos sugere que o Banco Central adotou uma política monetária menos estimulativa do que a situação macroeconômica exigia.
E a taxa de juros de longo-prazo? O Banco Central pode atuar para reduzir a taxa de juros dos títulos de longo-prazo? Para responder a essa pergunta temos que entender como essa taxa é determinada. A teoria mais aceita sobre os determinantes da taxa de juros de longo-prazo é a teoria das expectativas da estrutura a termo da taxa de juros. Segundo essa teoria, a taxa de juros na maturidade de um título longo, por exemplo, um título com vencimento em 2030, será igual a média (geométrica) do valor da taxa de juros de curto-prazo (a Selic) em 2020 e das expectativas formadas em 2020 a respeito dos valores da taxa Selic de 2021 até o vencimento do título em 2030. Sendo assim, a taxa de juros de longo-prazo reflete apenas as expectativas que o mercado financeiro tem a respeito do comportamento do Banco Central entre 2020 e 2030. Se o Banco Central sinalizar para o mercado financeiro uma preocupação menor com a inflação no médio prazo e uma maior preocupação com o nível de atividade econômica; então é provável que as expectativas sobre o valor futuro da taxa de juros de curto-prazo sejam revistas para baixo, reduzindo assim a taxa de juros de longo-prazo. Já se a sinalização do Banco Central for no sentido de uma preocupação maior com a inflação teremos o resultado oposto.
E onde entre o fator risco na determinação da taxa de juros longa? Para responder a essa pergunta temos que ter clareza sobre que tipo de risco estamos falando. Quando um governo emite dívida na sua própria moeda não existe, por definição, risco de inadimplência ou de default. Isso porque o Tesouro e o Banco Central são instituições que pertencem ao Governo Central e, em última instância, o Banco Central pode emitir base monetária para comprar os títulos da dívida emitidos pelo Tesouro Nacional. O risco que importa no caso da determinação da taxa de juros de longo-prazo é o risco de perda de capital caso o agente seja forçado a vender o título antes de seu prazo de maturidade. Esse risco é, na verdade, um risco de iliquidez, ou seja, de se ver forçado a uma realização antecipada do ativo, convertendo-o em meio de pagamento.
A taxa de juros de longo-prazo, portanto, é determinada pela média (geométrica) do valor da taxa de juros de curto-prazo (a Selic) no momento atual e das expectativas formadas hoje a respeito dos valores da taxa Selic de 2021 até o vencimento do título, acrescida do prêmio de liquidez exigido pelos compradores de títulos públicos para manter títulos longos ao invés de títulos curtos na sua carteira. Sendo assim, o Banco Central pode reduzir a taxa de juros de longo-prazo de duas formas. Em primeiro lugar, sinalizando para o mercado financeiro uma preocupação maior com o nível de atividade econômica do que com a inflação num cenário em que a economia brasileira deverá operar, por vários anos com um elevado nível de ociosidade dos fatores de produção. Esse é o instrumento chamado de forward guidance. Em segundo lugar, o Banco Central pode intervir diretamente na estrutura a termo da taxa de juros comprando títulos de longo-prazo no mercado secundário e financiando essa compra com a venda de títulos de curto-prazo, mantendo assim a liquidez total da economia inalterada (e assim a taxa de juros Selic), mas diminuindo a oferta de títulos de longo-prazo relativamente aos títulos de curto-prazo. Como títulos curtos e títulos longos são substitutos imperfeitos entre si, tal operação, denominada de operação twist, deverá reduzir a taxa de juros de longo-prazo relativamente a taxa de juros de curto-prazo. Deve-se observar também que esse expediente foi explicitamente permitido pela EC do orçamento de guerra.
Se a curva de juros da economia brasileira tem “imbicado” para cima nas últimas semanas, isso não se deve a pressão do desequilíbrio fiscal sobre a estrutura a termo das taxas de juros; mas a inoperância do Banco Central do Brasil que não tem atuado, com todos os instrumentos que dispõe, para resolver um problema que é, basicamente, de liquidez no mercado de títulos da dívida pública. Resta saber porque o BCB tem sido omisso nessa questão. Dada a composição da atual diretoria do BCB não é possível descartar a hipótese que a omissão seja motivada por razões de ordem puramente ideológica: uma intervenção na ponta longa da curva de juros, ao reduzir rapidamente as taxas de juros de títulos de maior prazo de maturidade, revelaria que o “desequilíbrio fiscal” atual pode ser perfeitamente administrado e até mesmo ampliado, dada a enorme ociosidade no uso dos fatores de produção existente na economia brasileira. Nesse caso, Milton Friedman teria que dar lugar a John Maynard Keynes como fonte de inspiração para a condução da política econômica no Brasil.