O 2 de Julho é a data em que se comemora a independência do Brasil na Bahia, este ano sem o tradicional desfile popular pelas ruas do centro histórico de Salvador. Pela data, reproduzimos aqui uma resenha do jornalista José Antonio Severo, sobre o livro do historiador e escritor pernambucano Joel Rufino dos Santos, “O dia em que o Povo Ganhou”. O texto foi publicado originalmente no blog Bonifácio
JOSÉ ANTÔNIO SEVERO (*)
A Guerra da Independência da Bahia, um conflito armado que durou entre 15 de fevereiro de 1822 e 2 de julho do ano seguinte, é o mais expressivo e movimentado episódio dos eventos que pontilharam os tempos finais do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, que levaram ao esfacelamento político do império lusitano com a separação da colônia americana, transformado, na América do Sul, no Império do Brasil.
Esse acontecimento singular é mostrado em sua extensão popular no livro “O Dia em que o Povo Ganhou”, do historiador e acadêmico Joel Rufino dos Santos (1941-2015), com primeira edição em 1979, como parte da coleção Retratos do Brasil da Editora Civilização Brasileira.
A Independência do Brasil, como os historiadores costumam chamar as jornadas de 22/23, é, de fato, a construção de uma unidade política de territórios que vieram a formar um império que, depois, levou à atual República Federativa do Brasil, sua soberania sobre esses mais de oito milhões de quilômetros quadrados que, hoje em dia, configuram a quarta maior nação do mundo, geograficamente contínua.
A aqui chamada Guerra da Independência foi uma sucessão de conflagrações políticas e, eventualmente, militares de um processo que redundou numa convergência, pois, aqui e ali, espalhando-se por todos os domínios da colônia, de Belém a Montevidéu, de norte a sul.
O apoio mútuo entre essas partes foi a única forma encontrada para atingir os objetivos de compor interesses dispersos desse estado em fragmentação. A ação conjunta contra o colonizador desenvolveu-se e aconteceu porque nenhuma das unidades federadas teve força para se separar sozinha, por seus próprios meios. Com diz o ditado: a união fez a força, mesmo a contragosto, em alguns desses lugares.
No meio da refrega, ameaçadas pela melhor articulação política das forças da metrópole europeia, as províncias foram levadas a uma articulação precária entre elas, mas que foi eficiente para enfrentar o igualmente precário governo que se formava em Lisboa. Os europeus tentavam rearticular o antigo império português desfeito, como muitos outros na Europa, pela avalanche provocada pela Revolução Francesa na sua fase internacionalista pelo imperador Napoleão Bonaparte.
O livro Ficou um tanto esquecido justamente porque não contempla a tese politicamente correta de que aqueles acontecimentos seriam manipulações dos interesses dominantes, e assim desqualificados como legítimas lutas populares. Joel respalda sua tese num fato insofismável: a única festa verdadeiramente popular comemorativa da Independência do Brasil é o 2 de julho da Bahia. Nenhum povo passaria dois séculos a comemorar uma farsa. Vale a pena conferir.
Esse livro conta o episódio do Recôncavo Baiano. Uma narrativa viva e quase romanceada, como os acontecimentos demandam de um escritor sensível, mas também com a transcrição de documentos. “O Dia em que o Povo Ganhou” é uma obra que revolve as entranhas do movimento pela independência do Brasil, pois consegue alcançar aqueles momentos em todos os seus segmentos sociais e políticos. Fala das elites comerciais e agrárias, dos comerciantes pequenos, médios e nos escravos de ganho, nos militares, políticos, clero, ilhéus e interioranos, combatentes em todas as frentes, em terra e mar. A Bahia de Joel sintetiza muito bem todos esses aspectos e narra completamente aqueles momentos.
Como nenhuma outra obra sobre a grande crise que levou à dissolução do gigantesco império português e, logo em seguida, como consequência, a conformação do Brasil num único império, o livro de Joel Rufino mostra passo a passo como se formou essa corrente de opinião, que levou às resistências armadas e posterior definição de um País unitário num continente fatiado, os hispânicos em duas dezenas de países (contando com América Central e Caribe, e os anglos em Estados Unidos e Canadá).
A unidade brasileira foi uma obra de engenharia política construída aproveitando as sinergias de grandes movimentos sociais que se processavam no País, quais sejam: a corrente de formação dos estados-nação que, em segundo lugar, criou e identificou a nacionalidade brasileira. Ao impedir a fragmentação, que estava em curso pelo projeto de constitucionalização de Portugal, surge no meio do processo a grande figura, José Bonifácio de Andrada e Silva, o líder da ocasião, com todas as características de estadista completo, e consegue, aproveitando da legitimidade do Príncipe herdeiro do trono português, Pedro de Alcântara, contornar obstáculos institucionais e regionais, tirando, ao final, dessa confusão, uma unidade geográfica que, até hoje, ainda luta por uma integração completa.
A participação do povo, no sentido que hoje tem essa palavra, determinou a configuração política do levante na Bahia, e também em outras províncias, tanto nas que se decidiram rapidamente, sem enfrentamentos armados, como São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ou naquelas em que, mesmo sob grandes tensões, os independentistas se impuseram à força ou politicamente, como Pará, Pernambuco, Ceará e, mais fortemente, Rio de Janeiro e Bahia. Numa única província, a Cisplatina, os locais apoiaram decididamente os portugueses. No final, os então configurados como brasilianos foram vencidos política e militarmente, pois a tropa europeia abandonou a praça. Logo surgiram movimentos secessionistas e o Uruguai acabou por se converter em um país independente.
A Guerra da Independência da Bahia não foi um ato isolado na História do Brasil. Pelo contrário, esse levante fazia parte de uma sucessão de movimentos no sentido da autonomia e era produto de um amadurecimento político nesse sentido, inspirado na independência da colônia dos Estados Unidos da América e, na ideia de estado constitucional, na Revolução Francesa, a chamada francesia.
O primeiro episódio foi em Vila Rica (atual Ouro Preto), a chamada Inconfidência Mineira, em 1789. Dez anos depois, em 1798, houve a Conjuração Baiana (revolta dos alfaiates), em Salvador, que o historiador Joel coloca como origem desse processo que desembocou no conflito com Lisboa.
A guerra da independência também tinha Inspiração na Revolução Pernambucana de 1817 (os líderes sobreviventes estavam presos em Salvador, inclusive Antônio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio). Integrou-se com os movimentos do Sudeste, de afirmação da Regência e posterior separação do Reino Unido. No lado português, havia uma tropa de infantaria aquartelada em Salvador e uma armada para sustentar o governo das Cortes Constituintes de Lisboa.
De início, a questão da independência não era central, pois, de fato, o Brasil já era um reino política e economicamente autônomo. Tinha relações internacionais próprias, comércio exterior, sistemas institucionais (Justiça, Legislativo e Executivo) e até bandeira. Em comparação com nossos dias, seria (décadas antes) como Canadá, Austrália e Nova Zelândia na comunidade Britânica. Portanto, foi com entusiasmo que a Revolução do Porto, com seu ideário constitucionalista, chegou à maior parte do meio político brasileiro e baiano, mesmo pelos adeptos do antigo absolutismo, em fase de restauração, que admitiam, embora a contragosto, mas sem hostilidade aberta, a limitação dos poderes do Rei por uma Carta magna nos moldes contemporâneos.
Entretanto, os constitucionalistas das cortes decidiram cortar as asas do Brasil. A proposta dos parlamentares era constituir uma federação de províncias, onde o País não mais teria um governo central, mas cada província respondendo separadamente para Lisboa. Foi essa ameaça que resultou no golpe da independência, com a adesão de outras províncias, num projeto político costurado por José Bonifácio.
Na Bahia o levante caracterizou-se por sua motivação puramente nacionalista. Foi uma demanda de todas as camadas da população, quando perceberam que não obstante motivação constitucionalista das cortes, sem embargo dos avanços que conteriam as propostas dos parlamentares de Lisboa, a simples ideia de uma subordinação a Portugal foi o que levantou a totalidade da população da província.
Joel Rufino soube captar esse fato central, que não aparecia, até então, na historiografia sobre a Independência do Brasil. Daí o título do livro. Além de seu conteúdo como obra de referência histórica, destaca-se que o autor produziu uma narrativa isenta, nos melhores padrões da historiografia internacional contemporânea, o que é relevante nesse tempo. Joel Rufino teria muitas razões para deixar contaminar sua obra pelos estímulos ideológicos da época da redação do livro, quando a História passou a ser adulterada por visões hoje ditas anacrônicas, ou seja, sua interpretação à luz dos tempos presentes dos escritores, ignorando a realidade das épocas dos acontecimentos.
Como tantos jovens acadêmicos de seu tempo, ele militou em movimentos de esquerda, foi preso pela polícia política (embora não estivesse vinculado à luta armada contra o regime militar), refugiou-se algum tempo no jornalismo (escreveu como freelancer para a célebre revista Realidade, da Editora Abril, e para a imprensa alternativa de São Paulo, especialmente no célebre Ex-Jornal.
Voltando à vida acadêmica, foi professor titular na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Cândido Mendes. Na administração pública, foi presidente da Fundação Palmares, entre 1994 e 1996, destacando em sua gestão os trabalhos técnicos de reconhecimento das comunidades remanescentes dos quilombos e das celebrações dos 300 anos da morte do herói Zumbi dos Palmares.
“O Dia em que o Povo Ganhou” é um livro que corresponde, efetivamente, ao título. O levante armado e suas consequências derivaram diretamente da movimentação das camadas mais humildes da população, que levaram, de roldão, as elites agrárias, comerciais, religiosas, profissionais, militares, enfim, as camadas que compunham a elite daquela época. Foi o povo que levou os donos do poder à luta, embora fossem estes que se beneficiaram da evolução dos acontecimentos, que mudaram o esquema de poder na Bahia.
A Guerra da Independência foi um desdobramento dos levantes de inspiração iluminista (Inconfidência e Alfaiates), mas o estopim foi a disputa entre o brigadeiro baiano Manoel Pedro e o general português Medeiros de Melo. De uma disputa de poder entre os graúdos degenerou numa luta armada entre a milícia brasileira (tropa de 2ª linha) contra a tropa colonial metropolitana (Exército regular), evoluindo para uma guerra entre os militares nacionais e europeus.
Do confronto, entre os fardados, as hostilidades passaram para a população civil e, daí, para a formação de dois exércitos, um do rei Dom João VI, A Legião Constitucional, obedecendo à constituinte de Lisboa, e o exército do príncipe Dom Pedro, o Exército Pacificador.
Essa situação de guerra é narrada em detalhes, com seus heróis e, principalmente, com toda a documentação portuguesa, reproduzida na íntegra, com cartas e relatórios do comandante colonialista para Lisboa ou para as juntas provisórias, que constituíam o governo provincial criado pela Revolução do Porto. Joel mostra os dois lados da questão, dando a palavra a todos os envolvidos. Neste aspecto é um livro vivo e saboroso.
Ficou um tanto esquecido justamente porque não contempla a tese politicamente correta de que aqueles acontecimentos seriam manipulações dos interesses dominantes, e assim desqualificados como legítimas lutas populares. Joel respalda sua tese num fato insofismável: a única festa verdadeiramente popular comemorativa da Independência do Brasil é o 2 de julho da Bahia. Nenhum povo passaria dois séculos a comemorar uma farsa. Vale a pena conferir.
Livro: “O dia em que o povo ganhou”
Autor: Joel Rufino dos Santos
Editora: Civilização brasileira
Ano: 1979
(*) Jornalista e autor, entre outros, dos livros Os Senhores da Guerra (L&PM Editores) e Cem Anos de Guerra no Continente Americano (Editora Record).
Fonte: Bonifácio
Comemoração virtual do 2 de julho de 2020. Fonte: Governo do Estado da Bahia – TVE