
CARLOS LOPES
[O texto abaixo serviu de base à intervenção do autor no Simpósio “Desafios Brasileiros no Atual Contexto Internacional”, da Fundação Maurício Grabois, durante a décima mesa, realizada a 27 de março de 2025, com o tema “Hegemonia Neoliberal e Dependência: composição, convergências e contradições“. Posteriormente, foi publicado pela FMG com o título Reconstruir o Estado nacional é saída brasileira contra a dependência neoliberal]
O argumento (melhor seria chamar alegação) mais retrógrado que pode existir – porque, tal como um dogma religioso, é impossível contestá-lo em sua própria natureza – contra qualquer política, é o de que a situação, hoje, é diferente do passado, por isso é impossível que políticas anteriores voltem a ser aplicadas.
Evidentemente, ninguém é contra examinar a situação presente no que ela tem de específica, portanto, de diferente das situações do passado.
No entanto, exatamente por isso, não é possível dizer que qualquer situação é inteiramente diferente de qualquer situação do passado.
Se não fosse assim, então, para que serviria a experiência histórica?
A Revolução de 30 – e o que se seguiu a ela – seria possível sem o largo desenrolar, desde o fim do Império, e mesmo antes, passando pelos governos de Deodoro e Floriano, e os avanços, ainda que lentos, da industrialização do Brasil, no período da República Velha (que deixou, entretanto, uma lembrança de estagnação)?
Naqueles que argumentam com as diferenças em relação ao passado, para negar a possibilidade de uma política progressista no presente, há um conteúdo reacionário intrínseco.
Porque, aquilo que mais nos interessa é, precisamente, o que é igual ou semelhante ao passado.
Caso contrário, como existiria evolução (e, menos ainda, revolução) da espécie humana?
Se a situação hoje fosse inteiramente (mais do que qualitativamente) diferente do passado, somente nos restaria desprezar a experiência histórica, pois a experiência histórica é, exatamente, a experiência do passado.
Mas, se desprezarmos a experiência histórica, não poderemos contar com ela para superar os problemas do presente – logo, também não teremos futuro.
Porque a experiência histórica seria inútil, logo a própria história seria sem sentido, logo a vida humana seria vã e vazia.
Mas, graças aos céus – ou aos seres humanos – não é assim.
Por exemplo, sabemos que a Revolução de 30 significou uma arrancada para o desenvolvimento do Brasil. Durante os 50 anos seguintes, nosso país, segundo o IBGE, cresceu a uma média anual de 6,7%.
Esse crescimento, que recebeu, na década de 50, o nome de nacional-desenvolvimentismo, foi baseado em uma aliança de classes, na maior parte do tempo, formada pelos trabalhadores, pelos empresários nacionais e pelo Estado nacional.
Com certeza, não era só isso o que existia no país e na economia brasileira. Havia, também, empresas estrangeiras. No entanto, aqui estamos delimitando o núcleo da aliança de classes que impulsionou o país – e, inclusive, impulsionou as próprias empresas estrangeiras.
Hoje, na época do neoliberalismo, é possível voltar a esta aliança de classes, mesmo considerando as diferenças entre o empresariado atual e o empresariado daquela época, entre os trabalhadores atuais e os trabalhadores daquela época, entre o Estado atual e o Estado daquela época?
Não chega a ser um insight, a seguinte conclusão, que formulamos aqui sob forma de indagação: se não empregarmos a nossa experiência histórica nesse sentido, o que nos restará fazer?
Voltar à barbárie ou ao escravismo?
Evidentemente, para superar o neoliberalismo, que agravou extremamente a dependência do país em relação ao imperialismo rentista, temos que descobrir os caminhos para chegar àquele resultado. Mas os trilhos que teremos de percorrer são semelhantes aos anteriores, ou seja, teremos que retornar aos trilhos do nacional-desenvolvimentismo.
Recentemente, propusemos que o elemento central da tríade nacional-desenvolvimentista é o Estado nacional. Teremos, portanto, de superar a situação atual de Estado colonial e recuperar o Estado nacional, se quisermos superar o rentismo, a desindustrialização, a miséria e a fome.
Mas, vejamos outro aspecto da experiência histórica.
Sabemos que a dependência – isto é, a opressão e a exploração imperialistas – sobre o nosso país, durante o século XX, foi aliviada durante as crises nos países centrais, ou seja, nas crises do imperialismo. Podemos dizer, sucintamente, que às crises nos países centrais correspondeu o desenvolvimento, o progresso, nos países periféricos, como o Brasil.
O principal exemplo é a crise econômica iniciada em 1929.
No entanto, na crise econômica de 2008, sobretudo após a quebra do Lehman Brothers, a argumentação oficial – inclusive do Banco Central, que, na época, não era “independente” – foi que não podíamos crescer se os EUA e demais países centrais não estavam crescendo.
Daí, o aumento dos juros básicos no Brasil, mesmo após a falência do Lehman Brothers e a derrubada geral dos “mercados” especulativos de Wall Street.
Assim, a crise dos países centrais agravava, segundo esses gênios, a nossa dependência, ao invés de aliviá-la.
Nosso país, portanto, tornou-se dependente não somente do imperialismo, mas da própria crise do imperialismo.
Ou seja, nessa crise, nós fizemos o contrário do que sempre fizemos nas outras crises dos países centrais – e o contrário de toda a nossa experiência histórica.
Como isso poderia dar certo?
Evidentemente, não deu.
É impossível se desenvolver, fazendo todo o contrário do necessário para se desenvolver – e o contrário de tudo que já fizemos, com sucesso, para nos desenvolver no passado.
O contrário, portanto, de toda a nossa experiência histórica.
Da mesma forma, o próprio neoliberalismo.
Lendo o livro de Clara Mattei sobre a austeridade, podemos dizer que os casos por ela analisados – a Inglaterra e a Itália na primeira metade do século XX – são extremamente parecidos com o que chamamos, hoje, de neoliberalismo (v. Clara Mattei, A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, trad. Heci Regina Candiani, Boitempo, 2023).
Se nos voltarmos para o Brasil e examinarmos a política de Joaquim Murtinho, no governo Campos Sales, em fins do século XIX e princípios do século XX, também encontraremos algo muito parecido ao que chamamos, hoje, de neoliberalismo.
Mas, nessas épocas, Hayek, Mieses, Friedman, e assemelhados, ainda não haviam escrito os seus livros.
Então, como podem essas políticas de outras épocas parecerem tanto com o neoliberalismo?
Porque a sua essência é a mesma: arrocho salarial, rentismo, desindustrialização, ataque ao Estado nacional, desregulamentação, etc.
A novidade em relação ao neoliberalismo é que este foi implantado, principalmente, em cima da derrocada da URSS e dos países do Leste Europeu. Portanto, não encontrou a resistência que as políticas reacionárias capitalistas anteriores encontraram.
Evidentemente, o neoliberalismo era a política mais favorável ao imperialismo numa situação de derrocada do socialismo na URSS e no Leste Europeu.
Mas, aqui, temos um elemento importante, especialmente para nós: o neoliberalismo, nos países periféricos, implica e agrava extremamente a própria dependência desses países em relação ao imperialismo.
Agrava, inclusive, até o extremo: até o fascismo.
E, não esqueçamos, fascismo em país dependente é sempre fascismo dependente – basta ver esse ridículo Bolsonaro, prestando continência à bandeira dos EUA. A ideia de que o fascismo é sempre, em qualquer situação e em qualquer país, nacionalismo, por si mesma, é estúpida.
Entretanto, não é possível libertar-nos da dependência – e, portanto, do neoliberalismo – sem um projeto nacional próprio.
Nisso, não há nada que tenhamos de fazer, que já não tenhamos feito no passado.
Evidentemente, não estamos propondo uma volta ao passado. Usar a experiência histórica não é voltar ao passado. Os projetos nacionais que tivemos desde 1930 não foram o mesmo projeto – ou projetos iguais. Nem aquele que precisamos elaborar agora será idêntico aos anteriores.
O problema é que, desde o II PND, no governo Geisel, estamos sem algum plano de desenvolvimento nacional.
Qual o plano de desenvolvimento do governo Collor?
Destruir o Estado nacional, a indústria interna – e roubar, o que levou ao impeachment. Portanto, o inverso de um plano de desenvolvimento.
Qual o plano de desenvolvimento do governo Fernando Henrique?
Ele próprio o formulou: “acabar com a Era Vargas”, isto é, com o Brasil construído pelo nacional-desenvolvimentismo.
Portanto, afundar o país no neoliberalismo e na dependência para completar a obra da ditadura de 1964.
Não tivemos, depois disso, nenhum plano de recuperação. No máximo, conseguimos paralisar (em parte e momentaneamente) as privatizações e a submissão extrema aos instrumentos imperialistas norte-americanos do tipo Alca.
Mas, por exemplo, nenhuma empresa privatizada foi reestatizada.
Nem mesmo a Eletrobrás.
Portanto, podemos concluir rápida e sucintamente: não é possível sair da atual situação sem recuperar o Estado nacional, com o objetivo de refazer, em novas bases, a aliança nacional-desenvolvimentista; mas isso implica em ter um projeto nacional de desenvolvimento.
Aliás, talvez seja uma obviedade, mas recuperar o Estado nacional é a mesma coisa que ter um projeto nacional.