CARLOS LOPES
Lá pelo governo Figueiredo, quando Lula e seu grupo resolveram colaborar com Golbery do Couto e Silva na fragmentação da oposição à ditadura, e fundar o PT, alguém disse que os então petistas estavam tomados pela “concepção cine-hora da História do Brasil”.
O Cine Hora localizava-se na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e era um cinema com sessão contínua, usado por quem necessitava preencher algum tempo vazio, entre um e outro compromisso. Seu slogan era: “A sessão começa quando você chega”.
Pois assim era a concepção dos petistas de então: a História do Brasil começava na primeira greve do ABC paulista, em 1978.
Tudo o que vinha antes era um rol de canalhas e canalhices – desde José Bonifácio e a Independência, até Getúlio, Juscelino, Jango, Arraes e Brizola, passando pelo Duque de Caxias, pelos abolicionistas e republicanos, pelos tenentes e pela Revolução de 30, por civis e por militares.
A História do Brasil, portanto, somente existia a partir de Lula – apesar da participação deste na preparação e eclosão da greve de 1978, iniciada na fábrica da Scania, ter sido menos do que periférica, como sublinhou Gilson Menezes, líder dos operários desta empresa.
Mas, é verdade, Lula era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
De lá para cá, essa concepção cine-hora da História foi flexibilizada de acordo com as conveniências oportunistas dos seus beneficiários – ou daqueles que pretendiam beneficiar-se dela.
Assim é que Getúlio – antes um “fascista”, “ditador”, “populista” e outros epítetos ainda menos cintilantes – foi descoberto pelo lulismo, logo assim que precisou de apoio popular para sustentar-se no poder.
Como não podia deixar de ser, essas revisões da concepção cine-hora da História ficaram no plano do discurso – isto é, da demagogia. Os 13 anos de governo do PT deixam pouca dúvida (se é que deixam alguma) de que o lulismo permaneceu, essencialmente, desenraizado na História do Brasil, e, por consequência, desenraizado na própria nação brasileira.
As exceções – porque houve aquelas exceções sem as quais nenhuma regra é respeitável – somente confirmam o que acabamos de dizer. Aliás, como é óbvio, o que importa para a avaliação de uma tendência político-ideológica (ou um período histórico) sempre é a regra, não as suas exceções.
Assim, o descarrego de setores do entorno lulista, por ocasião do aniversário do Duque de Caxias, no último dia 25, somente não é uma espécie de revival dos seus velhos tempos de reacionarismo antinacional, porque, na verdade, a concepção cine-hora da História jamais foi superada por seus acólitos. No máximo, foi colocada em lugar menos visível ou sob camadas de cosméticos oportunistas, de acordo com as conveniências.
Seu reaparecimento em toda a sua feia nudez, hoje, tem um agravante: no momento em que um piolho fascista – e, aliás, entreguista – tenta se passar como patriota, espelho das virtudes do nosso Exército, e, mesmo, discípulo do Duque de Caxias, não se poderia prestar melhor serviço a Bolsonaro do que tentar atirar o grande general na mesma vala desse ex-capitão fracassado.
Entretanto, Caxias é o exato oposto de Bolsonaro.
Pela disciplina, pelo amor ao Brasil, pela inteligência, pela competência, pela capacidade de estudar e absorver a ciência de sua época, até mesmo por sua afinidade com os soldados mais humildes – vale dizer, os que não eram brancos –, o Duque de Caxias foi sempre o oposto da infamante miséria que hoje habita o Alvorada.
Foi por essas qualidades e pelos feitos em que elas se revelaram, que Caxias foi reconhecido, pelo presidente João Goulart, como patrono do Exército do Brasil, em 1962.
É certo, o Brasil era, no Império, um país de base econômica escravagista. Mas não era só isso, a começar por aqueles que não eram escravos, mas cuja tez demonstrava a miscigenação que formou o nosso povo.
Os ataques a Caxias, portanto, expõem, mais uma vez, publicamente, a falência ideológica desses setores – falência na sua concepção de Brasil, falência de qualquer compromisso democrático que essa gente possa, no passado, ter mantido.
O HOMEM
Caxias é a maior das figuras nacionais, desde a morte de José Bonifácio, em 1838, até o auge do movimento abolicionista e republicano, após a morte do marechal, em 1880.
Permanece válido o julgamento de Nelson Werneck Sodré, em “Panorama do Segundo Império”:
“… ninguém influiu mais do que esse homem na marcha política do segundo império. Ninguém desempenhou um papel, com o desembaraço e a segurança desse soldado.
“Aqui caberia a controvérsia sobre o caráter da sua ação. Quaisquer que tenham sido os fundamentos militares da obra do pacificador, ela foi nitidamente política. Política pelas suas razões. Política pelo seu desenvolvimento. Política pelas suas consequências.
“A sua qualidade principal, o traço característico da sua organização, era o sólido equilíbrio que o amparou em todas as circunstâncias. Esse equilíbrio fundado no bom senso, e em certas particularidades inatas no seu caráter, fez dele o eixo dos acontecimentos desenrolados no segundo império. Caxias – mais do que D. Pedro II – foi o império. Ele enche a sua fase ascensional. Apoiado na sua espada e no seu conhecimento dos homens, foi que o regime procedeu à integração das partes do país. Quando a guerra do Paraguai assinala o ponto crítico e marca o início do declínio, é ele quem apressa a conclusão da luta e termina o desbarato das forças de López. Quando regressa, doente e entristecido, tendo dado por concluída a campanha, recolhe-se ao sossego e à solidão. E o império começa a esboroar-se.” (v. HP 25/03/2015, O Duque de Caxias pelo general Nelson Werneck Sodré).
E, mais adiante:
“Ele não foi, apenas, o maior chefe militar do seu continente, na sua época, mas um grande político cuja ação, aliada à força dos acontecimentos, apoiada em vitórias decisivas, se marcava por um tato fora do comum. Caxias compreendia a debilidade brasileira. Sabia da projeção que poderia ter uma repressão áspera. Um dos seus traços mais curiosos, denunciador de uma argúcia pouco vulgar e dum conhecimento incomum da marcha que as ideias coletivas podem tomar, foi aquele seu impulso, na revolução do sul, em acenar aos amotinados, com a guerra externa, para unir vencidos e vencedores sob uma mesma bandeira.”
“… o segundo império teve o seu início sem poder governar duas províncias: Maranhão e Rio Grande do Sul. Caxias inicia a sua obra, logo após o advento de D. Pedro II. Pacifica o Maranhão. E é enviado ao Rio Grande do Sul, onde a luta já durava dez anos e ameaçara perigosamente as instituições, chegando os revoltosos quase até o município de Curitiba. Caxias domina o mais grave dos motins provinciais. Coroa a sua obra congregando todos os elementos do sul para a campanha contra Rosas. De caso em caso, de solução em solução, ele reúne, em torno do regime, os pontos que ameaçavam escapar à sua influência.
“Não é uma coincidência que faz a fase ascendente do império assistir à ação desse notável realista. (…) Os dez primeiros anos do segundo império marcam-se por uma obra verdadeiramente extraordinária: reprimir as insurreições, dominar a possibilidade de novos levantes, e incorporar decisivamente ao império, como forças produtivas, pacíficas e vivas, essas que se divorciavam dele. Integrar, em suma, a nação, nos seus destinos e no seu território, pela generalidade de princípios e pela força de levar a autoridade central a todos os recantos da terra imensa e dividida.
“É justamente esse o período fulgurante da ação de Caxias. Onde quer que haja um movimento rebelde, ele está. Poderia vencer, destroçando e mortificando, pela violência após a vitória. Prefere, na sua clarividência, poupar e transigir. A sua transigência não é proveniente nem de fraqueza nem de incapacidade, porém. Mas de lucidez e de força, porque se realiza depois que consumou a posse definitiva dos pontos almejados e do território onde a agitação dominava.
(…)
“Mais do que D. Pedro II, Luiz Alves de Lima e Silva representava a força e a vitalidade da primeira fase. Caxias, mais do que o imperador, representa o regime. Nos anos da consolidação, ele encarna as qualidades vivas e dinâmicas da ordem de cousas que defende, ampara e preserva dos males. Quando o regime chega ao fim, – a sua obra permanece. Porque, servindo-o, ele servira à unidade nacional. Em 89 o império terminara a sua missão, divorciara-se do país. Mas a missão de Caxias, no seu período melhor, transformada pela ação do tempo e pela evolução, daria os seus frutos notáveis. A federação [isto é, a República] iria sancioná-los e servir-se deles” (cf. Nelson Werneck Sodré, op. cit.).
É este grande homem que, nos descarregos lulistas, filo-lulistas e cripto-lulistas, foi apresentado como massacrador de seu próprio povo, chacinador de revoltas populares e outras infâmias.
Nem mesmo, nessa coalizão da ignorância com a má-fé, se faz a pergunta: qual era o projeto nacional, por exemplo, da Balaiada?
Havia algum?
Era necessário – ou não – formar-se uma nação?
O que poderia ser o Brasil, se não fosse uma nação?
Ou, no presente: o que pode ser o Brasil, senão uma nação?
Mas é evidente que as nações não se constituem de acordo com o desejo e as fantasias a posteriori daqueles que não conseguem conviver com o nosso próprio, real e verdadeiro caráter nacional, aquele que se constituiu na História real, na luta real e concreta – e não nas fantasias solitárias de alguns mal iluminados indivíduos.
Daí, em seu ensaio sobre Caxias, escreve aquele que José Honório Rodrigues considerou o maior dos nossos historiadores:
“Foi um decênio memorável o de 50. O imperador contava vinte e cinco anos e a nação sentia-se igualmente moça. Terminara o período revolucionário, guerras estrangeiras felizes varreram a atmosfera, a extinção do tráfico tolhia novos insultos da soberania nacional, encurtava a distância do velho mundo com a navegação a vapor do Atlântico. Mauá canalizava milhões esterlinos, silvavam as primeiras locomotivas; as letras rasgavam os clássicos andrajos coloniais; falava-se em ópera nacional, em teatro nacional. João Caetano figurava de novo Moisés; três poemas épicos andavam em elaboração, havia quem escrevesse tragédias; na comissão científica do Norte não se admitiu um só estrangeiro, porque brasileiros bastavam e haviam de fazer melhor obra que os pobres Martius e Saint-Hilaire; o Instituto Histórico fitava sem acanhamento o Instituto de França; afinal delia-se a mácula original da nossa gente, a “apagada e vil tristeza”, de que já se queixava o épico lusitano, e Paraná, o político realista e prático, se empenhava em conciliar os partidos políticos” (v. HP 15/05/2020, O Duque de Caxias, por Capistrano de Abreu).
Esta é a fase gloriosa do Império – sucedida pela decadência da economia escravista, após a quebra da Casa Souto, em setembro de 1864. Quando isso acontece, Caxias já está com 61 anos. Tem 65 anos quando, chamado de volta ao Exército, comanda pessoalmente as tropas brasileiras na batalha de Itororó (v. HP 26/08/2003, Caxias: “Sigam-me os que forem brasileiros!”).
Foi em Itororó que um dos oficiais brasileiros viu – e, depois, descreveu – Caxias:
“Passou pela nossa frente, animado, ereto no cavalo, o boné de capa branca com tapa-nuca, de pala levantada e presa ao queixo pelo jugular, a espada curva, desembainhada, empunhada com vigor e presa pelo fiador de ouro, o velho general em chefe, que parecia ter recuperado a energia e o fogo dos vinte anos. Estava realmente belo. Perfilamo-nos como se uma centelha elétrica tivesse passado por todos nós.
“Apertávamos o punho das espadas, ouvia-se um murmúrio de bravos ao grande marechal. O batalhão mexia-se agitado e atraído pela nobre figura, que abaixou a espada em ligeira saudação a seus soldados. O comandante deu a voz firme. Dali a pouco, o maior dos nossos generais arrojava-se impávido sobre a ponte, acompanhado dos batalhões galvanizados pela irradiação da sua glória. Houve quem visse moribundos, quando ele passou, erguerem-se brandindo espadas ou carabinas, para caírem mortos adiante” (cf. General Dionísio Cerqueira, “Reminiscências da Campanha do Paraguai”, Biblioteca do Exército Editora, Rio, 1980, pp. 272-273).
Depois do Paraguai, e de seu último período como presidente do Conselho de Ministros, Caxias se recolhe, decepcionado com o Império e com o imperador (v. HP 27/04/2019, Caxias e a guerra do Paraguai: retrato do homem no outono de sua vida).
Sua última obra – o seu testamento – é um retrato de sua grandeza:
“Recomendo que meu enterro seja feito, sem pompa alguma, e só como irmão da Cruz dos Militares, no grau que ali tenho. Dispensando o estado da Casa Imperial, que se costuma a mandar aos que exercem o cargo que tenho.
“Não desejo, mesmo, que se façam convites para o meu enterro, porque os meus amigos que me quiserem fazer este favor, não precisam dessa formalidade e muito menos consintam os meus filhos que eu seja embalsamado.
“Logo que eu falecer deve o meu testamenteiro fazer saber ao Quartel General, e ao ministro da Guerra, que dispenso as honras fúnebres que me pertencem como Marechal do Exército e que só desejo que me mandem seis soldados, escolhidos dos mais antigos, e melhor conduta, dos corpos da Guarnição, para pegar as argolas do meu caixão, a cada um dos quais o meu testamenteiro, no fim do enterro, dará 30$000 de gratificação.”
E foi tudo o que quis.
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