(HP 25/03/2015)
Há 146 anos, no dia 23 de março de 1869, o marechal Luís Alves de Lima e Silva recebia o título de Duque de Caxias. Em homenagem ao patrono do Exército Brasileiro, publicamos hoje o perfil de Caxias escrito pelo general e historiador Nelson Werneck Sodré.
Sodré, que acaba de ter seu brilhante ensaio sobre o nacionalismo reeditado na coleção “Caminhos da Independência”, da Editora Página 8, escreveu sobre Caxias em “Panorama do Segundo Império”, livro de 1939. Alteramos, para a publicação, a ortografia do texto original, que foi, também, condensado.
Os leitores, com certeza, terão o mesmo prazer que nós diante dessa peça rara de historiografia e de literatura, que define o lugar na História de um dos maiores entre nossos grandes homens.
C.L.
NELSON WERNECK SODRÉ
Caxias só tem sido apresentado, aos pósteros, em “poses”. Através das anedotas e da história dos pequenos episódios em que se envolveu. Prendendo Feijó, na repressão à insurreição paulista que o padre animara. Perseguindo Miguel de Frias, para deixá-lo fugir. Mandando dizer missa por vencidos e vencedores, no Rio Grande do Sul. E em outras atitudes semelhantes. Nesse diapasão, o que existe escrito a respeito dele é puro panegírico pessoal. A sua figura política desapareceu para dar lugar a esse vulto incolor, modelo de virtudes individuais, que nos vem sendo transmitido. No caso de Caxias isso representa um tremendo erro, uma falsidade enorme. Porque ninguém influiu mais do que esse homem na marcha política do segundo império. Ninguém desempenhou um papel, com o desembaraço e a segurança desse soldado.
Aqui caberia a controvérsia sobre o caráter da sua ação. Quaisquer que tenham sido os fundamentos militares da obra do pacificador, ela foi nitidamente política. Política pelas suas razões. Política pelo seu desenvolvimento. Política pelas suas consequências.
A sua qualidade principal, o traço característico da sua organização, era o sólido equilíbrio que o amparou em todas as circunstâncias. Esse equilíbrio fundado no bom senso, e em certas particularidades inatas no seu caráter, fez dele o eixo dos acontecimentos desenrolados no segundo império. Caxias – mais do que D. Pedro II – foi o império. Ele enche a sua fase ascensional. Apoiado na sua espada e no seu conhecimento dos homens, foi que o regime procedeu à integração das partes do país. Quando a guerra do Paraguai assinala o ponto crítico e marca o início do declínio, é ele quem apressa a conclusão da luta e termina o desbarato das forças de López. Quando regressa, doente e entristecido, tendo dado por concluída a campanha, recolhe-se ao sossego e à solidão. E o império começa a esboroar-se.
A figura de Caxias é tanto mais curiosa quanto mais conhecemos o ambiente em que ele surgiu. Que dizer daquela força, sem instrução, sem princípios fundamentais, sem alicerces sólidos, que era o exército de antes do conflito com o Paraguai? Note-se mais que Caxias, vitorioso em várias insurreições, pela repressão a que procedeu, e vencedor da maior guerra externa, jamais desempenhou uma função político-partidária de grande relevo. Os cargos públicos que exerceu, ele os percorreu sem forçar a órbita dos acontecimentos. Que peso representaria, entretanto, no vazio e na estreiteza dos nossos hábitos e princípios políticos, o fato do aparecimento desse eterno vencedor? A maior qualidade de Lima e Silva foi, por certo, o absenteísmo político, tomada a política na acepção de domínio dos cargos públicos. Caxias, que podia ter sido o caudilho sem par, isenta o país do caudilhismo. Enquanto, no rio da Prata, os Urquiza, os Rosas, os Oribe, faziam o desastre das nações e perturbavam o seu desenvolvimento, – no Brasil, Caxias somava o prestígio advindo da consolidação do império com aquele que lhe proveio da vitória externa, sem cuidar de lançar a sua espada na balança política nem de tomar os postos de governo para si. Se, antes do conflito com o Paraguai, ele não representava uma classe e não tinha atrás de si um exército, – depois dela possuía essas duas coisas porque o surto do exército brasileiro data da campanha de 1865-70, com todos os seus defeitos, que chegariam à República.
Manoel Bomfim acusou Caxias de ser o representante da elite portuguesa que, provinda do tumulto da independência, invadiu o primeiro e segundo império, ao lado da dinastia bragantina. Para o historiador de “O Brasil-Nação”, o consolidador seria uma espécie de sufocador de todos os anseios da alma brasileira, em qualquer momento e em qualquer recanto. Os surtos provinciais estariam vinculados às necessidades nacionais, em contraposição aos interesses dessa elite dominadora e extorsiva. Julgado por esse prisma, Lima e Silva, teria sido um criminoso da fidelidade, um mísero idolatra dos compromissos, um fraco militar que obedecia sem discutir e sem ver, nos acontecimentos, as suas fundas razões e os seus sólidos motivos. O jacobinismo de Bomfim não tem razão de ser. A elite portuguesa, proveniente da colonização e do advento da corte de D. João VI, diluiu-se no segundo império e foi substituída pela elite agraria, dos grandes senhores da terra, força nacional como nenhuma outra. A elite portuguesa era urbana e comercial. Dominava os portos, as relações internacionais e inter-provinciais, movimentava os negócios. Mas não chegou, ao tempo do segundo império, a constituir uma força nem a influir decisivamente na ordem dos acontecimentos. O alijamento da camarilha portuguesa que girava em torno do trono processou-se normal e gradualmente. O comércio das cidades continuou, por alguns decênios, em mãos dos lusitanos mas já assimilados pela sociedade brasileira.
Caxias representava o centro. Nascera numa província que se desenvolvia ao lado da corte. Essa província daria ao regime alguns dos seus homens mais representativos e uma considerável riqueza. As suas lavouras de cana e café desenvolviam-se e cercavam a capital, o município neutro. A estrada União e Indústria e as vias naturais de penetração carreavam os produtos dessa lavoura, apoiada no elemento servil. Até o fim, a província do Rio de Janeiro seria o alicerce do império. Em 1888, o regime corta essa ultima amarra. E rui um ano mais tarde, arrastando, desde atrás, na sua queda, grande parte da prosperidade fluminense.
Caxias possuía a personalidade típica dos seus conterrâneos. A clareza de raciocínio, o discernimento fácil, o domínio das situações, a naturalidade nos movimentos. Francisco de Lima e Silva, pai de Caxias, estava ligado ao imperador e ao império por laços muito fortes. Fora ele quem tomara nos braços o filho de Pedro I, para a apresentação à corte. Fora dos conservadores que haviam tramado o golpe da Maioridade, depois de ter sido figura obrigatória da regência trina. Estivera com o império nos seus momentos decisivos.
Luiz Alves de Lima e Silva educava-se nesses princípios. Soldado desde a infância, escolheu, entre todos os princípios, o de servir. A grandeza dessa servidão só pode ser medida pelas suas consequências.
Ele não foi, apenas, o maior chefe militar do seu continente, na sua época, mas um grande político cuja ação, aliada à força dos acontecimentos, apoiada em vitórias decisivas, se marcava por um tato fora do comum. Caxias compreendia a debilidade brasileira. Sabia da projeção que poderia ter uma repressão áspera. Um dos seus traços mais curiosos, denunciador de uma argúcia pouco vulgar e dum conhecimento incomum da marcha que as ideias coletivas podem tomar, foi aquele seu impulso, na revolução do sul, em acenar aos amotinados, com a guerra externa, para unir vencidos e vencedores sob uma mesma bandeira.
Toda a fase de governo da Regência fora sacudida por um tremendo vírus de rebeldia. As províncias repeliam as cadeias que lhes pesavam. Quando o governo central dominava um desses surtos outro repontava, mais adiante. A maioridade devia ter o condão de apaziguar os brasileiros, pensavam os políticos do tempo.
Mas o segundo império teve o seu início sem poder governar duas províncias: Maranhão e Rio Grande do Sul. Caxias inicia a sua obra, logo após o advento de D. Pedro II. Pacifica o Maranhão. E é enviado ao Rio Grande do Sul, onde a luta já durava dez anos e ameaçara perigosamente as instituições, chegando os revoltosos quase até o município de Curitiba. Caxias domina o mais grave dos motins provinciais. Coroa a sua obra congregando todos os elementos do sul para a campanha contra Rosas. De caso em caso, de solução em solução, ele reúne, em torno do regime, os pontos que ameaçavam escapar à sua influencia.
Não é uma coincidência que faz a fase ascendente do império assistir à ação desse notável realista. Quando D. Pedro II inicia o seu período de domínio, em 1840, herda os erros e os desencontros, a confusão e a agitação da Regência. O país atravessa um abalo econômico profundo de que se não livraria rapidamente. Mas, para a solução desses desequilíbrios, o econômico e o político, o regime vai demonstrar uma notável vitalidade. Resolve-os apoiado no tempo e nos sucessos parciais. Os dez primeiros anos do segundo império marcam-se por uma obra verdadeiramente extraordinária: reprimir as insurreições, dominar a possibilidade de novos levantes, e incorporar decisivamente ao império, como forças produtivas, pacíficas e vivas, essas que se divorciavam dele. Integrar, em suma, a nação, nos seus destinos e no seu território, pela generalidade de princípios e pela força de levar a autoridade central a todos os recantos da terra imensa e dividida.
É justamente esse o período fulgurante da ação de Caxias. Onde quer que haja um movimento rebelde, ele está. Poderia vencer, destroçando e mortificando, pela violência após a vitória. Prefere, na sua clarividência, poupar e transigir. A sua transigência não é proveniente nem de fraqueza nem de incapacidade, porém. Mas de lucidez e de força, porque se realiza depois que consumou a posse definitiva dos pontos almejados e do território onde a agitação dominava.
Quando o império atinge o meio do caminho, em 65, Caxias está afastado. O período agitado terminara em 49. Depois vieram as reformas políticas. Mau partidário, aborrecera-se dos entreveros eleitorais e parlamentares. A crise de crescimento e de expansão, no Brasil, ia atingir, entretanto, o seu ponto culminante. Após a integração, a paz. Após a paz, que fora uma pausa, um intervalo, nova etapa. Essa etapa, que seria o coroamento da unidade brasileira, deflagraria a guerra.
Não tem conta nem medida os erros iniciais da campanha. Caxias assiste-os do longe. De quando em vez comparece a uma solenidade. Discreto, sem parecer desejar misturar-se à confusão, à indecisão, à inópia generalizada. As faltas e omissões da direção da campanha são enormes, porém. A expedição lançada através de Mato Grosso para atacar o inimigo numa frente inesperada é uma aventura sem apoio algum. No sul, os acontecimentos se agravam cada vez mais.
Para coroar tal situação havia falta absoluta de preparo do país para uma guerra. Não havia exército organizado. Não havia fornecimentos mantidos e ativos. Não havia comando. O recrutamento era o mais primitivo. Os processos de formação dos novos batalhões, que a luta entra a exigir, cada vez mais, são rigorosos na violência. Não tinha precedido a abertura das hostilidades a necessária campanha de opinião, destinada a arregimentar as forças morais. E isso seria mesmo extremamente difícil e lento, dadas as dimensões do território e a demora na transmissão do pensamento.
O teatro de operações ficava afastado dos centros principais do país, das suas fontes de vitalidade. A Tríplice Aliança resultaria numa evasão extraordinária de riqueza para o rio da Prata. Mais próxima do cenário em que desenrolava a luta, a Argentina teria o papel de abastecedora dos exércitos. É ela quem os alimenta. É ela quem fornece a forragem aos corpos montados. E toda a sorte de recursos, os mais variados. Isso sem falar no empréstimo concedido aos nossos aliados argentinos, para os necessários preparativos, empréstimo que foi pago com uma rapidez pouco comum, demonstrando a soberba vitalidade duma nação que tomava um notável impulso. Lutando ainda pela sua unidade, na repressão aos remanescentes do caudilhismo, a pátria de Mitre, tendo duas frentes a atender, a interna e a externa, prefere cuidar da primeira. Os uruguaios estavam reduzidos a quinhentos homens sob o comando de Castro. Eram os restos da coluna que ajudara a suportar, com tanta utilidade, os primeiros embates, quando os paraguaios haviam penetrado o território brasileiro, no Rio Grande do Sul.
As consequências do desastre de Curupaiti se fazem sentir nos três países. Depois da tentativa fracassada, para a conquista da praça os exércitos se recolhem a uma expectativa morna e sem resultados. Cada pausa no avanço era uma oportunidade para López, cuja tenacidade só terminou na morte.
Em tais circunstâncias, que remédio senão apelar para Caxias? A desagregação do império já começara, porém. A união dos partidos rompera-se, ainda antes da guerra. Na eventualidade, dominava um gabinete liberal. Caxias era conservador. Permanecia no partido do pai. Acede ao convite de Zacarias e segue para o teatro da luta, após ter tomado, no Rio de Janeiro, todas as providências que a situação requeria. A sua obra de reorganização toma-lhe tempo. Era preciso recompor quase tudo. Desde os escândalos dos fornecimentos, até o preparo das reservas. A fase do seu comando é, entretanto, decisiva. A pausa inicial, que provocara desconfianças e comentários malévolos na capital alicerçando o despeito do príncipe consorte, era inevitável. Depois dos sucessos da “dezembrada”, Caxias entra em Assunção e dá por finda a campanha. Gely y Obes faz o mesmo.
Doente e aborrecido com as tramas da corte, onde as divergências se acentuavam, o marechal regressa. Recebidos os títulos, retira-se do cenário. Estava envelhecido. E, sem fraseologia fácil, encanecera ao serviço do Brasil e do regime com o qual se identificara.
Os erros da política externa do império culminariam com a guerra. Dela adveio o desenvolvimento argentino. Lutando para o aniquilamento duma nação forte no seu flanco, nação que ajudara a fortificar-se para apoiar as antigas diretivas da sua orientação exterior, o império fornecera todos os elementos paro o progresso e o extraordinário surto platino.
O ramo ascendente da curva imperial terminara. A guerra trouxera uma realização admirável: coroara a obra de unificação. Todas as províncias forneceram homens. Combatendo pela mesma bandeira, os brasileiros sentiram-se irmanados. As consequências econômicas seriam enormes, porém. E os problemas oriundos da luta tomariam vulto. Aqueles que tinham ficado abafados voltariam à baila. Ia iniciar-se o ramo descendente. A duração era quase a mesma, vinte e cinco anos. No início, dez anos para a consolidação e quinze para o desenvolvimento. No fim, todos os vinte e quatro anos destinados à decomposição. Da guerra à República, numa aceleração cada vez maior, o império se desfaria.
Mais do que D. Pedro II, Luiz Alves de Lima e Silva representava a força e a vitalidade da primeira fase. Caxias, mais do que o imperador, representa o regime. Nos anos da consolidação, ele encarna as qualidades vivas e dinâmicas da ordem de cousas que defende, ampara e preserva dos males. Quando o regime chega ao fim, – a sua obra permanece. Porque, servindo-o, ele servira à unidade nacional. Em 89 o império terminara a sua missão, divorciara-se do país. Mas a missão de Caxias, no seu período melhor, transformada pela ação do tempo e pela evolução, daria os seus frutos notáveis. A federação iria sancioná-los e servir-se deles.
O seu crepúsculo anunciava já o das instituições. À beira da morte, expressa o seu último desejo. Nele vai toda a amargura e todo o fastio do panorama a que assistia e que, nos últimos anos, alquebrara as suas últimas forças. Pressentido o fim, afasta do seu pensamento nobres, príncipes e políticos, – afasta mesmo os companheiros graduados. Para levá-lo ao último refúgio pede, apenas, seis soldados de bom comportamento…