Os crimes do cartel do bilhão contra o Brasil (14)
(HP 23/09/2015)
CARLOS LOPES
É preciso ser muito sectário – ou seja, insensível aos interesses coletivos verdadeiros – para desprezar o prejudicado na agressão à Petrobrás: o povo brasileiro, que construiu a empresa e levou-a a ser o maior exemplo (mais que um símbolo) de nossa capacidade de romper o bloqueio imperialista ao nosso progresso, vale dizer, de nossa independência e afirmação nacional.
Alguém poderá argumentar – e estará, essencialmente, certo – que os interesses materiais são a motivação de fundo, mesmo quando o sujeito não recebeu um centavo do ilícito.
Mas há algo nesses causídicos do roubo que faz lembrar o dito por Vieira, em 1655, diante do então rei de Portugal, D. João IV, sobre o estado de coisas no império colonial português: “o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza” (Antonio Vieira, “Sermão do Bom Ladrão”, Lisboa, 1655).
Outra argumentação frequentemente ouvida é que o problema só se resolve com a “reforma política”. A culpa, portanto, é da lei eleitoral, e não dos ladrões.
No entanto, a única reforma política de que não falam, porque não querem, é a de estabelecer um limite razoável para os gastos eleitorais. O país vive, desde Collor, uma situação miserável de exclusão eleitoral – exclusão cada vez maior do povo entre os eleitos.
Porém, mesmo depois de uma ruptura nesse processo – com a eleição de Lula em 2003 – prefere-se manter o status quo e até piorá-lo, em termos de abuso do poder financeiro nas campanhas eleitorais. É como se a cúpula do PT tivesse chegado à conclusão de que, uma vez no governo, estava em condições de conservar o poder nos termos dos tucanos.
Assim foi. Portanto, a ladainha sobre uma miraculosa “reforma política” que passa ao largo do essencial, equivale a mudar nada – exceto em desfavor de candidatos e partidos populares – para que se continue afundando no mesmo charco.
A Humanidade desconhece, até hoje, uma “reforma política” que tenha o condão de transformar ladrões em homens honestos. O problema que está à vista não é o financiamento “empresarial” de campanhas eleitorais – julgado inconstitucional pelo STF – mas o roubo (sobrepreço, superfaturamento e propinas) contra a Petrobrás. Não foi o “financiamento empresarial” que conduziu a isso – este somente serviu para lavar o dinheiro do roubo. Uma coisa não se confunde com a outra – exceto se (e quando) a intenção é, precisamente, confundir.
Porém, há algo característico nessa argumentação que relaciona o “financiamento empresarial” diretamente com o roubo na Petrobrás: admite-se implicitamente que, diante de bilhões em contratos públicos, é impossível resistir à tentação de corromper, e, sobretudo, à tentação de ser corrompido.
É uma pobre ideia da espécie humana, mas que define o que são os seus adeptos, afirmar que todas as empresas são corruptoras e todos os partidos e funcionários públicos são corruptos. Até porque não é verdade que todos os seres humanos (pois as empresas e os partidos são organizações de seres humanos) são corruptos ou corruptíveis. Quem assim acha, é porque assim se sente.
Há 360 anos, o mesmo padre Vieira já ironizava essa teologia da ladroagem: “Pôs Deus a Adão no Paraíso, com jurisdição e poder sobre todos os viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas criadas, excepta somente uma árvore. Faltavam-lhe poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto não lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher – que muitas vezes são as terceiras – aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa roubaram. Já temos a Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão”.
Mas é claro que quando a própria política do poder público é abertamente facilitadora de monopólios privados – e, mais, do roubo de monopólios privados – não se pode esperar que isso resulte no espelho das virtudes humanas.
Esse é o caso das “empresas EPC”, política instituída pelo sr. Renato Duque, indicado e nomeado pelo PT para a diretoria de Serviços da Petrobrás.
Já abordamos essa questão nesta série (HP 26/08/2015 e HP 28/08/2015). Aqui, daremos um exemplo de como se desdobrou essa política.
A rigor, a transformação de empresas que antes contribuíam para o desenvolvimento e a engenharia nacionais em “empresas EPC”, leva, inevitavelmente, a que essas empresas se transformem em empresas financeiras, pois “empresas EPC” são, forçosamente, financeiras.
Por quê?
Porque entregar a uma única companhia ou consórcio de companhias todo um empreendimento, desde os projetos básico e executivo, as compras de insumos e maquinário, passando pela contratação de outras empresas, até a pré-operação (e, às vezes, até à operação), leva, inevitavelmente, a que essa companhia ou consórcio de companhias aja como um “banco” – como atravessador do dinheiro alheio, de recursos públicos ou de recursos de empresas públicas.
O monopólio privado – do qual o cartel é um modo de agir – sempre redunda ou no domínio de empresas produtivas pelos bancos ou na transformação de empresas antes produtivas em empresas financeiras (ou até na invenção de empresas financeiras, como já vimos no caso da Sete Brasil). A própria eliminação da concorrência leva a essa transformação: ou à financeirização dessas empresas ou ao seu controle pelos bancos (ou as duas coisas e até algo mais: caso, aliás, da mencionada Sete Brasil, empresa financeira que tem como principal acionista o BTG Pactual, e que só existe devido à Petrobrás, que, no entanto, está proibida de ter mais de 10% de suas ações).
Esta é a razão porque não se pode comparar – ou confundir – as empresas atuais do cartel (inclusive a Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez) com elas mesmas em outros tempos.
A questão é que elas mudaram de caráter – não são, hoje, essencialmente, como foram no passado, empresas de engenharia. Nem, centralmente, como também já foram, empresas nacionais.
Hoje, elas degeneraram em monopólios financeiros, são antes de tudo empresas ou grupos financeiros.
Quanto ao seu caráter nacional, nem é preciso fazer algum paralelo com um monopólio privado de outra área – por exemplo, a Ambev – para perceber a situação de vulnerabilidade do país. Nos últimos quatro anos, o setor de bebidas emparelhou com as montadoras automobilísticas – e, inclusive, em alguns momentos, as superou – em remessas de lucros para o exterior.
É óbvio que os monopólios privados internos não são páreo para os monopólios privados externos, os monopólios imperialistas, já consolidados há longa data.
Porém, não é só isso. Mesmo quando não são desnacionalizados – caso da Ambev – esses monopólios procuram uma “internacionalização” debaixo dos monopólios norte-americanos, sobretudo, ou europeus e japoneses.
Basta lembrar o trágico desfecho da aventura da Odebrecht no Iraque ocupado pelos norte-americanos, para perceber a que ponto isso pode chegar – e como o caráter nacional dessas empresas e grupos de empresas se vai esfumaçando com seu caráter monopolista.
VOLTA AO PASSADO
É evidente porque os monopólios norte-americanos, nos EUA, preferem o “modelo EPC”: porque são monopólios, isto é, seu objetivo é o superlucro, obtido através de sobrepreços. Esse modelo é sob medida para facilitar a cobrança de sobrepreços.
Mas, se esse modelo foi imposto nos países imperialistas pelos monopólios – que já são financeiros por sua própria natureza econômica, o que tem como consequência a espoliação da população por seu parasitismo, pilhagem e entrelaçamento com outras empresas – é ridículo que se pretenda, aqui no Brasil, que essa aberração é o que existe de mais moderno, apenas porque predomina nos países imperialistas, como se o servilismo fosse medida de “modernidade”.
Até porque a própria Petrobrás havia superado esse modelo nada menos que 40 anos antes (v. Carta da Associação dos Engenheiros da Petrobrás [AEPET] à presidente da Petrobrás, 18/02/2014, cit. HP 26/08/2015).
A Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), em outro documento, faz uma comparação significativa sobre o período em que a empresa superou esse modelo e sobre a sua volta, sob os auspícios do sr. Renato Duque (e do PT, que identificava, com bastante razão, esse modelo com as lendárias “parcerias público-privadas”, tão incensadas pelo então ministro José Dirceu ou pela srª Rousseff):
“No final da década de 60 a 80 a Petrobrás construiu uma série de refinarias para quase duplicar sua capacidade de refino de petróleo, passando de 670 mil barris/dia para 1,3 milhão de barris/dia. O ritmo era alucinante: REGAP (MG) e REFAP (RGS) em 1968; REPLAN (SP), em 1972; REPAR (PR), em 1977; REVAP (SP), em 1980.
“Para se ter uma ideia da rapidez com que se construía uma refinaria e seus oleodutos na época, com a Petrobrás como integradora, em condições muito mais difíceis, com os mercados de bens e serviços em desenvolvimento no país, basta citar o caso da REPLAN [Paulínia], nossa maior refinaria em capacidade de processamento de petróleo (415 mil barris/dia), responsável por 20% do refino do petróleo no Brasil e 80% do petróleo nacional. Sua construção começou em julho de 1969, tendo sido inaugurada em 12 de maio de 1972, processando 126 mil barris/dia, parcela significativa do refino do país na época. Não bastasse ter sido construída em menos de 1000 dias, entrou em operação em 2 de fevereiro de 1972, três meses antes da inauguração”.
Essas refinarias foram construídas por empreiteiras privadas – mas não sob o “modelo EPC”, e, sim, sob a direção e fiscalização dos engenheiros da Petrobrás.
A comparação da AEPET é, justamente, com a RNEST (Abreu e Lima), principal projeto de refinaria desde 2003 (ou quase o único, pois a construção das refinarias do Maranhão e do Ceará foi suspensa e a primeira refinaria do Comperj ainda não entrou em operação):
“A Refinaria Abreu e Lima (RNEST) com capacidade de 230 mil barris/dia, utilizando modelos de gerenciamentos atuais e contratos tipo EPC, teve sua obra iniciada em set/2007 com previsão de início de produção para novembro de 2014” (Resposta da AEPET ao Diretor de Engenharia, Tecnologia e Materiais da Petrobrás, 27/05/2014).
Como não deve ter escapado ao leitor, a REPLAN tem quase duas vezes a capacidade de refino da Refinaria Abreu e Lima (RNEST), quando esta for, finalmente, finalizada (para o leitor exigente, que são quase todos: este “finalmente finalizada” é proposital).
RELATO
Que os monopólios e candidatos a monopolistas gostem desse “modelo EPC”, é compreensível. O objetivo deles, como já dissemos, é o sobrepreço e o superlucro.
Menos compreensível é que ele seja imposto à Petrobrás por alguém que foi nomeado pelo governo para dirigi-la – com a anuência da então presidente do Conselho de Administração da empresa, Dilma Vana Rousseff.
Vejamos como essa política contemplava (e contempla), pura e simplesmente, o interesse de alguns candidatos a monopólios privados, assim como o interesse dos que eram propinados por esses quase-monopólios. Ou, ainda, como essa política foi capaz de deformar empresas que, até então, tinham uma participação positiva no desenvolvimento nacional.
A UTC era uma subsidiária da OAS, especializada em montagem eletromecânica, comprada em setembro de 1996 pelo engenheiro Ricardo Ribeiro Pessoa. Era, diz Pessoa, uma das poucas empresas do país que estavam nesse ramo da engenharia.
O que segue são trechos de outro depoimento de Ricardo Pessoa:
“… a UTC evoluiu de apenas montadora eletromecânica para ‘epecista’; ‘epecista’ é o termo usado para designar a empresa que realiza todas as etapas de um empreendimento, que vai do projeto básico até assistência ‘à partida’, ou pré-operação;
“… em 2007 ou 2008 foi criada a UTC Dl – Desenvolvimento Imobiliário;
“… a UTC Participações foi criada ao mesmo tempo que a UTC Dl – Desenvolvimento Imobiliário;
“… em 2009 foi criada a UTC Óleo e Gás, que produz petróleo em campos maduros [campos terrestres já explorados pela Petrobrás];
“… depois foi criada a UTC Investimentos, aproximadamente em 2010;
“… a UTC Investimentos tem negócios na área de concessões, a exemplo dos aeroportos de Viracopos e de Feira de Santana, do estaleiro Enseada, em São Roque do Paraguaçu, na Baía de Todos os Santos, e a linha 6 do metrô de São Paulo;
“… em 2010, adquiriu a empresa CONSTRAN de Olacyr de Moraes, para também atuar na área de construção pesada;
“… a empresa UTC Defesa foi criada em 2013 ou 2014;
“… no exterior tem uma empresa chamada UTC Engineering, sediada em Houston;
“… também é sócio da empresa UTC Construction, sediada também em Houston, com bases avançadas no Colorado e no Texas, mas esses projetos não foram para frente;
“… abriu uma sucursal da UTC e uma sucursal da CONSTRAN no Peru, as quais nunca chegaram a ter contratos naquele país, encontrando-se atualmente fechadas”.
Até aqui, pareceria uma empresa nacional de extraordinário sucesso. O problema vem a seguir:
“… até 2006 não era imprescindível ter contatos políticos para conseguir contratos com a Petrobrás;
“… a partir de 2006, quando Paulo Roberto Costa já ocupava a Diretoria de Abastecimento, o declarante começou a ser solicitado a fazer ‘contribuições políticas’ em contrapartida aos contratos firmados com a Petrobrás;
“… o termo ‘contribuições políticas’ era utilizado pelo deputado José Janene, mas, na verdade, tais contribuições eram propina;
“… por volta de 2006 ou 2007, José Janene chamou o declarante até sua residência e informou que o Partido Progressista – PP tinha uma diretoria na Petrobrás, referindo-se a Paulo Roberto Costa e à Diretoria de Abastecimento, e que a partir daquele momento o declarante teria que pagar um percentual em cima de cada contrato com aquela diretoria;
“… Janene disse ao declarante que esses valores iriam para todos os membros do partido;
“… foi apresentado a Alberto Youssef na casa de José Janene; Youssef foi apresentado ao declarante como um empresário chamado de ‘Primo’; Paulo Roberto Costa posteriormente avisou para o declarante que, a partir dali, quem iria ‘operar’ os pagamentos dos percentuais destinados ao PP seria Alberto Youssef;
“… José Janene falava claramente que, se o declarante quisesse continuar trabalhando para a Petrobrás, teria que pagar propina aos membros do PP;
“… os pagamentos feitos no âmbito da Diretoria de Abastecimento eram feitos em espécie, a pedido do próprio Janene, e entregues a Alberto Youssef”.
VACCARI-DUQUE-PT
“… mais ou menos a partir de 2007 ou 2008, também foi solicitado pagar propina nos contratos da Diretoria de Serviços;
“… na área de serviços quem solicitava os pagamentos era Pedro Barusco, a mando de Renato Duque, indicado pelo Partido dos Trabalhadores – PT;
“… Renato Duque demandou ao declarante que fizesse pagamentos a João Vaccari;
“… os pagamentos eram feitos com base nos valores dos contratos;
“… a grande maioria dos pagamentos da propina ao PT em relação aos contratos da Diretoria de Serviços era feita via doações oficiais;
“… a outra parte da propina era paga diretamente a Pedro Barusco;
“… o declarante dava contribuições frequentes e regulares ao PT;
“… o declarante costumava atrasar os pagamentos da propina porque sabia que, na época de eleições, iria ser demandado novamente a fazer novos pagamentos;
“… dessa forma, o declarante acumulava grande montante de ‘débitos’ para pagar na época das eleições;
“… o declarante nunca pagou propina em relação a contratos da Diretoria de Exploração e Produção, nem da Diretoria de Gás e Energia;
“… nunca teve negócios na área da Diretoria Internacional;
“… entretanto, a maioria dos contratos da Diretoria de Exploração e Produção e da Diretoria de Gás e Energia passavam pela Diretoria de Serviços, que era a Diretoria que efetivamente fazia as contratações;
“… nessas ocasiões, havia a cobrança de propina por parte da Diretoria de Serviços;
“… os percentuais de propina usavam a referência de 1% do valor do contrato, tanto para a Diretoria de Abastecimento quanto para a Diretoria de Serviços;
“… o valor de propina correspondente a 1% do valor do contrato era negociado e pago de forma parcelada, conforme o cronograma de pagamentos de cada contrato;
“… o pagamento da propina era feito pela simples celebração do contrato, independentemente de eventual ganho ou perda do declarante quando da execução do mesmo;
“… em grandes pacotes de contratos, como no COMPERJ e na RNEST, bem como em HDTs e UGHs de diversas refinarias, o mesmo modelo de pagamento de propina narrado acima se repetiu em relação a outras empresas;
“… o esquema funcionava dessa forma para qualquer empreiteira, e não somente para a UTC”.