De 2019 até 2021, no front fiscal e na condução da Petrobrás não houve espaço algum para financiar o futuro
O professor da UFRJ Luís Eduardo Duque Dutra levantou uma questão fundamental, em artigo publicado nesta quinta-feira (24) no Valor Econômico, sobre a repartição da riqueza produzida pela Petrobrás. Pela importância e atualidade do tema, decidimos reproduzi-lo no HP com o intuito de colaborar para o debate desta que é uma questão candente para o presente e o futuro do Brasil.
O especialista adverte que a atual partilha, que privilegia os ganhos imediatistas dos acionistas, não leva em conta a necessidade de investimentos em projetos futuros por parte da empresa e também as demandas do Estado, representando a coletividade, com vistas ao desenvolvimento da sociedade. “O uso imediatista e oportunista dos enormes valores envolvidos indica falta de compromisso completa com o porvir”, aponta o professor de química.
“Os preços dos combustíveis e a distribuição de dividendos da Petrobras dão margem a várias discussões, mas, até aqui, pouco se fala sobre a partilha do excedente petrolífero no Brasil. De propósito, ou não, perde-se o âmago da questão – é a disputa pelo excedente, e não qualquer competição, que determina a dinâmica desta indústria”, explica Luiz Eduardo.
O autor cita exemplo de países exportadores e conclui que o Brasil destina pouco da renda petrolífera para os cofres públicos. “Comparado aos grandes países exportadores e aos países industrializados, o grau de apropriação ainda é bem menor por aqui. Em certos países, a apropriação está próxima (ou é superior) a quatro quintos. Portanto, ainda existe espaço para a parte do “leão” crescer no Brasil”, diz ele. Confira abaixo.
O excedente petrolífero e sua partilha no Brasil
LUÍZ EDUARDO DUQUE DUTRA (*)
Os preços dos combustíveis e a distribuição de dividendos da Petrobras dão margem a várias discussões, mas, até aqui, pouco se fala sobre a partilha do excedente petrolífero no Brasil. De propósito, ou não, perde-se o âmago da questão – é a disputa pelo excedente, e não qualquer competição, que determina a dinâmica desta indústria. Além disso, somando petróleo, gás natural, derivados e biocombustíveis, trata-se da maior indústria do país. Em 2019, respondeu por 11% do PIB industrial segundo a CNI e, depois da pandemia, a retomada foi sustentada. Pela sua dimensão, o destino da riqueza gerada merece mais atenção.
A contribuição da Petrobras à riqueza nacional, em especial, pode ser medida pelo seu valor adicionado bruto cotejado ao PIB. Em 2021, a estatal e maior empresa do país foi responsável por 5,2% deste. Seu crescimento foi notável no ano passado, o valor adicionado bruto alcançou R$ 453,08 bilhões, o que inclui a depreciação do capital fixo, a depleção das jazidas e a amortização das dívidas. Ao retirá-las, chega-se ao valor adicionado líquido de R$ 403,11 bilhões, que corresponde à riqueza criada pela empresa no ano passado.
Um valor colossal cuja divisão foi a seguinte: 8% foram para os trabalhadores, 19,1% para os credores e 46,3% para o fisco, 24,9% para os acionistas e 1,7% foi o lucro retido pela empresa. Cabe assinalar que, fora o tributo, o lucro correspondeu a nada menos que 46,3% do valor adicionado líquido e que 93% deste lucro foi repartido entre os acionistas. Em valores nominais, o que coube ao capital teve o seguinte destino: a banca se apropriou de R$ 77 bilhões, os acionistas dividiram R$ 100 bilhões e a empresa reteve bem pouco: R$ 7 bilhões.
Uso imediatista e oportunista dos enormes valores envolvidos indica falta de compromisso completa com o porvir
Considerando as incertezas da recuperação após a pandemia, a atual crise energética e as cifras mencionadas, conclui-se que beneficiar o acionista e quase nada reter, definitivamente, não é conveniente como estratégia, nem para estatal, nem para o Brasil. Além disso, a partir do valor adicionado líquido gerado pela Petrobras, “proxi” do excedente petrolífero, o mais interessante é desnudar como foi feita a partilha em 2021. Sem contar os trabalhadores da estatal, ela se fez meio a meio: 50,3% para o fisco (R$ 186,82 bilhões), 49,7% para o capital (R$ 184,24 bilhões).
A cláusula “fifty-fifty” da lei venezuelana, de 1948, vem à lembrança e, com ela, a necessidade de definir a renda e o excedente petrolífero. A renda petrolífera é aquela gerada na extração, numa primeira aproximação, é a quase-renda ricardiana; na teoria econômica mais moderna, é a renda diferencial. Comparado a ela, o excedente é muito maior, a ponto de distinguir a indústria de todas as outras: depois de extraído, o valor original do petróleo se multiplica ao longo de uma extensa cadeia produtiva, para alcançar uma dimensão extraordinária junto ao usuário final.
A história do recurso é o relato da conflituosa e secular construção de um arcabouço normativo, legal e infralegal bastante específico. Ele legitimou a crescente apropriação do Estado e o resultado surpreende, por não ser exatamente o esperado.
Quem mais se beneficiou foi o fisco dos grandes países importadores. Segundo J.M. Chevalier, em 2004, dois terços do excedente eram capturados por ele; o terço restante era dividido entre países exportadores e petroleiras. Um cálculo mais recente mostra que, em 2019, no Reino Unido e na França, a soma do excedente capturado pelo fisco na bomba de combustível chegou a ser 10% maior que o apropriado pela Arábia Saudita (em torno de US$ 200 bilhões), com um volume duas vezes e meio menor que as exportações sauditas.
Como não podia deixar de ser, a experiência nacional tem suas peculiaridades. Comparado aos grandes países exportadores e aos países industrializados, o grau de apropriação ainda é bem menor por aqui. Em certos países, a apropriação está próxima (ou é superior) a quatro quintos. Portanto, ainda existe espaço para a parte do “leão” crescer no Brasil. Aliás, não deixou de fazê-lo nos últimos oito anos. Contudo, considerando a natureza fiscal, extra e parafiscal das imposições, o que se descobre é que o aumento da apropriação se deu completamente fora dos cânones das finanças públicas e da tributação moderna.
Assim, a carga fiscal recorde no PIB de 33,9% tem tudo a ver com o petróleo. Em 2021, da arrecadação total dos tributos, 6,9% vieram do setor e foram coletados pela Petrobras. A estimativa do IBP é que toda a indústria contribuiu com 7,9% às receitas do governo (R$ 233 bilhões, Agenda da indústria, edição março de 2022). Há dois anos, antes da pandemia, somente os recolhimentos da Petrobras correspondiam a 10,1% da receita tributária, um patamar comparável ao francês.
O desenvolvimento do pré-sal permite prever que, interrompida pela pandemia, a tendência de maior captura do excedente pelo Estado deve ser retomada. Mais preocupante é o mau uso da parte que lhe cabe, na medida em que receitas extrafiscais passaram a cobrir custeio e não financiar investimento. Os ingressos orçamentários extraordinários (aproximadamente R$ 84 bilhões decorrentes da venda de direitos exploratórios) em dezembro de 2019, e o lucro líquido também extraordinário (R$ 100 bilhões repartido entre os acionistas), em 2021, têm em comum o uso imediatista e oportunista dos colossais valores envolvidos, além da completa falta de compromisso com o porvir.
Ora, é o que se repete nos dividendos do terceiro trimestre de 2022 e não é difícil concluir que a questão é anterior ao planejamento, à elaboração de qualquer política pública ou proposta de melhoria da governação. Ademais, a resposta é – ao mesmo tempo – política e econômica, diria Ricardo. Em pleno século XXI, trata-se de regular a acumulação capitalista do setor e, surpreendentemente, fazer dele o século do petróleo brasileiro.
Para tanto, não faltam recursos em óleo e gás, muito menos competência e tecnologia; o que falta é um novo regime distributivo e alocativo da fabulosa riqueza criada. E os diversos pressupostos são conhecidos, todos extrafiscais: o recurso é exaurível, o valor estratégico não se reflete no preço, assim como os danos ambientais de seu uso, o monopólio e a cartelização são frequentes e, enfim, o excedente econômico gerado é excepcional.
Em definitivo, a atual política fiscal e a estratégia da Petrobras são insustentáveis, comprometem a capacidade própria de investir e, assim, a continuidade da reprodução ampliada do capital petrolífero estatal. A condição pretérita a qualquer mudança é a redefinição pelo Estado brasileiro sobre o que fazer do excedente petrolífero. Este continuará extraordinário ao menos até o ano que vem, depois é impossível saber. De 2019 até 2021, no front fiscal e na condução da Petrobrás – os dois mais importantes instrumentos da política petrolífera – não houve espaço algum para financiar o futuro.
(*) Luís Eduardo Duque Dutra é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris-Nord e professor adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de “Capital Petróleo: a saga da indústria entre guerras, ciclos e crises” pela editora Garamond