Nenhum outro homem, nenhuma outra figura histórica, condensou tanto, em grau tão elevado, a luta pela Abolição da escravatura – e, portanto, a luta pela constituição de nossa nacionalidade – quanto Luiz Gama.
É verdade, ele não viu a Abolição. Entretanto, foram os seus seguidores que a fizeram.
A tal ponto que, quando de sua morte, em agosto de 1882, a “Gazeta do Povo”, de S. Paulo, disse em editorial: “A morte de Luiz Gama é daqueles fatos que pesam sobre uma nacionalidade como uma tremenda desgraça”.
Não era, evidentemente, um jornal editado, publicado ou financiado por negros. O negro, nesse episódio, era Luiz Gama.
Essa capacidade de enxergar a Abolição como parte inseparável da libertação do povo brasileiro – e da constituição de nossa Nação – é o legado de Luiz Gama.
Isto jamais fez – é bom frisar – com que ele subestimasse a conquista da plena cidadania pelos negros, como mostra a sua defesa de José do Patrocínio.
Vale a pena, aqui, relembrar.
Em 1880, Patrocínio, que começara uma série de conferências no Teatro S. Luiz, no Rio de Janeiro, esteve em São Paulo.
Foi, então, que sofreu um ataque raivoso dos escravagistas, nas páginas do jornal “Província de São Paulo”. Diziam eles, atacando Patrocínio: “Com muita propriedade, poderíamos (…) chamar o orador do [Teatro] S. Luiz de ‘produto’ do gazetismo da Corte. Esse homem a quem a polícia em qualquer outro país, em qualquer outro lugar, aqui mesmo na roça, habitada por gente ‘pior do que etc.’ já teria convencido de que crime é dirigir injúrias contra pessoas que não o conhecem, que não se incomodam com as sua bravatas na rua do Ouvidor…; a polícia já o teria convencido que o crime não está em possuir escravos legitimamente adquiridos, e que a nossas leis garantem o direito de propriedade, e entretanto a polícia da Corte não o tem feito. (…) O célebre orador festejado pretende fazer curvar diante do seu gênio todos os varões ilustres desta nação (…); em uns não vê senão uma figura de feitor (…); em outros só vê comanditários de casas comerciais contrabandistas, sócios de bancos falidos, (…) senhores de fazenda, donos de engenho, solicitadores de votos, oradores fofos, outros que ao chegarem ao espelho recuam diante da figura de um negro (ilusão de ótica de que está para todo o sempre livre o escritor da Gazeta [ da Tarde] e orador do S. Luiz) (…) A questão carece de uma solução pronta; ou se dê as rédeas do governo a esse homem e a seus colegas da Gazeta da Tarde para que se acabem os inauditos abusos, que em tudo pretendem enxergar, para que passem carta de alforria aos nossos escravos, mas sem injuriar-nos, sem pregar a insurreição contra nós, que inermes, desprotegidos, longe das capitais, estamos ameaçados de cair, uns após outros, vítimas dos ódios que acendem em seus se[dicio]sos discursos; para que enfim ponham termo ao estado inteiramente anômalo, (segundo dizem), deste país de velhacos e beócios, ou chame-os a polícia à ordem (…)” cit. in Ligia Fonseca Ferreira, Com a Palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas, Imesp, S. Paulo, 2011, p. 151).
Luiz Gama, então, escreve uma carta para a “Gazeta do Povo”, notável pela concisão e intensidade do seu conteúdo:
“Gazeta do Povo, 1 de dezembro de 1880.
“Ilustrado redator: Acabo de ler, sem espanto, mas com pesar, o contristador escrito, publicado na (…) Província [de São Paulo] de hoje, contra o distinto cidadão José do Patrocínio.
“Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, como supõem os especuladores, à semelhança da terra, ao través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.
“Vim [lembrar ao] ofensor do cidadão José do Patrocínio por que nós, os abolicionistas, animados de uma só crença, dirigidos por uma só ideia, formamos uma só família, visando um sacrifício único, cumprimos um só dever.
“José do Patrocínio, por sua elevada inteligência, pelos seus brios, pelo seu patriotismo, pela nobreza do seu caráter, pela sua honradez, que não têm cores, tornou-se credor da estima e é digno dos louvores dos homens de bem” (idem, grifo nosso).
Já publicamos, em outra oportunidade, a carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, onde ele se refere à sua infância, à sua venda, pelo pai, como escravo, à sua mãe, Luiza Mahin, e ao período em que foi escravo.
Hoje, em homenagem ao 13 de Maio, preferimos o texto de um de seus discípulos, um jovem branco que, depois, se tornou um de nossos maiores escritores, Raul Pompeia – não foi, como se sabe, o único a colocar-se sob a liderança de Luiz Gama; o próprio Rui Barbosa assim se coloca em um texto no qual lembra a participação de ambos na redação do “Radical Paulistano”, órgão da ala esquerda do Partido Liberal.
O artigo de Pompeia foi publicado na “Gazeta de Notícias” de 10 de setembro de 1882, logo após o funeral de Luiz Gama.
Última página da vida de um grande homem
RAUL POMPEIA
Por volta das três horas e meia do dia 24 entrou-me pela casa um amigo:
– Sabes? disse bruscamente, o Luiz Gama morreu!…
– O que está dizendo?!…
– Morreu…
– … Luiz Gama?!
– Sério, tristemente sério, afirmou-me o amigo.
Era sério, era verdade. Aquele grande benfeitor da humanidade não existia mais, aquele enorme coração, que só batia pelos outros, cessara de palpitar; aquela grande alma, feita de todas as nobrezas do caráter, dissolvera-se pelo desconhecido da morte.
Eu amava-o. Votava-lhe a adoração humana que inspiram-me os largos espíritos cândidos de desinteresse.
O seu passado lendário impunha um respeito amoroso que eu tributava-lhe, como as velhas coisas sagradas que lembram-nos uma tradição de sacrifício.
Tarde tive a grata felicidade de conhecer Luiz Gama.
A primeira vez que viu-me, mandou-me sentar a uma pequena mesa do seu escritório e ditou-me uma carta. Achei esplêndida aquela familiaridade repentina. A história de Luiz Gama, tão minha conhecida, veio-me à mente como um raio e combinou-se admiravelmente com aquele rasgo de intimidade. Ao fim da primeira palestra, já o homem chamava-me você. Era adorável…
Eu sentia uma ternura por aquele modo franco e descuidoso, com pretensões à brutalidade, e desmaiando em doçura insinuante, paternal. Gostava daquela rudez granítica, recortada em arestas selvagens, porque sentia cachoeiras pelas pedras, uma cascatinha vítrea e sonorosa. O conjunto cativava-me.
Depois, não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros, mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros… inúmeros… E Luiz Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento.
Toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, um outro a liberdade, alguns dinheiro, alguns um conselho fortificante…
E Luiz Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sombra de lucro, entendendo que advogado não significa o indivíduo que vive dos jantares que lhe paga Têmis; entendendo que deve-se fazer um pouco de justiça grátis. E, com esta filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bem. O herói…
Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de algum cliente mais abastado; doente, moribundo, encontrava no âmago da sua natureza uma reserva instintiva de energia, e ia gastá-la em proveito da justiça e da beneficência oculta, avessa à fanfarra das reclames, sublime. Tudo isto conglobava-se-me no espírito, como uma grande esfera de luz, sobre a qual levantava-se a figura nobre, irresistível do bom Luiz Gama. Havia para ele como que um trono em minha alma.
Eu votava-lhe o grande culto das lendas heroicas…
Entram-me de súbito por casa, dizendo:
— Morreu Luiz Gama!…
* ** *
Estes últimos dias têm sido esplêndidos em São Paulo.
A tarde de 24 estava incomparável. O céu estava profundamente azul: não havia senão, a bordar o mais remoto horizonte, umas linguetas argentinas de nuvem. Sol a deslumbrar. Vasta tranquilidade pelo espaço.
Saí de casa desesperado, esmagado por uma espécie de raiva surda, sufocante, contra esse monstro terrível que habita não sei onde, e que de vez em quando, estende para fora a garra e leva-nos um ente querido.
Tomei o bonde do Brás.
Em caminho, como que serenou a íntima tempestade que sufocava-me a garganta e estrangulava-me o espírito. Ao rolar estremecido do bonde, foram-se-me acomodando na mente as ideias que me haviam desabado como rochedos sobre o crânio, no momento da notícia…
Então Luiz Gama morrera!… Aquele jovial, aquele folgazão, aquele ameno, com quem eu estivera, não havia três dias, no escritório, ouvindo-lhes umas cousas filosóficas e amargas, envoltas em ironias sem veneno, em pilhérias desenluvadas, mas justas, a propósito das mesquinhezas políticas da terra, que o haviam exilado para o fundo do seu gabinete de advogado; aquele homem morrera…
Invadiu-me o ânimo, nessa ocasião, a incredulidade, irracional, instintiva do horror à morte. Não sei porque, principiei a não crer. Aquilo era falso, Luiz Gama vivia…
Tive vergonha de externar o meu pensamento. Não acreditava… Porquê? Onde falta o porquê, aí vive o desvario. Tive vergonha. Aquilo era a covardia da vida. Não acreditar era fechar os olhos para não ver o espectro dos túmulos.
Refleti, isto é, abri os olhos.
Desenhou-se-me então pelo espírito a imagem simpática do grande homem, alegre, ruidosamente alegre; mas revelando na palidez doentia do rosto, que ia-lhe pelas fontes da vida algum mal terrível. Lembrei-me de que Luiz Gama já não descia as escadas do escritório, sem que o amparassem. Ora dava-lhe o braço o seu jovem amigo Brasil Silvado, ora o seu dedicado Pedro; uma vez até, permitam-me que o refira orgulhosamente, uma vez, até eu mesmo dera-lhe o braço.
O Luiz Gama dos últimos tempos era uma venerável ruína. O descombramento total figurou-se-me naturalíssimo. A cruel verdade.
Perto da moradia de Luiz Gama, o bonde parou. Dirigi-me para lá enxugando as lágrimas que me ferviam nas pálpebras.
A casa era uma devastação. Sentia-se que por ela havia passado alguma coisa formidável como a derrota dos ciclones.
Não havia um semblante sobre que se não lesse o vestígio da rajada das catástrofes. Choravam os homens como uns covardes, as senhoras pareciam exalar a vida em convulsivos soluços. Os mais rijos sentiam-se acabrunhados… Falar da esposa do finado fora violar o silêncio sagrado que deve rodear os martírios…
Na sala da frente estava o corpo… Lá estava sobre duas mesas aproximadas um grande cadáver, reto e fixo, as duas mãos rijamente cruzadas sobre um largo peito, trajado de negro, coberto a meio corpo por um pobre lençol grosseiro. O perfil do rosto alteava um pedaço de pano em frias saliências… Levantava-se o lenço e via-se um belo semblante tranquilo como a noite do túmulo, ligeiramente alborizado pelo congelamento do sangue, dois olhos cruelmente cerrados para sempre sobre as mais suaves estrelas de bondade e de esperança, dois lábios colados como as pálpebras, selados por um ligeiro sorriso irônico sobre as mais ternas consolações de um largo coração. Impressionava a serenidade majestosa daquele morto. Sem aquele sorriso queixoso, que espiava por um canto dos lábios, fora a efígie de um Cristo.
— Parece uma imagem, diziam…
Estive a olhar longamente para aquela estátua tombada… Do interior da casa, chegava como em lufadas de alegria o gorjeio de muitos passarinhos…
* ** *
Luiz Gama gostava das flores…
Das flores e dos passarinhos. Devia gostar também das crianças. Essas grandes almas humanitárias evadem-se nas horas vagas para a inocência. Fartas de lágrimas e de misérias, refugiam-se no convívio das risadas, dos perfumes e dos gorjeios. Pássaros, flores e crianças, a fraqueza sublime dos fortes…
A casa de Luiz Gama estava cheia de gaiolas; mais de vinte contavam-se. Um cardeal de estimação, muitos canários…
À câmara mortuária toda a passarinhada enviava o pipilar inocente e ruidoso…
Pelas janelas da sala de jantar enfiava-se a vista para um grande jardim…
Logo ao entrar pelas ruazinhas margeadas de grama demoravam os olhos sobre centos de parasitas, pendentes de longos fios de arame, ostentando lindas flores rubras, azuis, roxas e umas folhas alongadas como lâminas de punhais, ou arredondadas como línguas, muito musgo envolvendo as parasitas, velhas grades de arame envolvendo canteiros preciosos; grandes tinas com plantas de fina espécie, uma delas cheia de água alimentando alguns feixes de uma parasita dos brejos…
– Aí vê-se por toda a parte o dedo de Luiz Gama, disseram-me.
Mais para o interior do jardim, avistavam-se tapetes de violetas, roseiras, curvando-se em arco sobre quem passava, lírios abertos tristemente para o céu como lábios queixosos…
Resplendia uma tarde divina. O sol, ainda fora, sacudia sobre o jardim, uma chuva de puro ouro; chegava a viração da tarde, os arbustos inclinavam simultaneamente de uma para outra banda a cabeça como fakirs em oração.
Os pessegueiros erguiam vaidosamente centenas de varas como cetros, literalmente forrados de flores do mais fino rosa.
Uma alegria vasta, geral pousava ali pela romaria das jabuticabeiras, ao longo das palmas de bananeira; enrolava-se como as serpentes do Tirso de Kermes pela flechas dos pessegueiros e pelos galhos das amoreiras salpicadas de frutos.
Ali, à luz daquele céu cristalino e satinoso [satin=cetim], sentia-se a impressão dulcíssima da languidez harmoniosa, bíblica do Éden.
De longe vinham gargalhadas frescas dos meninos; dos arvoredos vinham chilros festivos de passarinhos.
Uma orgia franca de prazer…
Voltaram-me aos olhos violentamente as lágrimas.
Aquelas aves, aqueles meninos e aquele pomar não sabiam que morrera Luiz Gama…
A cruel alegria dos inconscientes…
Não mais viria o amigo daquelas flores e o cultor daquelas árvores visitá-las, ao amanhecer, nem assistir naquele pomar às agonias da tarde longa do estio… E tudo sorria!…
Tudo aquilo lembrava-me o Éden, sim, mas o Éden abandonado.
Estava marcado o dia seguinte para o saimento.
Às 6 horas da manhã, fui ainda uma vez visitar o corpo do meu adorado Luiz Gama.
Rompera um dia, como raros dias de São Paulo. A manhã, ligeiramente fria, impregnava-se-me pelos poros, como um banho de alegria. Eu estava, porém, refratário à manhã. Caminhava triste, refletindo na catástrofe que significava a morte de Luiz Gama. Lembrava-me que me haviam mostrado na véspera, em casa do morto, uma pequena guarnição de tijolos com que Luiz Gama andava cercando os alegretes do jardim… A guarnição estava em meio…
Eis um trabalho do homem, que fica por concluir, observam-me…
Eu refletia que, como a guarnição dos alegretes, uma outra obra de Luiz Gama ficara em meio, transformada em fuste partido para adornar-lhe o túmulo, – o sonho de todos os seus dias: a abolição.
Eu procurava um soldado da sua força, queria espantar do espírito o meu desânimo. E só me aparecia a desoladora imagem da coluna truncada…
Depois, sem consolar-me, resignava-me com a esperança de que o momento histórico é muitas vezes a razão de ser de certos homens.
Antes de chegar à casa do morto, encontrei-me na estrada do Brás com uma pessoa da família.
– Já por aqui? disse-me.
– Vou vê-lo ainda uma vez…
– Eu vou à cidade trocar a tampa do caixão… Esta é pequena.
E indicou-me um indivíduo que se aproximava, tendo à cabeça uma tampa de esquife, com os galões fulgurando ao sol…
Eram os preliminares do saimento.
Já se havia revestido a jovial morada da tristeza mercenária dos aparatos fúnebres.
Um brutal reposteiro negro fechava lugubremente a porta. A sala ardente ostentava umas largas fachas de fazenda preta agaloada de amarelo, distendidas do teto para o chão, na sua convencional seriedade lúgubre.
No meio da sala havia uma pequena essa, forrada de negro e dourado; ao fundo um singelo altar. No altar havia, enfiados como silenciosos guardas, um crucifixo e seis velas; sobre a essa jazia um longo esquife listado de ouro, cercado de outras seis velas. Espessa penumbra flutuava no ar; mal se via, através de umas estreitas frinchas das janelas, o dia brilhando lá fora.
Dentro daquela sala, julgava-se a gente encerrada num grande esquife quadrado, ou em alguma espaçosa sepultura. Desgostava mais do que entristecia. Se o gosto dos mortos se consultasse, Luiz Gama quisera que o seu corpo fosse bucolicamente estendido ao ar livre, à sombra de uma bela árvore cheia de passarinhos e peneirando flores, guardado por alguns bons amigos, cercado da surdina longínqua, indistinta da natureza viva e selvagem…
Por que se havia de privar aquele pobre morto da claridão generosa daquela manhã?
Eu fui a uma das janelas e abri-a um pouco. Um raio de claridade pura entrou pela sala e foi até o esquife, como um menino inocente e curioso.
Exatamente nessa ocasião, invadiram o recinto mortuário um bando de meninas que iam à escola, com as suas ardiosas velhas e os seus cadernos enegrecidos e as caixinhas de costura à ilharga… Examinaram o morto e retiraram-se logo, caladas e tímidas.
Depois entraram sucessivamente amigos do finado, negros, que ele libertara, vizinhos que o prezavam. Todos, com um raminho de alecrim que havia por perto num copo, respingavam água benta sobre o cadáver.
Um deles acercou-se da essa e descobriu o rosto do morto. A fisionomia calma não perdera o seu ar imponente. Apenas sentiu-se como que um ressecamento da pele.
Na véspera, um escultor fizera um gesso, um molde do semblante do cadáver. Nota-se também um ou outro vestígio do gesso. No mais, era a mesma aparência venerável, distinta, serena, marmórea…
Assim pelas três horas, começou a atividade precursora do saimento. Principiou a encher-se de gente a casa. Na rua parava-se, a olhar para o reposteiro negro da casa enlutada.
Fechou-se o caixão.
Momentos antes, houvera uma cena de que a linguagem não pode dar conta: – a despedida da viúva.
Atroz!
* ** *
E a tampa do caixão caía cerrando-se sobre o defunto com o ruído de uma boca que mastiga.
Dentro de poucos minutos, o povo, aglomerado diante da casa, viu levantar-se o reposteiro negro e estender-se para a rua um longo esquife, coberto de luzentes listrões de ouro. Depois do esquife, precipitou-se uma multidão numerosa. Todos de preto.
Era o enterro.
Devia fazer-se a pé. O cemitério estava longe, no extremo oposto da cidade, para as bandas da Consolação. Porém, que o corpo do amigo de todos, como chamavam a Luiz Gama, fosse por todos um pouco carregado. A considerável distância que separa os dois arrabaldes, devia ser percorrida a pé, para que a muitos fosse possível a honra de levar aquele glorioso cadáver.
Ao sair da casa, pegaram nas argolas Gaspar da Silva, do Centro Abolicionista, e outros amigos de Gama, como o dr. Antonio Carlos, o dr. Pinto Ferraz, o conselheiro Duarte de Azevedo…
Em roda do féretro apertava-se a multidão, empenhando-se por tomar as alças. Havia de prestar-se àquela grande relíquia uma homenagem ardente.
Para diante caminhava uma porção imensa do povo; atrás do préstito, desfilava uma enorme quantidade de carruagens, seguindo a passo.
Entre as carruagens, via-se o coche fúnebre. Vazio.
Era um préstito respeitável.
Em meio do caminho do Brás, uma banda de música, ali postada, saudou a aproximação do féretro com uns acordes lacrimosos, umas notas surdas que pareciam chegar do horizonte ou das nuvens.
Ritmados pela cadência daquela música, foram-se os passos da multidão pela estrada acima. Um silêncio mortal rodeava o finado, sendo apenas interrompido pelos que pediam que lhes deixassem também carregar o esquife.
Por cima do préstito flutuavam os esplendores de uma tarde olímpica.
O sol batia de rijo sobre as cabeças descobertas e dourava a poeira espessa que levantava-se da estrada. Para longe fugiam os campos do Carmo, muito verdes, rasgados em vários pontos pelos extravasamentos do Tamanduateí, alagados em grandes espelhações cintilantes.
Da linha do horizonte erguiam-se colunas azuis de fumaça, que dissolvia-se pela transparência imaculada da atmosfera.
Em frente alinhava-se, como em cerrado pelotão, a casaria da cidade.
As habitações sobrepostas pelos outeiros de São Paulo, pareciam apertar-se para espiar o préstito. As torres, satisfeitas da sua estatura, olhavam, sem esforço, por cima dos telhados…
E a procissão avançava. E a banda de música ia desfolhando adiante do esquife as suas harmonias roxas e soluçantes.
Na ladeira do Carmo, a irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, para cujos fins de beneficência o defunto concorrera um dia, veio encontrar o enterro, com as opas de azul e branco e suas enormes velas, grossas como cajados.
Ao entrar na cidade, uma comissão de seis membros do Centro Abolicionista de São Paulo tomou as alças do caixão.
A cidade estava triste. Inúmeras lojas tinham as portas fechadas, em manifestação de pesar; as bandeiras das sociedades musicais e beneficentes da capital pendiam a meio mastro. Apinhava-se povo nos lugares por onde devia passar o enterro. As janelas acotovelavam-se as famílias. Em alguns pontos viam-se pessoas chorando.
Ia sepultar-se o amigo de todos.
– Nunca houve coisa igual em São Paulo, dizia-se pelas esquinas.
E o nome de Luiz Gama, coberto de bênçãos, corria de boca em boca.
No posto de honra das alças do esquife sucedia-se toda a população de São Paulo. Todas as classes representavam-se ali.
Reparou-se particularmente num contraste estranho. Em caminho da Consolação viu-se Martinho Prado Júnior, o homem que quer a introdução de escravos na província, a fazer pendant com um negro esfarrapado e descalço. Um e outro carregavam orgulhosamente, triunfantemente o glorioso caixão.
Eu perguntei a mim mesmo se Martinho Prado era um escravocrata sincero.
O esquife partindo do Brás às 4 horas e 5 minutos, às 5 e meia ainda estava longe do cemitério.
E ninguém se fatigava. A multidão não rareava.
O sol, muito próximo do horizonte, varria a rua com mil feixes rasteiros de luz. Um cone deslumbrante de raios feria os olhos da multidão e lampejava nas facetas douradas do caixão.
Meia hora mais tarde passava o fúnebre cortejo por entre os pilares do portão do cemitério. O sol se fora pelo horizonte abaixo…
A luz do dia trepava pelas árvores espetrais do Campo Santo, para extinguir-se na profundidade do céu.
A banda de música misturava com as sombras do crepúsculo a tristeza das suas melodias.
Às 7 horas, entrava para a capelinha do cemitério rodeando-o sempre uma multidão compacta, no meio da qual se confundiam os membros do Centro Abolicionista, da Caixa Emancipadora Luiz Gama, da Loja América, de que era venerável o finado, da Loja Sete de Setembro, da Sociedade Quatorze de Julho, do Clube dos Girondinos e outros. Na capela, ficaram depositadas as coroas oferecidas pelo Centro Abolicionista, pela Gazeta do Povo, pela imprensa portuguesa, pelo comércio de São Paulo, pelo Clube Ginástico Português, pela Academia de Direito…
Da capela, conduziu-se o féretro para a sepultura.
Houve aí uma coisa solene que se deve registrar.
Colocara-se o caixão à beira da cova. A multidão, que invadira o cemitério, rodeava o sepulcro, enchendo uma área espaçosa.
A lua, que principiava a fazer sentir os seus clarões, banhava de azul a multidão, projetando no fundo do sepulcro aberto a sombra dos circunstantes, como se lhes escrevesse lá dentro o memento homo…
Veio um padre. Resmungou umas frases em latim, sacudiu água benta, e retirou-se.
Quando os coveiros iam descer para o túmulo o cadáver, um homem disse:
– Esperem!… O dr. Clímaco Barbosa (era o homem) ergueu então a voz. A voz soluçava-lhe na garganta. Disse duas palavras, sem retórica, sem tropos, a respeito do grande homem que ali jazia caído…
A multidão chorou.
Então, o orador reforçou a voz, reforçou o gesto; e intimou a multidão a jurar sobre o cadáver, que não se deixaria morrer a ideia pela qual combatera aquele gigante.
Um brado surdo, imponente, vasto, levantou-se no cemitério. As mãos estenderam-se abertas para o cadáver…
A multidão jurou.
* ** *
Passaram os coveiros dois laços às extremidades do esquife e o desceram para o fundo da sepultura…
* ** *
Eu olhei para a noite. Estava calma e estrelada. Com o espírito perdido em meio da majestade serena do espaço, fui-me encaminhando para casa.
* ** *
Sobre minha mesa achei um jornal do dia.
Trazia a notícia do passamento de Luiz Gama:
“Faleceu ontem o cidadão Luiz Gonzaga Pinto da Gama, conhecido advogado desta cidade.”
Só.
Encolhi os ombros.
É preciso que, mesmo nos momentos épicos, apareça uma ponta da miséria humana.
Raul Pompeia
São Paulo, 3 de setembro de 1882.