A Confederação Israelita Brasileira, Conib, que silenciou diante da afirmação de Bolsonaro de que “podemos perdoar o Holocausto”, brande com a acusação de “antissemita” e ameaça processar o opositor e ex-candidato a presidente, Ciro Gomes, que denunciou a ”fração corrupta da comunidade judaica”
“Os tempos de crise, são como gigantescos holofotes que iluminam a realidade: a face animalesca da burguesia judaica se mostra nestes dias sombrios”.
Antes que atribuam a frase a algum outro ‘antissemita’, esclareçamos que ela foi proferida por um dos mais destacados heróis judeus durante o levante do Gueto de Varsóvia. A denúncia partiu de Emanuel Ringelblum, militante de uma das organizações judaicas durante o levante do Gueto de Varsóvia, a Linke Poalei Tzion (Trabalhadores de Sião de Esquerda).
Ringelblum e os principais organizadores do levante, sob cerco nazista e decididos a lutar mesmo diante de uma correlação de forças extremamente desfavorável, tiveram que ser muito precisos e, logo no início da estruturação das organizações de combate, esmeraram-se em perceber e desnudar os principais inimigos.
Nestas condições, é possível denunciar como antissemitismo as palavras de Ringelblum? É possível enxergar um laivo sequer de antissemitismo entre os editores de um dos jornais que ajudaram a organizar o Levante?
Pois é. Aqui temos um desses jornais que divulgavam as ideias da Resistência, o “Zsa Nasza i Wasza Wolnozc” (Para nossa e vossa liberdade, em polonês), que em sua edição de número 7, de agosto de 1941, que afirma:
“A desesperada situação no gueto resulta, em primeiro lugar, da política fascista alemã. O Conselho Judaico de Varsóvia e os vários órgãos que lhe são subordinados, sobretudo o Departamento da Alimentação, acham-se sob o domínio de comerciantes e industriais que realizam uma única política: a daqueles que querem enriquecer, viver à custa da miséria dos judeus. Pelo estado reinante no Gueto de Varsóvia, são responsáveis, em primeiro lugar os alemães, mas o Conselho Judaico também o é.”
O editorial aponta, em realidade, o dedo acusador contra os verdadeiros antissemitas. Os que optaram por – além de se salvarem através da traição – e, tirando proveito da miséria então reinante entre os judeus, enriquecerem.
Voltemos aí às duras, mas, à época, absolutamente necessárias e esclarecedoras palavras de Ringelblum, que além de destacado combatente, foi um dos cronistas da vida no Gueto: “Toda a situação do Conselho Judaico é uma só cadeia de injustiças perante a pobreza, que clama por vingança. Se no mundo existisse um Deus, ele destruiria com raios e tempestades esse ninho de crueldade, hipocrisia e roubo. Todo o conjunto da política financeira do Conselho Judaico é um único e imenso escândalo”.
O nazismo foi derrotado. Graças a Ringelblum e a uma multidão de heróis que se lançaram decididos à luta contra o racismo doentio que seus carrascos manifestavam e perpetravam e contra os que com eles colaboravam.
Passaram-se 72 anos desde aqueles hediondos crimes que, revelados, estarreceram o mundo.
No dia 5 de abril de 2017, 300 pessoas que, em sua grande maioria, se reconhecem como judeus, reúnem-se na Hebraica, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, para aplaudir um candidato que já defendera a tortura contra os brasileiros que resistiram heroicamente ao arbítrio: Jair Bolsonaro.
Nenhum deles esboçou qualquer repulsa ou se retirou do salão quando ele disse a que veio, através de uma terrível estupidez:
“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas [arroba é uma medida usada para pesar gado; cada uma equivale a 15 kg]. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”, disse, sob risos da plateia.
Já como presidente, Bolsonaro vai a Israel. Convidado, visita o museu Yad Vashem (dedicado à preservação da memória e em homenagem aos que tombaram sob o tacão nazista ou resistindo a ele, estes, integrantes de uma ampla frente de forças de esquerda que se forjou para enfrentar e varrer os monstros que conduziam a guerra de dominação e as chacinas. Uma esquerda que lutando do lado de fora dos muros dos Guetos e dos campos de extermínio conseguiram, ao final, libertar milhares de famélicos judeus). À saída, Bolsonaro profere mais uma barbaridade: “Não há dúvida de que o nazismo é um movimento de esquerda”. Uma inaceitável afronta aos que ali são lembrados e homenageados.
Já de volta ao Brasil, em reunião com um grupo de religiosos evangélicos, comete sua falta mais grave: enquanto presidente de um país, onde a democracia foi reconquistada a duras penas e que teve o desprendimento de mandar milhares de seus filhos para o combate contra o nazifascismo na Europa, não hesita em aliviar os exterminadores: “Podemos perdoar o Holocausto”, diz.
Em nenhum dos três casos, a Confederação Israelita do Brasil (Conib) achou necessário se manifestar.
Silenciou mesmo depois das palavras de repulsa do presidente de Israel, Reuven Rivlin: “Nós sempre iremos nos opor a aqueles que negam a verdade ou aos que desejam expurgar nossa memória —nem indivíduos ou grupos, nem líderes de partidos ou premiês. Nós nunca vamos perdoar nem esquecer”.
Silenciou, mesmo quando a direção do museu Yad Vashem se manifestou com mais dureza ainda: “Não é direito de nenhuma pessoa determinar se crimes hediondos do Holocausto podem ser perdoados”.
Ao contrário, é sabido o apoio de infausto contingente da comunidade judaica a este detrator.
Basta ver a manifestação do então presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro, Fierj, Ary Bergher, ao entregar um documento com propostas, supostamente formuladas pela comunidade judaica, ao presidente do partido de Bolsonaro, Gustavo Bebiano, em meados de outubro de 2018: “…em nome da Conib (Confederação Israelita do Brasil), por intermédio de seu presidente, Fernando Lotemberg, e eu, Ary Bergher, presidente da Federação Israelita, encaminhamos este documento de apoio à democracia (…) e de apoio ao nosso presidente”.
Diga-se, a bem da comunidade judaica carioca, que o ato de pré-lançamento da campanha bolsonarista na Hebraica teve como contraponto uma manifestação contrária diante dos portões do clube. E mais, a tensão gerada com o apoio de dirigentes de entidades judaicas a Bolsonaro acabou explodindo em uma semana, quando a discussão ficou acalorada entre estes apoiadores e outros membros da comunidade que repudiaram o apoio. Questionado, durante a abertura de um festival de dança israelense, Bergher, que advoga a favor de Eike Batista e Sergio Cabral, agrediu aos gritos Fanny Feldman Schneider, de 88 anos que prestou queixa na delegacia mais próxima. A revolta com a atitude descompensada, fez com que Bergher pedisse afastamento por tempo indeterminado.
É neste contexto, após essa desastrosa sequência de inaceitáveis omissões e imperdoáveis atropelos, que a mesma Conib se acha em condição moral para processar, acusando de manifestação de “antissemitismo” a fala do ex-candidato a presidente e ex-governador, Ciro Gomes, através da qual dirigiu-se explicitamente a uma “fração da comunidade judaica”.
Disse Ciro:
“Bolsonaro diz a grupos de interesse o que eles querem ouvir. Por exemplo, para os amigos dele aí, esses corruptos da comunidade judaica, que acham que, porque são da comunidade judaica, têm direito de ser corrupto. Corrupto, para mim, não interessa se é curdo ou cearense. Corrupto é corrupto, ladrão é ladrão. Ele disse para eles que ia transferir a embaixada do Brasil [para Jerusalém] a custo de grana para campanha. Depois chegou lá dizendo que não vai mais.”
Duro demais? Incômodo? Sem dúvida. Antissemita? Calma aí, Conib, é melhor mirar na direção certa, pois todos aí sabem (ou pelo menos é o que se espera de uma entidade que diz representar os judeus) que o fascismo é que alimenta e se alimenta do antissemitismo. Que racista e, portanto, corrupto até a medula, é o fascismo e, por via de consequência, seus apologetas.
Pois muito bem. Se não querem entrar pra valer na luta contra o antissemitismo e sua essência, o fascismo, pelo menos deixem em paz quem está na briga contra os que agridem a nossa democracia conquistada a tanto custo, ainda mais quando não falou nenhuma mentira. É o melhor que podem fazer.
Para deixar ainda mais claro o risco que a Conib, com suas atitudes, incluindo as ameaças a Ciro, acaba trazendo a toda a comunidade judaica, concluímos estas nossas breves observações com as palavras de alerta formuladas por Mauro Nadvorny, brasileiro, que hoje reside na cidade israelense de Hod Hasharon, e é um dos integrantes do grupo de debates pela Internet “Resistência Democrática Judaica”, formado quando da eleição de Bolsonaro:
“Conhecem aquela história de que quem tem telhado de vidro, não joga pedra no telhado do vizinho? Pois bem, as bandeiras de Israel nos palanques dele, a troca da embaixada, a vinda do Bibi para a posse e a ida dele para Israel vão cobrar seu preço.
Enquanto tudo eram flores, nossos corruptos faziam pares aos demais corruptos com uma alegria imensurável. Bastou um ex-candidato falar deles e já encontraram quem os defenda. Imaginem chamar um judeu, qualquer um que seja, de corrupto. Isso é antissemitismo, bradam eles por detrás das instituições. As mesmas que fazem ouvidos moucos às declarações do presidente de que ‘nazismo é de esquerda’ e que ‘devemos perdoar o Holocausto’.
Interessante como se acham intocáveis e impressionante ver como judeus ‘de esquerda’ saem em defesa deles. Acham que ao se referir a “esses judeus corruptos” estaria afirmando que os judeus são corruptos, mas quando o presidente afirma que devemos perdoar o Holocausto, está se referindo ao perdão celestial. O fato é que Ciro se refere a nossa parcela de corruptos e o Bolsonaro, este sim, é um ignorante com faixa de presidente.
Tratem de se acostumar ao que está vindo por aí. A história não vai perdoar. Muitos judeus, alguns corruptos e outros de boa-fé apoiaram Bolsonaro desde o início. Outros grupos subiram no seu palanque, mas foi a Bandeira de Israel que estava lá. Quando a coisa ficar feia, e vai ficar, de quem vocês acham que vão lembrar? Eu respondo: dos judeus”.
NATHANIEL BRAIA
Excelente texto. Obrigada pela lucidez.