Ao ressoar uma brincadeira com a língua muito nossa, aquela do rato que roeu a roupa do rei de Roma, Silvana Guimarães constrói em “eles” uma voz poética com inequívoco lado, o do povo brasileiro. Firme e forte, antes de sucumbir às mazelas e diatribes que denuncia, ao final lembra a luta pela independência dos inconfidentes mineiros e convoca à de agora. A utilização, aqui e ali, de neologismos, grafias não usuais e legenda em latim, sem que interrompam o fluxo de leitura, o ritmo dos versos e a absorção do sentido, traduz habilidade e fuga da mesmice. Silvana é poeta e ficcionista, uma das duas editoras da revista Germina Literatura, nasceu e reside em Belo Horizonte.
eles
Silvana Guimarães
em meio a delações & defecações
os ratos roeram a verba da educação
os ratos roeram a verba da saúde
os ratos roeram a verba da segurança
os ratos roeram a verba do transporte
os ratos roeram o verbo honrar
os ratos roeram o verbo servir
os ratos roeram o verbo prometer
os ratos roeram o verbo cumprir
os ratos roeram o verbo amar
os ratos roeram a merenda escolar
os ratos roeram as terras indígenas
os ratos roeram as vidas indígenas
os ratos roeram a nossa cidadania
os ratos roeram a nossa tragistória
os ratos roeram a constituição
os ratos roeram as escrituras
os ratos roem em nome de deus
os ratos riem em nome do demo
os ratos raiam em safadezas
os ratos enchem a burra de dinheiro
os ratos vivem com o rei na barriga
os ratos: funâmbulos & marafaias
autoridades em marãkutayas & manobras
circulam imunes à sorrelfa & de soslaio
os ratos, caçados a machadadas,
não se abalam: é tudo mentira
os ratos existem em prol do meu
do seu do nosso bem comum deles
nós, servos-arbítrios, em sono esplêndido
os ratos: há que se enfrentá-los
sem temer /\ quæ sera tamen
há que se enfrentá-los
sem temer enquanto ardem: os ratos