CARLOS LOPES
(HP, 27/01 a 19/02/2016)
Sou psiquiatra há 38 anos – até mais um pouco, pois comecei a prática profissional, sob supervisão, no quinto ano da “Nacional” (a Faculdade de Medicina da UFRJ) – e exerci a profissão em quatro Estados: Rio, Pernambuco, Ceará e São Paulo.
Apesar disso, não conheço o dr. Valencius W. Duarte Filho, não ouvi falar dele antes do charivari atual, nem tenho simpatia, seja pelo ministro, seja pela presidenta, que o nomearam Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
Mas, se tudo que o suposto “movimento antimanicomial” tem contra ele é ter sido diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras – ou ter, há 21 anos, dito a um jornal que a “reforma psiquiátrica” de Serra, Fernando Henrique e do PT era “de caráter ideológico, e não técnico” – estamos diante de um daqueles casos em que o acusador diz mais sobre si do que sobre o acusado.
Parece até que a situação da assistência na área de Saúde mental, no Brasil, estava maravilhosa antes de Duarte Filho ser nomeado!
No entanto, mesmo com o caos que se arrasta há tempos, os “antimanicomiais” não fizeram manifestação ou campanha alguma para melhorar – que fosse – a situação, nos últimos quatro, aliás, nos últimos 15 anos.
Agora, de repente, parece até que Duarte Filho tem algum poder real sobre a política de Saúde Mental – ou é algum Capitão Marvel manicomial, que, ao gritar “Pinel!”, restauraria os hospitais psiquiátricos.
Quanto a piorar o desastre, Dilma já está providenciando esta efeméride, com seus cortes de verbas para transferir juros aos bancos. Aliás, só ela tem esse poder de piorar.
Qualquer um tem o direito de ser contra uma nomeação para a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Mas não finjam que é por amor aos pacientes, não escondam um diversionismo político-partidário atrás daqueles que não têm condições de recusar-se a serem usados.
A nós, o atual coordenador parece tão ruim quanto seus antecessores, desde a gestão Serra. Mas nem temos certeza de que isto é verdade. Como, aliás, não a têm os “antimanicomiais”. Entretanto, a verdade não é muito importante para quem, como veremos, decide”, a la Foucault, que a doença mental não existe – e nem assumir isto consegue.
As atuais manifestações não são contra um mau nome ou uma escolha ruim para a coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde. São manifestações, usando a boa-fé de alguns, a favor de Dilma, disfarçadas em manifestações contra um sujeito que não estaria no cargo se não fosse Dilma.
Não é uma interpretação: basta ler o manifesto do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA), reivindicando a mudança do coordenador de Saúde Mental indicado pelo PMDB, assinado também por algumas outras entidades, onde, explicitamente, se diz: “nós, defensores da democracia brasileira e, logo, contrários ao processo ilegítimo e inconstitucional de impeachment da presidenta Dilma…”.
Aqui, o importante não é que seus autores considerem que a Constituição é inconstitucional (afinal, ela prevê o “impeachment”) ou que a defesa da “democracia” seja a defesa de um governicho antidemocrático até as entranhas.
A questão é que o bisonho pedido de “impeachment” promovido pelo sr. Cunha não tem importância política, exceto para ancorar a defesa do estelionato eleitoral, do roubo à Petrobrás, do entreguismo histérico e da destruição econômica do Brasil – desemprego, falências, arrocho salarial, ataque à Previdência e a Saúde públicas, juros escalafobéticos – que é a essência do governo Dilma.
Mas entende-se esse apoio à Dilma: como, nesse governo, a Saúde, sobretudo a mental, está uma beleza…
HISTÓRIA
Em 1905 – logo, há 111 anos – o fundador da psiquiatria brasileira, em artigo sobre a história do atendimento aos doentes mentais no país, escreveu:
“Em 1830, a Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio do Janeiro, pelo seu relator, Dr. Jobim, levantou o primeiro protesto público contra o modo desumano por que eram tratados os insanos. Ela reclamou urgentes modificações no modo de distribuí-los, nos cuidados de asseio, protestou contra os maus-tratos que lhes infligiam, clamou pela necessidade da criação de um asilo especial para alienados. Mais tarde, a Comissão da Câmara Municipal visitadora dos hospitais e prisões de novo solicitou das autoridades providências em favor dos pobres vesanos” (Juliano Moreira, “Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil e reformas efetuadas no Hospício de Alienados no Rio de Janeiro”, Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins, v.1, nº 1, Rio, p. 52-98, 1905, republicado pela Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 14, nº 4, p. 728-768, São Paulo, dezembro/2011).
Continua Juliano Moreira:
“Em 1835, o Dr. Sigaud assinalava no Diário de Saúde os inconvenientes do livre trânsito pela cidade de alienados que, expostos à irritação dos garotos, chegavam até a cometer crimes. Em 1837, o Dr. Antonio Luiz da Silva Peixoto, em sua tese inaugural sobre a alienação mental, expunha o estado precário da assistência aos loucos, protestava contra o uso do tronco e pedia providências urgentes.
“Em 1839, o Dr. Luiz Vicente De Simoni, no sexto número (setembro) da Revista Médica Fluminense publicou sua memória sobre a ‘Importância e necessidade da criação de um manicômio ou estabelecimento especial para o tratamento dos alienados’. Nesse artigo, aquele excelente prático, que durante 15 anos insistira junto às provedorias da Santa Casa pela urgência de melhoras na sorte dos alienados, contava ao vivo o que esses pobres sofriam e, repetindo as reclamações supracitadas, reforçava-as com a convicção de quem vivia de há muito presenciando de coração oprimido tanto infortúnio imerecido.”
Juliano prossegue longamente, mencionando a luta do então provedor da Santa Casa da Misericórdia, José Clemente Pereira (o mesmo que, 17 anos antes, líder dos “liberais radicais”, entregara a D. Pedro I o abaixo-assinado que redundaria no “Fico”), para convencer o segundo imperador a patrocinar o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro.
Diz José Clemente Pereira, em ofício de 1841 ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império, Cândido José de Araújo Vianna, o futuro Marquês de Sapucaí:
“O zelo de melhorar a sorte dos infelizes que, tendo a desgraça de perderem o juízo, não encontram nesta capital hospital próprio onde possam obter tratamento adequado à sua moléstia, por serem insuficientes as enfermarias, onde são recebidos no hospital da Santa Casa, me faz lembrar a necessidade de dar-se princípio a um hospital destinado privativamente para tratamento dos alienados”.
O hospital foi inaugurado em dezembro de 1852, treze anos depois do artigo do dr. De Simoni – este e o dr. José Martins da Cruz Jobim foram as principais personalidades que convenceram José Clemente Pereira, para que tentasse sensibilizar D. Pedro II.
Nós voltaremos, neste artigo, às concepções de Juliano Moreira. Agora, apenas acrescentaremos uma sua carta – escrita a um discípulo, o psiquiatra Hermelino Lopes Rodrigues, baiano que, em 1929, ao assumir a direção do Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte, fez uma revolução semelhante a de Pinel, 136 anos antes, em Bicêtre e la Salpêtrière.
Mas é necessário contar a história – e o leitor não perderá seu tempo em conhecê-la.
Nas palavras do dr. Francisco Sá Pires, psiquiatra mineiro injustamente esquecido desde a ditadura, por razões políticas (Chico Pires, como o chamavam os amigos, inclusive meus pais, era comunista):
“No dia em que Lopes Rodrigues tomou posse do cargo de Diretor do Instituto Raul Soares, cinco minutos após a cerimônia de sua investidura, tranquilo e sem articular uma só palavra, com fisionomia serena de quem levava na alma uma decisão resoluta, encaminhou-se para o interior do Hospital, em direção aos Pavilhões, onde os doentes jaziam encarcerados. (…) Contemplou aquele quadro e convocou imediatamente a alguns funcionários do estabelecimento, aos quais ordenou, com voz firme e pausada, que retirassem naquele mesmo minuto, todas as trancas ou derrubassem todas as portas. (…) começou a libertar os loucos dos cubículos e a retirar dos seus pulsos, dos seus braços e dos seus pés, e muitos deles com as próprias mãos, os aparelhos de suplício. Alguns loucos, ao ganharem a liberdade, saíam correndo pelos corredores, como feras enjauladas as quais se houvesse abertos as portas das jaulas.” (F.S. Pires, “Lopes Rodrigues o louco: homenagem dos seus discípulos”, Rio, IBGE, 1959, p. 39-40, cit. por Renato Diniz Silveira em “A correspondência entre Juliano Moreira e Hermelino Lopes Rodrigues: as relações de um mestre e seu discípulo na constituição do campo psiquiátrico em Minas Gerais”, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, nº 2, p. 315-328, junho/2008).
O dr. Hermelino Lopes Rodrigues, por essa façanha, foi alvo de ataques furiosos, em que era chamado de “o louco” – daí o título do livro de seu ex-aluno, Sá Pires: “Lopes Rodrigues o louco”.
Em relatório pleno de ironia ao presidente do Estado de Minas Gerais, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, que o nomeara, o próprio dr. Hermelino comenta sobre seu trabalho no “Raul Soares”:
“A razão, ali, é que põe a loucura em estado permanente de ameaça e não a loucura à razão. Os ameaçados são os inconscientes e indefesos. Eu estou apenas invertendo os lugares. Quem trata de doentes da mente, tem que passar de ameaçador a ameaçado. O contrário disso é a subversão da dignidade humana… E os loucos perigosos? Como tem a coragem de soltá-los? – Minha coragem aí, Presidente, não é soltar os loucos; está sendo a de enfrentar os sãos. Tenho a exata consciência do calvário de espinhos e do ciclone de lama que se agitam contra mim. (…) Loucos perigosos são produto da ignorância médica. O que existe não são loucos perigosos, são lúcidos perigosos” (cit. porJosé Lorenzato de Mendonça, Ronaldo Simões Coelho e Sebastião Gusmão em “História da psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais 1911-1961”, SBHM, 2011).
Lopes Rodrigues não necessitou entrar no “movimento antimanicomial”, nem ler Foucault, para chegar a essas conclusões, no longínquo ano de 1929.
Nem seu mestre, e defensor dos “manicômios”, Juliano Moreira, que recomendara Hermelino ao governo de Minas Gerais, e escreveu ao discípulo:
“Estão chegando por aqui algumas notícias sobre o seu ato revolucionário, soltando as feras do Instituto e recebendo, por isso, o batismo de louco. É que a sua reconhecida pacatez transformou, de uma hora para a outra, os hábitos de uma cidade. Vá, entretanto, com calma. Roma não se fez num dia. Nunca imaginamos que o senhor fosse encontrar as coisas que encontrou aí. Vá com prudência. Mesmo assim não se esqueça de que os doentes da mente merecem o mesmo trato dado às musas. Aceite o epíteto de louco em tão propícias condições ao seu renome no futuro. Aceite o epíteto de louco antes que lhe ponham outro pior. Todos nós devemos fazer a profilaxia da parcela de insulto que nos cabe. Agarre-se a esta e continue a soltar as ‘feras’ com a mesma pachorra. Cada mineiro que o chamar de louco está passando um atestado triste na cultura de sua própria terra e de sua própria gente. Não creio aliás que todos os mineiros estejam de acordo; em todo caso a campanha de sua loucura já chegou até aqui. Marche para frente e não olhe para os lados.
“Se mais não puder fazer em benefício dos seus doentes mentais, basta receber o batismo de louco por ter feito a libertação dos mesmos. Não se esqueça de ir documentando tudo que for fazendo. Lembre-se do ditado da nossa velha Bahia quando diz que o futuro a Deus pertence. Documente-se o quanto puder. Envie-me algumas fotografias.
“Não digo que estude menos, mas com mais método, poupando as noites. Recomende-me ao Balena, ao Werneck e ao Borges da Costa. Augusta lhe manda lembranças.
“Do sempre. Juliano Moreira.” (cf., “Cartas de Hermelino Lopes Rodrigues e Juliano Moreira”, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 329-335, junho 2008).
Pelo momento, o que transcrevemos é suficiente para perceber (ou ao menos vislumbrar) o quanto é falso – histórica e cientificamente, ou seja, humanamente – o chamando “movimento antimanicomial”.
MÁSCARAS
Em artigo na imprensa médica, frisei (e não fui o único, nem o primeiro, evidentemente) que a grande desospitalização de pacientes psiquiátricos ocorreu a partir da segunda metade da década de 50 do século passado, devido a descoberta de medicamentos que permitiam tratamento fora dos hospitais – e menor tempo de internamento – para milhões de seres humanos. Foi este fato – o surgimento dos neurolépticos, anti-depressivos, etc. – que determinou o fim das “colônias” psiquiátricas, sem que houvesse nenhum “movimento antimanicomial” (cf. Carlos Batista Lopes, “Desafios éticos atuais na psiquiatria”, Bioética, vol. 9, nº 1, 2001).
Perto dessa, a “desospitalização” que os “antimanicomiais” atribuem a si é ridícula – e trágica, porque, ao contrário do que ocorreu a partir dos anos 50 do século XX, significou deixar sem tratamento, ou com um tratamento que nada trata ou é apenas reiterativo, milhões de brasileiros.
E, pelo amor de Deus, não venham dizer que os CAPs resolvem. Os “antimanicomiais” sabem que isso não é verdade. Para que o leitor tenha uma ideia do tamanho do problema: “Dados do Ministério da Saúde apontam que 3% da população geral brasileira sofrem com TM [Transtornos Mentais] graves e persistentes, 6% apresentam transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 12% necessitam de algum atendimento, seja ele contínuo ou eventual” (Élem Guimarães dos Santos e Marluce Miguel de Siqueira, “Prevalência dos transtornos mentais na população adulta brasileira: uma revisão sistemática de 1997 a 2009”, Jornal Brasileiro de Psiquiatria, vol. 59, nº 3, 2010, pp. 238-246).
A “reforma psiquiátrica” tucano-petista serviu para cortar os gastos do governo com Saúde Mental. Aliás, esse era, precisamente, o seu objetivo real.
O que não quer dizer que os hospitais psiquiátricos eram, antes da “reforma” do governo Fernando Henrique, excelentes. Pelo contrário. A ditadura, em 21 anos, conseguira instituir um sistema privatista, através de convênios com a Previdência, em tudo parecido com as atuais “OS” dos tucanos e petistas, em que gastar o menos possível com os pacientes era o ideal de cada dono de hospital.
Era inevitável que fosse assim? Era (ou é) inevitável que um hospital psiquiátrico seja uma pocilga?
Tanto não era (e não é) inevitável que, em cada um desses hospitais “conveniados” com a Previdência, havia uma ala destinada aos pacientes particulares (isto é, aos ricos), que nada tinha a ver – em conforto, atenção médica e paramédica ou higiene – com o “resto” do hospital.
Mas esse “resto” do hospital – a parte conveniada com a Previdência – era 80% ou 90% das vagas em atendimento psiquiátrico e a estrutura de ambulatórios e outros aparatos não-hospitalares era mínima, quase infinitesimal.
Em alguns locais – por exemplo, o Ceará – até os ambulatórios eram privatizados, também através de “convênios” com a Previdência. Lembro que ouvi, em uma “Jornada Cearense de Psiquiatria”, um pouco depois de derrubada a ditadura, meu grande e saudoso amigo Airton Monte – psiquiatra, poeta, contista e teatrólogo cearense, com quem compartilhei consultório durante alguns anos – dizer ao psicanalista Jurandir Freire Costa – na época, tentando desenvolver uma psicoterapia ambulatorial nos quadros da “Nova República” – que era impossível falar em “transferência” nos ambulatórios de Fortaleza, “porque não dá tempo” de estabelecer semelhante vínculo psicológico com o paciente.
Era verdade.
Em suma, a situação somente não era pior devido à luta de profissionais, algumas vezes heroica, para impedir que a coisa fosse para onde foi depois.
Entre esses profissionais, além daqueles que trabalhavam em hospitais psiquiátricos, ressalto os que faziam parte da auditoria do Inamps – e, não por acaso, eram odiados pelos donos de hospitais.
Não vou fazer o leitor perder seu tempo com as justificativas dos últimos para coisas injustificáveis, porque temos – nós e o leitor – coisa mais séria para preocuparmo-nos. Mas que daria uma boa comédia, lá isso daria.
SETORES
Voltemos a uma questão que tocamos apenas de passagem: a duplicidade desses hospitais privados – com atendimento razoável, às vezes excelente (ou até suntuoso) nas alas para pacientes “particulares” e miserável nas alas conveniadas com a Previdência – longe de revelar que o Estado não funciona, demonstra que o dinheiro público (nesse caso, o dinheiro da Previdência) não pode estar a serviço de alguns aproveitadores, tenham eles ou não um diploma emitido por uma faculdade de medicina.
Na área de Saúde Mental, no esquema fixado na época da ditadura, o setor privado não era “complementar”. Pelo contrário, as instituições públicas é que eram, talvez, complementares. Se tanto.
No limite, isto é, no fundamental, as aberrações a que estamos nos referindo revelam que quando Saúde e Vida são tratadas como mercadorias, está aberto o caminho para os maiores absurdos.
Muita coisa pode ser mercadoria. Mas não a preservação da espécie humana. Quando isso acontece… bem, leitores, mais não é preciso dizer.
A CATÁSTROFE
Mas o que veio depois foi pior – bem entendido, pior para os pacientes psiquiátricos e para quem se interessa, realmente, por eles.
Ao invés de despender recursos melhorando hospitais públicos ou aumentando a exigência na fiscalização, a “reforma” de Serra consistiu em fechar hospitais psiquiátricos – sem colocar nada, que merecesse algum respeito, no lugar.
Tenho uma coleção de relatos sobre a questão dos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial).
Limito-me, por enquanto, apenas a um deles.
No governo Fernando Henrique, convidado, por esta grande figura da psiquiatria brasileira que é o dr. Cláudio Lyra Bastos, a proferir uma palestra para médicos de família em Niterói, tive como colega – na palestra – o coordenador de Saúde Mental do município.
Naquela época, o então ministro da Saúde, José Serra, anunciara uma rede de CAPs para tratar da questão do alcoolismo.
O anúncio me parecia – e ainda me parece – apenas marketing eleitoreiro. A maior parte dos chamados “alcoolistas” ou “alcoólatras” não são pacientes psiquiátricos, mas casos sociais – sobretudo vítimas do desemprego, ou, no campo, da soma de subnutrição (ou seja, fome) com excesso de trabalho. Infelizmente, a psiquiatria pode fazer pouco por eles. A psiquiatria é uma especialidade médica. Por si só, não tem a capacidade de alterar relações sociais – ou mudar a política econômica do governo. Instalar CAPs para o alcoolismo, ao mesmo tempo que a política do governo desempregava milhões de pessoas, me parecia uma infâmia, um engana-trouxa que tratava os eleitores – o povo – como alguns incautos fáceis de iludir. E foi isso o que eu disse aos médicos de família – aliás, às médicas, pois não havia, entre os que assistiam, nenhum homem.
O outro palestrante, no entanto, não tinha essa opinião. Parecia até entusiasmado pelos CAPs para atender pacientes “com alcoolismo”.
Do ponto de vista político, embora não tenha externado essa consideração, eu achava estranha a posição de alguém ligado ao PDT, como era o meu colega, defendendo o marketing tucano.
Mas são exatamente as questões político-ideológicas mais decisivas, que a ideologia “antimanicomial” procura evitar – aquelas que dizem respeito ao Estado. Nas palavras de um dos heróis antimanicomiais, Michel Foucault, da parte dos marxistas (pois são eles os designados sob a palavra “intelectuais”), há uma “supervalorização do problema do Estado (…). Mas o Estado – hoje provavelmente não mais do que no decurso de sua história – não teve (…) esta importância. Afinal de contas, o Estado não é mais do que uma realidade compósita e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita” – cf. M. Foucault, “Microfísica do Poder”, coletânea organizada por Roberto Machado, Graal, Rio, 3ª ed., 1982, grifo meu).
Evidentemente, o Estado é a questão central em qualquer revolução verdadeira. O que Foucault está dizendo é que as revoluções – os acontecimentos decisivos do progresso humano – são inúteis ou impossíveis.
Esse desprezo pela política (isto é, pela luta política mais geral) está a serviço de inventar “micro-poderes” (“micro-pouvoirs”: a família, o manicômio, a medicina, a escola, etc.) – , portanto, de substituir a luta política por uma inofensiva e anódina “micro-política”, em que os inimigos passam a ser os pais, os psiquiatras, os médicos, os professores, etc., todos detentores de “micro-poderes”.
Um amigo – na época, pós-graduando na PUC-Rio –, algo irritado com seus mestres e colegas, fez uma síntese das consequências práticas dessa douta concepção: “conceber micro-poderes somente pode levar a uma micro-contestação”.
Realmente, fugir da política para se dedicar à contestação dos “micro-poderes”, é a mesma coisa que coonestar o poder estabelecido. Mas é intrínseco a essa operação de colaboracionismo ideológico a transformação do que não é político em político. É assim que essas mentes transformam os pacientes psiquiátricos em casos “políticos”.
Essa substituição da realidade por uma encenação é muito útil quando, no poder (o verdadeiro, o poder de Estado) há reacionários antinacionais – que, aliás, não desprezam jamais o domínio sobre o Estado, vale dizer, a destruição do Estado-nacional. Aí, essa encenação torna-se um excelente instrumento para cortes de gastos reais, e outras benesses neoliberais, contra o povo.
MEMÓRIA
Uma vez – foi há muito tempo – perguntei a um dos maiores psiquiatras brasileiros, Washington Loyello, o que ele achava da “antipsiquiatria”.
Lembro que foi no consultório que, na época, Loyello mantinha no Edifício Avenida Central, no Rio – local que minha mãe, que estava comigo naquele dia, ainda chamava de “Galeria Cruzeiro”. Alguns anos depois do golpe de 64, pessoas como Loyello ou os meus pais – ou, como já mencionei, Chico Pires – não estavam, propriamente, na crista da onda. Havia uma certa alegria quando essas pessoas se encontravam sem que houvesse um dedo-duro vigiando as redondezas. Pelo menos era assim que eu sentia.
Loyello riu da minha pergunta, percebeu que eu andara enfurnado nas obras de Ronald D. Laing, David Cooper e outros “antipsiquiatras”, e respondeu: “O que você acha de uma coisa que se define apenas por ser ‘anti’ outra coisa?”.
Ele tinha, certamente, razão.
Mas é justo, me parece, registrar que, apesar da tese central dos “antipsiquiatras” ser um equívoco clamoroso – o surto psicótico visto como uma viagem enriquecedora, e, não, como é, uma tragédia, em muitos casos (eu diria, quase todos) humanamente empobrecedora -, pelo menos há algo que é possível aprender com Laing e Cooper. Eles tinham um interesse real pelos pacientes e demais seres humanos. Estavam equivocados, mas não eram farsantes ou reacionários empedernidos.
O mesmo não se pode dizer dos gurus “antimanicomiais” como Thomas Szasz ou Michel Foucault.
A questão, nesses, e nos “antimanicomiais” em geral, é que eles não estão preocupados com os pacientes concretos – pelo contrário, os substituem por uma fantasia egocêntrica.
TESTEMUNHO
Não sou um admirador das posições políticas atuais de Ferreira Gullar (a maioria de seus leitores esperavam algo mais de quem um dia escreveu: “Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ embora o pão seja caro/ e a liberdade pequena// Como teus olhos são claros/ e a tua pele, morena/ como é azul o oceano/ e a lagoa, serena”).
Porém, Gullar, com dois filhos esquizofrênicos, tem razão ao dizer, sobre a situação atual do atendimento em Saúde Mental no Brasil: “As famílias, principalmente as que não têm recursos, não têm mais onde pôr seus filhos. Eles viram mendigos loucos, mendigos delirantes”.
E, quanto ao suposto argumento (Deus!) dos “antimanicomiais”, de que o hospital psiquiátrico “funciona como prisão”:
“Essas pessoas não sabem o que é conviver com esquizofrênicos, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Elas têm a audácia de fingir que amam mais a meus filhos do que eu.”
Realmente, elas não amam.
Apenas mais um outro trecho da entrevista de Gullar:
“Esse pessoal não diz explicitamente, mas eu sei que para eles não existe doença mental. Por que falam em psiquiatria democrática? Existe urologia democrática? A psiquiatria democrática pressupõe que as pessoas internam seus parentes para cercear a liberdade deles”.
NEO-MANICÔMIO
Observemos, então, alguns traços do catecismo “antimanicomial”:
Negar a realidade, sempre em favor do poder opressor; apontar como inimigos àqueles que lutam contra a ação dos verdadeiros inimigos do país e do povo; destruir qualquer estratégia nacional no campo da Saúde Mental; transformar o que, na época, foi um progresso, em um retrocesso; tornar aquilo que foi uma humanização, em uma desumanização; por, no lugar da coletividade, o narcisismo ensandecido de alguns; substituir a História por um faz-de-conta arbitrário, a política por uma ideologia vazia de realidade humana, que se contenta com o próprio discurso (e, supostamente, justifica a si mesma).
Não é tudo isso muito parecido com o neoliberalismo?
Realmente, isso é, em verdade, neoliberalismo. Algumas pessoas de boa-fé podem, ainda, não perceber, mas o chamado “movimento antimanicomial” é o neoliberalismo na área da Saúde Mental.
Isso é especialmente evidente nos gurus do “movimento”.
Por exemplo, o húngaro-americano Thomas Szasz, e não apenas por seu anticomunismo doentio ou por sua proposta de criar um “livre mercado” (sic) para a heroína, o crack, a cocaína, etc., etc.
Nas suas palavras:
“Em princípio, cada objeto no universo pode ser tratado como propriedade (…) creio que deveríamos considerar a possibilidade de que um livre mercado de drogas não seja somente imaginável em princípio, mas que – dada a necessária motivação pessoal de alguém – seja apenas tão prático e benéfico como um livre mercado de outros bens” – cf. T. Szasz, “Our Right to Drugs: The Case for a Free Market”, 1992; para este artigo, usamos a 2ª edição, SUP, Syracuse, 1996).
Toda a questão reside em que Szasz chama de “liberdade” o mero esmagamento dos mais vulneráveis – tal como qualquer neoliberal vadio.
Quanto à sociedade, a rigor, ela não existe, pois é apenas um ajuntamento de pessoas “com liberdade de escolher”, uma tese inteiramente plagiada dos economistas reacionários do século XIX – que, como escreveu Marx, eram dados a uma “robinsonada”, ou seja, a substituir a sociedade por uma coleção de “robinsons crusoes” – e dos neoliberais do século XX: Friedman, Hayek e o ídolo de Szasz, o austríaco Ludwig von Mises.
Já se disse que as classes sociais, os sexos ou as etnias não existem para Szasz. É verdade, mas apenas na medida em que essa omissão consagra a opressão estabelecida – seja quanto às classes, aos sexos ou às etnias.
Entretanto, eliminar classes, sexos e etnias é, também, eliminar o ser humano do pensamento, pois este somente existe como realidade concreta. O pensamento pode abstrair, formar conceitos, mas, se eliminada a realidade concreta, é a própria abstração que se torna impossível. Há muito, Hegel, em sua “Fenomenologia do Espírito”, frisou que o geral somente pode existir através do particular.
Por isso, como o ser humano real e concreto, para Szasz, não existe, não é espantoso que ele considere a doença mental, que é especificamente humana, “um mito” e uma “fabricação” de alguns charlatães – com especial destaque para Sigmund Freud, que ele odiava tanto quanto a Marx (v. os seus livros intitulados, precisamente, “O Mito da Doença Mental” e “A Fabricação da Loucura”).
É bastante característico que ele diga, por exemplo, no último desses livros, que a histeria é uma simulação que Charcot e Freud elevaram ao status de doença.
Para que alguém simularia os sintomas histéricos? Para não trabalhar, evidentemente, seja na fábrica ou na jornada (simples ou dupla) doméstica.
Logo, os histéricos (e as histéricas) são, na verdade, vagabundos.
O peculiar é que, com essa moral de senhor de escravos, Szasz diga que a psiquiatria é apenas uma forma de coerção – coisa mais estranha ainda para alguém que sempre foi professor de psiquiatria e era membro destacado da American Psychiatric Association (APA).
Quase tão estranho (ou mais), para quem não conhece a psico-barafunda norte-americana, é Szasz, que era também membro da American Psychoanalytic Association (APsaA), escrever:
“Sigmund Freud – o charlatão mais bem sucedido de nosso século – publicou ‘O Mal-estar na Civilização’, acrescentando mais brilho à sua já considerável fama, especialmente entre os inclinados cientificamente a ser inimigos do capitalismo e da liberdade” (cf. “Our Right to Drugs: The Case for a Free Market”, ed. cit.).
Não é apenas que, para ele, “capitalismo” (e ele está se referindo ao capitalismo monopolista) e “liberdade” são a mesma coisa. Mais além, se a psiquiatria é apenas coerção e charlatanismo, Szasz não acha a mesma coisa da exploração econômica em geral, do tráfico de drogas ou do neoliberalismo.
Assim, ele chama – mais propriamente, xinga – Freud de “o charlatão mais bem sucedido de nosso século” para ressaltar a genialidade (sic) de uma das mais notórias bestas (em vários sentidos) do neoliberalismo, Ludwig von Mises:
“Em 1922, Ludwig von Mises – o menos reconhecido gênio de nosso século – publicou um livro intitulado ‘Socialismo’, que firmou sua reputação, pelo menos entre os entendidos [cognoscenti]. Suas últimas frases nesse trabalho são: ‘Se a Sociedade é boa ou má deve ser um assunto de julgamento individual; mas aqueles que preferem a vida à morte, a felicidade ao sofrimento, o bem estar à miséria, devem aceitar, sem limitação ou reserva, a propriedade privada dos meios de produção’.” (idem, grifo meu).
Muito original a genialidade de von Mises…
No livro de Szasz, segue a esse trecho aquele que já transcrevemos (“Sigmund Freud – o charlatão mais bem sucedido, etc.”) e, logo após, vem mais uma arenga em cima de Freud:
“‘Não me interessa’, declarou Freud, ‘nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é possível ou proveitosa’. As observações anticapitalistas de Freud não foram comentários isolados, realizados rápida e impulsivamente. Anos antes ele saudou a declaração de guerra contra a propriedade privada e a liberdade religiosa dos bolcheviques com uma mescla de ingenuidade e otimismo: ‘Quando as grandes nações anunciam que somente esperam a salvação da manutenção da piedade cristã’, escreveu Freud em 1917, ‘a revolução na Rússia – apesar de todos os seus desagradáveis detalhes – parece a mensagem de um futuro melhor’.”
A primeira citação de Freud é de “Mal-estar na Civilização”, de 1929; a segunda, das conferências que pronunciou na Universidade de Viena, durante a I Guerra Mundial.
Grande Freud!
ÀS GALÉS
Talvez o mais escandaloso nessa trilha de monstruosidades, seja a proposição de Szasz de que os doentes mentais que agridem ou matam devem ser julgados como criminosos, sem nenhuma atenuante.
Desde 1850, quando os psiquiatras foram chamados a opinar em tribunais, não há questão que revele tanto o humanismo na psiquiatria quanto esta.
Diga-se de passagem, jamais alguém propôs que um indivíduo não fosse responsabilizado penalmente por estar acometido de uma doença mental. Como diz uma das nossas maiores especialistas no tema:
“O doente mental que comete um crime ou qualquer ato antijurídico não pode ser responsabilizado se o ato tiver nexo causal com a doença. (…) Não basta o sujeito que praticou um ato antijurídico ser doente mental, é necessário que haja o nexo causal, ou seja, que naquelas circunstâncias o sujeito praticou o ato sem a necessária noção de seu entendimento e capacidade de determinação” (Drª Hilda Morana, entrevista a Stella Galvão para a revista Jovem Médico, 01/2009, republicado em Psychiatry On-line Brasil, vol.14, nº 3, março/2009, grifo meu).
Na mesma entrevista, a drª Hilda aborda a questão de um ponto de vista especialmente importante:
“Com certeza, a violência está em não se tratar o doente mental. Sempre que um doente mental não estiver devidamente tratado, os sintomas de delírios e alucinações podem levar o sujeito a se descontrolar e agredir alguém em função da desagregação mental. Se devidamente tratado é muito difícil que isso venha a ocorrer” (idem).
No entanto, o que Szasz propõe é não tratar – pois a doença mental não existe – e colocar na cadeia, sem atenuante alguma, os doentes mentais que perpetrarem crimes.
Em verdade, é uma forma de eliminar os doentes mentais, provavelmente por contrariarem a tese de que a doença mental é um “mito”.
Porém, é evidente que, pelo menos nos EUA, não serão os doentes mentais ricos e brancos que irão para a cadeia.
Nesses tempos de avacalhação nos valores, Szasz foi incensado como um “libertário” e até recebeu um prêmio de “humanista do ano”.
O “humanismo antimanicomial” é, precisamente, daquele tipo que o neoliberalismo adora – e até erigiu em seu padrão.
FILME
Em 1972, o psicólogo inglês Peter Sedgwick publicou uma crítica a um filme que fez um tremendo sucesso entre os candidatos a psiquiatra da minha época, em especial aqueles que se consideravam politicamente à esquerda: “Vida em Família” (Family Life), dirigido por Ken Loach, a partir do roteiro de David Mercer, autor da peça televisiva original da BBC (In Two Minds).
“Vida em Família” é uma ilustração das teses dos “anti-psiquiatras”, em especial Ronald D. Laing, sobre a não existência da doença mental. Resumindo, nas palavras, bastante precisas, de Sedgwick:
“A história básica é aquela que é encontrada repetidamente em todos os relatos de Laing sobre o que fazem os terríveis psiquiatras: uma jovem ingênua (apelativamente interpretada por Sandy Ratcliff) é levada lentamente a uma condição assustadora de inerte isolamento por seus dois horríveis pais, que a espicaçam, enchem a sua paciência e lançam-na em confusão com sua tagarelice repressiva, autoritária, desonesta, brutal (ou, às vezes, regada à sacarina).
“Inicialmente, a pobre moça recebe alguma ajuda psiquiátrica simpática, em uma enfermaria administrada por um médico ‘laingiano’, que é chamado de Mike por seus subordinados e realiza sessões de terapia através da discussão sincera sobre relacionamentos. Este belo médico é, entretanto, vítima de uma caça às bruxas por parte de uma administração conservadora e elitista, e, quando Sandy entra novamente em tratamento, vai parar nas mãos de um frio e incomunicável doutor (que parece viver apenas com o propósito de aplicar eletrochoque em suas vítimas) e uma complacente, sem compreensão e burocrática equipe de enfermagem”.
Além do conjunto, em si, de suas observações, que já veremos, Sedgwick era o crítico mais incômodo possível para Loach, Mercer e para os “antimanicomiais” em geral (na época sob o rótulo da “antipsiquiatria”): era, notoriamente, um homem de esquerda, ligado ao movimento sindical – e nem o rótulo de “stalinista”, que Loach costuma distribuir, era possível colar nele, pois saíra do Partido Comunista inglês após os acontecimentos de 1956 na Hungria, mantendo uma posição esquerdista desde então.
Apesar de suas confusões políticas, que não eram poucas, Sedgwick tinha um vínculo real com a classe operária – o que não se pode dizer, por exemplo, de Loach. Ou de Ronald D. Laing, que, como observa Sedgwick, “abandonara permanentemente todos os seus pacientes e simpatizantes, indo para um monastério no Ceilão, onde gastava cerca de 17 horas por dia meditando sobre o budismo. Uma vez que uma violenta guerra civil vem acontecendo no Ceilão entre o governo de lá (que é um fantoche do capitalismo estrangeiro) e um movimento revolucionário da juventude, sindicalistas e camponeses, a partida de Laing para esse país, neste momento específico, tem estragado um pouco a sua reputação progressista, particularmente porque o establishment budista no Ceilão apoia a sanguinária repressão sobre a esquerda”.
Mas, vejamos a crítica de Sedgwick ao filme de Loach – e à “anti-psiquiatria” – em seu aspecto mais geral.
GASTOS
“… se não existe algo como a doença mental”, afirma Sedgwick, “não podemos ter uso algum para a ideia de saúde mental. Não podemos, portanto, fazer reivindicações para que o sistema [de saúde] proporcione melhores instalações, material e pessoal, para o tratamento de doentes mentais. Não pode haver a questão de elaborar um programa para um serviço de psiquiatria muito melhor no âmbito do Sistema Nacional de Saúde [NHS, em inglês].
E ele continua:
“Não podemos reivindicar o dispêndio de milhões de libras em hospitais psiquiátricos mais e melhores, em mais e melhores médicos e enfermeiras – em vez de gastá-las com armamentos e com os ganhos dos ricos – porque Mercer disse-nos que tudo o que esses hospitais, médicos e enfermeiras fazem é a lavagem cerebral das pessoas potencialmente revolucionárias, através do uso de drogas e eletrochoque.”
Algo que Sedgwick não observa, talvez para não tirar o foco do assunto principal, é que Mercer e Loach veicularam o seu conteúdo, supostamente revolucionaríssimo, ou “radicalmente” anti-capitalista, através da BBC – sob o governo dos “tories”, o Partido Conservador, de Edward Heath – e através de um monopólio da indústria cultural, a EMI, que produziram, respectivamente, a peça e o filme.
Hoje, depois que Loach dirigiu “Terra e Liberdade” (1995), onde o inimigo, na Guerra Civil Espanhola, são as brigadas internacionais – ao invés do franquismo e da intervenção de Hitler e Mussolini – não é preciso dizer muito sobre o seu revolucionarismo de vitrine. Mas isso não era claro no início dos anos 70 do século passado.
Continuemos, então, com o artigo de Sedgwick:
“Involuntariamente, os autores deste filme criaram um clima de opinião em que seu público não estará mais tão ansioso para resistir ao atual ataque maciço do Partido Conservador [Tory] sobre as instituições psiquiátricas do Serviço de Saúde. Pois os conservadores [Tories] também querem fechar os hospitais psiquiátricos, para cortar despesas do governo central no tratamento dos doentes mentais e jogá-los à mercê das autoridades locais, que acharão fácil reduzir despesas com esta parte, sem poder e impopular, da comunidade.”
Não estou muito seguro sobre o caráter involuntário, apontado por Sedgwick, desse colaboracionismo entre os “tories” e os “antimanicomiais”. Mas, talvez, o governo Dilma esteja influenciando meu julgamento sobre acontecimentos passados… Porém, Sedgwick não tinha esse problema:
“… o fardo da doença mental será jogado em cima da classe operária, para ser tratada no isolamento das paredes do lar, paredes-off home – situação do homem e da mulher comum agonizante. É um fardo que já é insuportável: (…) o Estado deve se responsabilizar pelo cuidado dos mentalmente afligidos – não pelo tratamento barato e em massa nos hospitais superlotados, mas como nós todos gostaríamos de ser tratados, cara e competentemente”.
SISTEMA
Em seguida, Sedgwick entrava, mais especificamente, na análise do filme de Loach:
“De forma geral, ‘Vida em família’ assina embaixo dos preconceitos comuns que criam o estigma da doença mental. Tenta nos convencer de que há algo realmente horrível e vergonhoso em procurar ajuda médica durante uma fase de angústia emocional; que se submeter a um estado controlado de inconsciência, que pode dar alívio temporário (mas essencial) a um pesadelo pessoal – que é o que faz a terapia de eletrochoque quando administrada corretamente – é uma espécie de rendição à classe dominante; que tomar um tranquilizante, pílula ou injeção – novamente, talvez, para alívio, mais do que para qualquer cura profunda – é aceitar o conformismo com os objetivos do nosso sistema social odioso.
Nós voltaremos à questão do “eletrochoque” – mais precisamente, a eletroconvulsoterapia (ECT), ou, como se dizia antigamente, Terapia de Cerletti – no decorrer deste artigo. Por agora, apontaremos somente que a forma como os “antimanicomiais”, no Brasil, se referem à ECT (como se fosse igual à tortura do DOI-CODI para presos políticos durante a ditadura) é de uma desonestidade e ignorância que fazem lembrar – aí, sim – as campanhas de propaganda do nazismo.
Porém, continuemos.
O filme de Loach, escreveu Sedgwick, “desestimula qualquer pessoa com problemas mentais graves de procurar tratamento em alguma instituição do sistema público de saúde e zomba cruelmente (através da sua caricatura da situação familiar de um paciente esquizofrênico) dos dilemas terríveis que confrontam milhares de famílias reais, em que todos, talvez, estejam ‘doentes’, mas é uma pessoa em particular que é realmente louca.
“… a esquizofrenia atinge as classes sociais mais desfavorecidas com maior frequência, proporcionalmente. O esquizofrênico “lainguinano”, vivendo em tempo integral numa simpática comuna com seu psicanalista, saboreando os altos e baixos de sua romântica e mística ‘viagem’, é um espetáculo delicioso para os intelectuais que vêm vê-lo; mas não é uma possibilidade prática para a média dos trabalhadores e trabalhadoras que sofrem seu tormento mental em meio de responsabilidades familiares”.
Apenas mais um trecho do artigo de Sedgwick:
“Nós sabemos, mas ainda precisa ser dito, que muitos hospitais psiquiátricos são ruins, que muitos psiquiatras são incompetentes e reacionários. O mesmo se aplica aos hospitais, médicos e enfermeiras que lidam com a medicina física, só que ninguém pensa em usar isso para atacar a própria existência dos serviços públicos para o tratamento de doenças físicas” (Peter Sedgwick, “Who’s Mad – You or the System?”, SW 05/02/1972).
PSICO-POLÍTICA
Os trechos que reproduzimos foram escritos e publicados há 44 anos – e 29 anos antes da “reforma psiquiátrica” de Serra e do PT, assim como antes da mesma praga grassar pelos países europeus.
No mesmo ano, Sedgwick publicaria outro importante texto, “Mental illness is illness” (Doença mental é doença). Nele, liquida com a suposta especificidade dos “transtornos” mentais, que, ao contrário dos males físicos, seriam desvios da norma que os iluministas, no século XVIII, transformaram em doença (o argumento é recorrente entre os “antimanicomiais”, especialmente, sob várias formas algo contorcidas, em Foucault, mas também em Goffman e Szasz, para não falar dos peixes menores desse cardume).
Sedgwick, pelo contrário, frisa que toda enfermidade – não apenas a doença mental – é, essencialmente, um desvio da norma (“All sickness is essentially deviancy”), e ele está se referindo, sobretudo, à norma social. Seu exemplo é bastante interessante: “… nenhuma atribuição de doença pode ser feita a qualquer ser, sem a expectativa de algum estado de coisas alternativo que é considerado mais desejável. Na ausência dessa norma alternativa, a presença de um estado particular, corporal ou subjetivo, não levará, por si próprio, a uma atribuição de doença. Logo, onde uma comunidade inteira é, pelos padrões ocidentais, ‘doente’, porque foi, por gerações, infectada por parasitas que diminuem a energia, a doença não será reconhecida por qualquer indivíduo, exceto os que vêm de fora dessa sociedade [outsiders]” (cf. P. Sedgwick, “Mental illness is illness”, Salmagundi nº 20, 1972, p. 213).
É verdade – mas o exemplo também é importante em outro sentido: do fato de uma sociedade não reconhecer um estado como doença, não se conclui que não existam os doentes que são seus portadores.
Entretanto, a importância desse texto de Sedgwick está em mostrar que a especificidade da doença mental não está aonde apontam os “anti-manicomiais” (isto é, em não ser uma doença ou ser uma não-doença, uma transgressão social, política ou moral que os psiquiatras teriam escondido sob o status de enfermidade).
[UMA NOTA: O penúltimo parágrafo deste artigo de Sedgwick, em que ele tenta mostrar o caráter revolucionário da luta por reformas no campo da Saúde Mental, é quase desastroso: com uma citação de Trotsky, ele argumenta ser a favor da luta pelas melhorias no Sistema Nacional de Saúde da Inglaterra – ao contrário dos “antimanicomiais”, que desistiam dessa luta – porque essas reformas não são exequíveis sob o capitalismo; convenhamos que, além de não ser verdade, pois são reformas que não extravasam a moldura do sistema de saúde definida pelo governo de Clement Attlee (1945-1951), quem se mobilizaria por objetivos que, para ser alcançáveis, necessitam que, antes, se faça a revolução socialista na Inglaterra? No entanto, surpreendentemente, todo o resto do texto está em contradição com esse tipo de pose “ultrarrevolucionária” – para usar uma expressão de Lenin. Esse parágrafo de Sedgwick mostra muito mais a sua defensiva diante dos ataques a suas posições, por parte dos que usavam uma linguagem esquerdista para abanar a posição reacionaríssima dos “tories”, que alguma questão verdadeiramente de princípio.]
No ano seguinte, Sedgwick desenvolveria seu argumento em “Illness, mental and otherwise: All illnesses express a social judgement”: qualquer doença, não apenas a doença mental, expressa um julgamento social. Na natureza “pura” – isto é, num hipotético mundo onde não exista a sociedade humana – seria impossível o conceito de doença, seja mental ou física.
Vejamos o que isso significa.
Tomemos, por exemplo, esse trecho de Foucault: “A psicopatologia do século XIX (e talvez ainda a nossa) acredita situar-se e tomar suas medidas com referência num homo natura ou num homem normal considerado como dado anterior a toda experiência da doença. Na verdade, esse homem normal é uma criação” (M. Foucault, “História da Loucura na Idade Clássica”, trad. José Teixeira Coelho Netto, Perspectiva, 1978, p. 148).
Se substituirmos a palavra “psicopatologia” por “patologia”, em nada o conteúdo da frase será alterado ou se tornará absurdo: o que é válido para a doença mental é igualmente válido para qualquer doença.
O truque, aqui, é apresentar como específico aquilo que é mera generalidade.
Mas isso não quer dizer que foi o conceito de doença que criou a doença – já voltaremos a esse tema.
Por enquanto, fiquemos com Sedgwick: o que aconteceu depois, somente deu razão a ele. Apesar do que, 10 anos após esses artigos, em 1982, quando publicou seu livro mais famoso, Psychopolitics, a devastação sobre os sistemas de saúde públicos ainda estava no início. Sedgwick não chegou a ver a destruição atual do atendimento público em psiquiatria, imposta com a retórica “antimanicomial”, porque faleceu no ano seguinte, 1983.
Psychopolitics (não conhecemos nenhuma tradução) é um esforço para examinar as bases supostamente teóricas dos “antimanicomiais”, isto é, da negação da doença mental – em especial, Erving Goffman, R.D. Laing, Thomas Szasz e Michel Foucault.
O primeiro é de um reacionarismo tão evidente que não vamos perder nosso tempo com ele. Apenas observaremos que Goffman – cuja sociologia é uma disciplina sempre atenta para não tocar no que tem importância na sociedade mais repressiva do mundo -, quanto à doença mental, não tem a menor ideia do que se trata, nem do que está falando.
Em seu livro, Sedgwick, sempre um otimista, observa que os “antimanicomiais” [na época, “anti-psiquiatras’] estão “na batalha do lado errado; o lado daqueles que querem fechar as unidades de psiquiatria intensiva e jogar as vítimas da doença mental nas ruas”.
Foi exatamente o que aconteceu no Brasil.
Há uma observação geral de Sedgwick, sobre os “antimanicomiais” em geral, que merece ser lembrada:
“O radical que é somente um radical niilista, é, para todos os efeitos práticos, o mais empedernido dos reacionários”.
Porém, o principal feito de Sedgwick, em Psychopolitics, é demonstrar, com fatos, que o relato de Foucault sobre o “grande internamento” dos loucos, em “História da Loucura na Idade Clássica”, é uma fraude.
Por exemplo: “O Classicismo [isto é, a razão iluminista] inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por novas personagens no mundo europeu: são os ‘internos’” (Foucault, op. cit., p. 61).
O fato, mostrado por Sedgwick, de que o internamento de loucos surgiu muito antes, uns três séculos antes, do Iluminismo (inclusive com antecedentes na Idade Média), não tem a menor influência sobre Foucault, a quem importa mais a sua fantasia contra o racionalismo do que a realidade.
Depois de publicado o livro de Sedgwick, houve foucaultianos que pretenderam que seu mestre jamais quis fazer uma história factual da loucura, mas uma espécie de metáfora ou poema filosófico, mais ou menos no estilo de Nietzche. Além de ser mentira, há outro problema: qual o valor prático de um discurso desse tipo sobre a loucura ou a psiquiatria? Ou, fazendo a mesma pergunta de outro modo: é baseado em um discurso sem relação com a realidade – com o mundo dos fatos – que vocês foram e são a favor de acabar com o atendimento psiquiátrico?
CONCEITO/REALIDADE
Foucault pretendeu – em “História da Loucura na Idade Clássica” – que o conceito de doença mental criou os doentes mentais.
Bem entendido, ele não está dizendo que os loucos não existiam, mas que não eram doentes mentais, porque não existia o conceito de doença mental.
Realmente não existia o conceito – se bem que datar sua origem a partir de Pinel, ou a partir do Iluminismo, é um erro. Também o conceito tem um desenvolvimento histórico (v. por exemplo, J.A. Martinez Conesa, “Las perturbaciones mentales en el Corpus Hippocraticum”, Saitabi nº 41, [1] Universitat de València, 1991).
Mas isso é, exatamente, o que Foucault consideraria “historicismo” – toda a sua ênfase nas “descontinuidades”, tem o objetivo de evitar essa questão. Caso contrário, seu ataque ao Iluminismo ficaria suspenso no ar.
Porém, vamos admitir que o conceito de doença mental somente foi plenamente desenvolvido a partir do trabalho de Philippe Pinel, condensado em seu “Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie” (aparecido em setembro de 1800), que começa, precisamente, com uma declaração: “A marcha progressiva das luzes sobre o caráter e o tratamento da alienação mental se relaciona inteiramente com aquela que se seguiu para outras doenças, seguindo os degraus mais ou menos avançados da civilização dos povos” (P. Pinel, op. cit., Introduction).
Evidententemente, o conceito só pode ser uma abstração e generalização da realidade concreta, particular.
A ideologia não é capaz de criar o que antes não existia – o fato de, antes, o objeto da realidade (nesse caso, os “doentes mentais”) serem chamados por outro nome (p. ex., “loucos”, ao invés de “doentes mentais”), antes de ser formulado o conceito (nesse caso, o conceito de “doença mental”) em nada altera a realidade – isto é, a existência de doentes mentais, mesmo antes que se formulasse plenamente o conceito de doença mental.
Rigorosamente: o conceito de doença mental foi formulado porque existiam doentes mentais. E não o inverso.
É óbvio que Foucault atribuiu poderes miraculosos ao discurso – que, nele, adquire uma autonomia quase completamente arbitrária em relação à realidade, uma “autonomia” que somente não é delirante porque ele se preocupa obsessivamente em que esse discurso funcione para o seu público.
Como dissemos, o alvo de Foucault é, sem rebuços, o Iluminismo – o período em torno da Revolução Francesa. A consequência é que seu ataque à Razão iluminista, necessariamente, descamba para uma apologia do feudalismo. Essa apologia é travestida por um labirinto de citações altamente seletivas e interpretações com variado grau de arbitrariedade – mas que não são apresentadas como interpretações, e, sim, como saques de atenção – coisas em que outros, antes dele, supostamente, não prestaram a devida atenção.
COISAS
Somos obrigados, aqui, a examinar esse problema – pois Foucault tornou-se o autor mais citado, não apenas pelos “antimanicomiais”, mas em todas as teses de pós-graduação do país na área de “humanas”, substituindo Marx, Gramsci e dezenas de pensadores muito mais importantes e infinitamente mais progressistas.
As obras de Foucault, aliás, se transformaram no instrumento favorito para torturar alunos – ou incentivar a sua preguiça, o que não é excludente – em algumas de nossas universidades. Além, é claro, da corte de impostores “pós-modernos” que sempre vem atrás da imposição de Foucault. Assim, há uma camada de acadêmicos que se acha dispensada de pensar com a própria cabeça (ou até com a de seus ídolos, que também renunciaram a tal prerrogativa humana – impressionar os incautos com um discurso meramente ideológico, sem preocupações com a realidade, isto é, sem preocupações com a ciência, é, para essa gente, mais importante).
Em 1977, no IPUB (o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que conservou a sigla da época em que esta última instituição era a Universidade do Brasil), ao estranhar a descontinuidade das “configurações ideológicas” que Foucault apresentava como história (perdão, “arqueologia”) das ciências humanas em “As Palavras e as Coisas”, ouvi que “o importante é que Foucault presta atenção”. O autor da frase é hoje um dos mais conhecidos lacanianos do país – e, na minha opinião, uma excelente pessoa. Mas ele estava errado.
A questão da “descontinuidade” é – pelo menos eu achava – óbvia: como o “novo” somente pode surgir da transformação do “velho”, qualquer coisa, ou situação histórica nova, conserva elementos da anterior, ainda que, agora, subordinados ou secundários.
Porém, as “configurações ideológicas” de Foucault (nas suas palavras: “as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico”) – que são basicamente duas: uma que surge no século XVII e outra que surge no início do século XIX – me pareciam, entre uma e outra, ter o vácuo como recheio, por sua descontinuidade em relação à “configuração” anterior.
De certa forma, me lembravam – somente que exacerbadas – as concepções de cultura e/ou civilização expostas por Oswald Spengler, um pensador alemão de direita que, antigamente, era bastante lido no Brasil.
Mas todos no IPUB, nessa época, consideravam Foucault um pensador “de esquerda” – pelo menos não me lembro de nenhuma exceção, embora, justiça se faça, o grande professor Eustáquio Portela, titular de psiquiatria da UFRJ após a aposentadoria do professor Leme Lopes, fazia uma nítida separação entre Foucault e o marxismo, o que me deixava, injustamente, irritado com o mestre, talvez porque ele tivesse razão. Mas Portela era, ao que me lembre, o único que via tão nitidamente essa separação.
Nessa época, eu somente conhecia “As Palavras e as Coisas”. Ainda não lera “História da Loucura”, o que me deixava em desvantagem na discussão, pois todos nós éramos psiquiatras ou candidatos a psiquiatras.
Hoje, é possível dizer que Foucault não prestava atenção a quase nada (como disse o historiador Peter Gay, biógrafo de Freud, “ele não faz qualquer pesquisa, vai pelo instinto” – se substituirmos a palavra “instinto” por “chute”, teremos uma avaliação muito precisa).
Ao invés de “prestar atenção”, o que ele fazia era chamar a atenção dos leitores para onde ele quer que eles tenham a atenção. Alguém poderia dizer que todos os autores fazem isso. Não, quando o lugar para o qual se chama a atenção é um diversionismo para eludir o conjunto da realidade – ou, melhor dizendo, seus traços essenciais. O método de Foucault não é propriamente histórico – daí seus ataques ao “historicismo”. É mais semelhante ao dos prestidigitadores – somente que mais desonesto, pois, ao contrário dos mágicos, ele quer passar os truques como se verdade fossem.
Em uma resposta a críticas de autores anglo-saxões, Foucault disse algo revelador: “Entre as razões pelas quais é verdadeiramente difícil ter um diálogo com americanos e ingleses, é que, para eles, a questão crítica para o filósofo é: ‘isso é verdade?’ ” – e, em seguida, argumenta que a tradição “germano-francesa” (?) é diferente.
É difícil – aliás, impossível – imaginar Descartes, Kant ou Hegel (para não citar Marx) como pensadores despreocupados em indagar: “isso é verdade?”.
Mas, Foucault, realmente, não tem essa preocupação.
Certamente, ele não foi o primeiro a tomar o discurso pela vida – ou, mais precisamente, não foi o primeiro a tentar reduzir a vida a um discurso arbitrário, supostamente onipotente – pois tudo é possível no discurso quando há uma ruptura entre ele e a vida.
Porém, mesmo com esse discurso, ele tem de contornar os problemas reais – ou seja, reconhecer, de um modo ou de outro, que eles existem – sob pena de desmoralização do discurso. Nesses momentos, se nos permite o leitor o uso de uma expressão popular, seu discurso é mais ensaboado que o bagre da lenda.
Por exemplo, em “As Palavras e as Coisas”:
“O ser humano não tem mais história: ou antes, porque fala, trabalha e vive, acha-se ele, em seu ser próprio, todo imbricado em histórias que não lhe são nem subordinadas nem homogêneas. Pela fragmentação do espaço onde se estendia continuamente o saber clássico, pelo enredamento de cada domínio assim liberado sobre seu próprio devir, o homem que aparece no começo do século XIX é ‘desistoricizado’.”
Foucault está falando do período logo em seguida à Revolução Francesa, ainda com as tropas de Napoleão percorrendo a Europa. Mas, como ele leva em conta a realidade somente para evitá-la, poderia estar falando da ideologia da época, especialmente da ideologia predominante nos meios acadêmicos.
No entanto, foi exatamente no começo do século XIX, em 1807, que Hegel, professor na Universidade de Iena até 1806, publicou “Fenomenologia do Espírito”, livro em que diz, logo no início:
“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo” (G.W.F. Hegel, “Fenomenologia do Espírito”, Parte I, trad. Paulo Meneses/Karl-Heinz Efken, 2ª ed., Vozes, 1992, p. 22).
E, mais explicitamente ainda:
“… não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. Na criança, depois de longo período de nutrição tranquila, a primeira respiração – um salto qualitativo – interrompe o lento processo do puro crescimento quantitativo; e a criança está nascida. Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo” (G.W.F. Hegel, idem, p. 26).
O ser humano jamais fora tão “histórico” quanto, até então, no fim do século XVIII e começo do século XIX. Daí os versos de Carducci, o poeta da unificação italiana: “Emanuel Kant decapitou Deus/ Maximiliano Robespierre, o rei” (Decapitaro, Emmanuel Kant, Iddio,/ Massimiliano Robespierre, il re).
Como Foucault afirma o contrário e consegue manter o discurso?
Simplesmente, escorregando para o oposto:
“Haveria, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão radical que funda todas as outras. É justamente essa erosão primeira que o século XIX buscou na sua preocupação de tudo historicizar, de escrever, a propósito de cada coisa, uma história geral, de remontar incessantemente no tempo e de repor as coisas mais estáveis na liberação do tempo” (M. Foucault, “As Palavras e as Coisas”, trad. Salma Tannus Muchail, 8ª ed., Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 510).
O que liga uma coisa e outra?
Frases do tipo “a História mostra que tudo o que é pensado o será ainda por um pensamento que ainda não veio à luz” (M. Foucault, op. cit., p. 515).
VERBO
O chamado “movimento antimanicomial” também segue o seu ídolo no período final, em que Foucault acabou afogado na apologia aberta do neoliberalismo.
Em um trecho dessa longa, maçante e medíocre ode neoliberal, proferida entre janeiro e abril de 1979 no Collège de France, Foucault expõe seu reacionarismo sob o ângulo “metodológico”:
“O historicismo parte do universal e passa-o, de certo modo, pelo ralador da história. Meu problema é o inverso disso. Parto da decisão, ao mesmo tempo teórica e metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os universais não existem; e formulo nesse momento a questão à história e aos historiadores: como vocês podem escrever a história, sem admitir a priori que alguma coisa como o Estado, a sociedade, o soberano, os súditos, existe? Era a mesma questão que eu colocava quando eu dizia, não sei se a loucura existe; vou examinar se a história me dá, me remete para alguma coisa como a loucura; não, ela não me remete para alguma coisa como a loucura, logo a loucura não existe. Não era esse o raciocínio, não era esse o método de fato. O método consistia em dizer: suponhamos que a loucura não exista. A partir disso, qual é a história que se pode fazer desses diferentes acontecimentos, dessas diferentes práticas que, aparentemente, se organizam por essa suposta alguma coisa que é a loucura? Então, é exatamente o inverso do historicismo que eu queria aqui colocar no lugar. Não interrogar, então, os universais, utilizando como método crítico a história, mas partir da decisão da inexistência dos universais para perguntar que história se pode fazer” (cf. M. Foucault, “Naissance de la Biopolitique, Leçon du 10 janvier 1979”, Gallimard/Seuil, 2004, grifos nossos).
É sabido o que a direita acadêmica chama de “historicismo”: basicamente, como disse um de seus caudilhos, Karl Popper, o marxismo e a psicanálise.
Fora isso, o único comentário possível sobre esse outro “método” de Foucault, ao adotar como premissa a inexistência do que existe, é que nem por isso o existente passa a ser inexistente: a doença mental e o sofrimento de cada paciente continuam concretos – e só aumentam, quando negamos a esse sofrimento a humana abordagem de tratá-lo como doença.
Mas, vejamos, por último, uma outra faceta do “método” Foucault.
Na segunda metade da década de 50 do século passado – e até o fim da década posterior – o marxismo era predominante no meio acadêmico francês.
Por exemplo, um dos principais “estruturalistas”, Roland Barthes, em seu conhecido livro de 1957, Mythologies, reivindica-se um marxista – e sinceramente.
Até Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir resolveram integrar o existencialismo ao marxismo – logo o existencialismo, que nascera como resistência pequeno-burguesa ao marxismo (aliás, Sartre foi até bem sucedido em seu objetivo: v. “Crítica da Razão Dialética”, que inclui o esforço anterior nesse sentido, “Questões de Método”, onde está a afirmação: “o marxismo permanece a filosofia de nosso tempo: é insuperável, pois as circunstâncias que o engendraram não foram ainda superadas”).
Nesse meio, era difícil para Foucault apresentar-se como um “filósofo” direitista. Sua solução foi a de construir labirintos com autores e citações escolhidas em função dessa construção – e não foram poucos os que ficaram, e ainda estão, perdidos nesses labirintos, considerando-o “marxista” ou “estruturalista”, apesar de sua afirmação, mas já quase ao final da vida: “Nunca fui freudiano, nunca fui marxista e nunca fui estruturalista”. Antes, quando Freud, Marx – e, depois, Levy-Strauss – eram moda acadêmica, ele preferiu um grau de dubiedade não pequeno sobre essas definições.
Uma questão que seria mais fácil de perceber, no passado, se considerássemos, ao invés das vias do labirinto, o material de que são feitas as suas paredes.
Por exemplo, em “História da Loucura”, ele tem um problema grave, que coloca em risco toda a sua construção: a obra de um dos principais iluministas, Voltaire, não confirma o que ele diz do Iluminismo quanto a uma questão decisiva para a concepção de doença mental: a relação entre, digamos assim, corpo e alma.
Pelo contrário, o que Voltaire escreveu, deita no chão o labirinto mental tão obsessivamente construído por Foucault.
A solução de Foucault foi a de dizer que a concepção de Voltaire sobre a loucura “não pertence à problemática médica do século XVIII (…) o texto de Voltaire (…) não é representativo da experiência da loucura naquilo que ela podia ter, no século XVIII, de vivo, de maciço, de espesso. (…) O fato de Voltaire ter esboçado do exterior, e através de desvios complexos, essa problemática simples não autoriza a reconhecê-la como essencial para o pensamento do século XVIII” (M. Foucault, op. cit., p. 235).
Logo, podemos concluir que o pensador francês mais característico do século XVIII, quanto à doença mental, não é um pensador francês característico do século XVIII.
Não é um bom método, esse de cortar as aparas dos labirintos mentais? Basta apenas enviar o pensamento daqueles que atrapalham a construção do labirinto para outro século…
O ANTI-HUMANISMO
Aqui, é necessário considerar a base ideológica dessa negação do ser humano – a negação da doença mental é sempre uma negação do ser humano – em um quadro histórico um pouco mais amplo.
O espaço para regressões – ou decadências – como o chamado “estruturalismo”, o “pós-modernismo”, o “neoliberalismo” e outros rótulos ou viagens anti-dialéticas, que assolaram as universidades, correspondeu ao vácuo deixado pelo recuo na luta ideológica, após o XX Congresso do PCUS, em 1956.
Não se trata, sobretudo, de um recuo dentro das universidades. Estas, por melhores ou piores que sejam, não são tão importantes assim. Elas não determinam a luta de classes real. Pelo contrário, é esta última que determina a luta de classes – a luta ideológica – dentro da universidade.
Hoje, depois do que ocorreu nas seis décadas posteriores à traição de Krushev, é relativamente fácil constatar o sentido dos acontecimentos. Aqui, apenas apontamos o contexto histórico, sem desenvolver sua análise, o que iria muito além do objetivo deste artigo. Mas há uma questão correlata, que tem um interesse direto para o nosso tema: a canonização acadêmica dos “pós-modernos” – Foucault et caterva – se deu não apenas em meio ao aumento da ignorância, desprezo pela ciência e ódio ao Iluminismo (isto é, à Razão), mas, também, com o fim de qualquer debate, tão comum em décadas anteriores, sobre o chamado “irracionalismo alemão”. Até essa última expressão deixou de ser usada. Passou-se à mera e grosseira adesão.
Assim, Nietzche – o modelo de Foucault – tornou-se uma religião acadêmica, com não poucas coisas absolutamente ridículas: uma famosa professora, em uma de nossas mais prestigiosas universidades, iniciava (se é que ainda não inicia) seu curso sobre Nietzche, fazendo os alunos entoarem em coro um dos cantos de Zaratustra (“Uma!/ Ó homem! Presta atenção!/ Duas!/ Que diz a meia-noite em seu bordão?”, etc.), na conhecida tradução de Mário da Silva (ela não aceitava outra – o que devia ser uma concessão, pois é um prodígio que não tenha exigido a oração nietzcheana em alemão…).
Antes que algum curioso pergunte a minha fonte, como o velho timbira de Gonçalves Dias, posso dizer: “Meninos, eu vi!”. É verdade que o índio “coberto de glória” do poema viu coisas muito mais interessantes…
Na prática – e na teoria – deixou de existir contestação ao irracionalismo dentro dos nichos acadêmicos. O que não quer dizer que todos os professores fossem (ou sejam) cultores dessas religiões. O que deixou de existir foi polêmica – somente aos neoliberais, e assemelhados, foi permitida uma agressividade sem limites no ataque aos adversários.
Notemos que toda a tradição racionalista – desde Descartes e Spinoza até Kant, Hegel e Marx – é uma tradição contra a arbitrariedade do discurso.
Nietzche é, precisamente, o oposto. No lugar da ciência, Nietzche coloca, exatamente, aquilo que Hegel denominou – para excluí-lo da filosofia – “o arbitrário do discurso profético”, que, aliás, só é profético pela pretensão arbitrária, de quem o emite, a ser profeta – e não porque seja realizável.
Que tanto os nazistas quanto os neoliberais tenham reivindicado Nietzche, mostra não apenas como, no fundo, neoliberalismo e nazismo são aparentados, mas, em outro plano, como é arbitrário o discurso irracionalista, capaz de proferir coisas como:
“Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda a frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca: “Eu, o Estado, sou o povo! (…) Nasce gente demais; para os supérfluos, inventou-se o Estado! (…) Onde cessa o Estado, somente ali começa o homem que não é supérfluo” (F. Nietzche, “Assim Falou Zaratustra”, trad. Mário da Silva, 13ª ed., Civ. Bras., 2005, pp. 75 e 77).
Porém, é somente como entidade coletiva – “protetora dos fracos”, isto é, dos “supérfluos” – que o Estado é odiado por Nietzche. A submissão do Estado a algum “führer”, certamente, nada tem a ver com isso:
“Pelo super-homem, almeja o meu coração, é ele o meu primeiro e único anseio – e não o homem: não o próximo, não o mais pobre, não o mais sofredor, não o melhor (…). É que, hoje, os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores; pregam todos a resignação e a desambição e a cordura e a consideração pelos outros (…). O que é de natureza feminina, o que provém da condição servil e, especialmente, a mixórdia plebeia: isso, agora, quer tornar-se o senhor de todo o destino humano. – Oh, nojo! nojo! nojo! (…) Superai, meus irmãos, esses senhores de hoje – esses pequenos homens: eles são o maior perigo do super-homem!” (F. Nietzche, op. cit., p. 335).
[UMA NOTA: Desde o fim da II Guerra Mundial, sucessivos simpatizantes de Nietzche atribuíram à sua pavorosa irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, a falsificação de textos em publicações póstumas – em especial, “A Vontade de Poder” – para contemplar o credo nazista. Elisabeth Förster-Nietzsche foi, realmente, uma nazista desde muito antes que o nazismo surgisse como força política – e foi muito promovida na Alemanha, após Hitler tomar o poder, quando aderiu ao partido. Mas é bobagem atribuir a suas falsificações a proximidade que os nazistas sentiam em relação a Nietzche – e também Mussolini, que lia e relia seus livros no original alemão. Nietzche era, e continua sendo, um ideólogo da impotência e do esmagamento pequeno-burguês diante dos grandes monopólios financeiros e imperialistas. Daí a mistura de arrogância, horror ao coletivo, servilismo e insanidade que o caracterizava – e também ao nazismo. Para não falar de outros movimentos contra a racionalidade, tal como aquele que é nosso tema neste artigo.]
NECESSIDADES
O campo da psiquiatria – isto é, da doença mental – não é o único em que se manifestaram as tendências reacionárias e irracionalistas, ainda que sob capa, supostamente, “anti-discriminatória”, que somente serviu (e somente serve) para encobrir cortes de verbas para custeio e investimento com a saúde da população.
Ou para – um caso em tudo análogo – despojar autores de seus direitos autorais, sob a bandeira da “liberdade autoral”, apenas para satisfazer a voracidade de monopólios da indústria “cultural”.
Para não alargar demasiado o nosso foco, vejamos, apenas, o que aconteceu no atendimento aos deficientes mentais – crianças e adultos com necessidades especiais quanto ao aprendizado.
Aqui, é necessário sublinhar algo que, na confusão atual, não é de compreensão imediata: as deficiências mentais não são um problema psiquiátrico, não são objeto de tratamento psiquiátrico, exceto se houver alguma patologia psíquica associada – e, mesmo assim, será esta última, e não a deficiência mental, o objeto de tratamento para o psiquiatra.
As deficiências mentais são um problema educacional, pedagógico, não um problema psiquiátrico. Alunos com necessidades especiais exigem uma educação especial.
No entanto, passou-se a teorizar – se é possível assim chamar essa descarga de preconceito – que as instituições dedicadas à educação especial são “discriminatórias”, e, até mesmo, que “funcionam como prisão”.
No Brasil, isso se manifestou, sobretudo, na campanha contra as Associações de Pais e Amigos de Excepcionais (APAEs), em especial, contra qualquer ajuda pública a essas instituições.
Durante o debate sobre o Plano Nacional de Educação (PNE), que o governo Dilma depois transformou em letra-morta, houve a tentativa de excluir qualquer instituição especializada da meta quatro desse plano, que diz respeito à “população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”.
De nossa parte – isto é, do autor deste artigo – temos a opinião que toda a formulação da meta quatro é um engodo, a começar por essa mixórdia de “deficiência” com “altas habilidades ou superdotação”.
Mas esse não é o nosso assunto.
Somente apontaremos que colocar crianças com deficiência mental em salas de aula comuns, com 30, 40 ou 50 alunos, que não são deficientes, de mesma idade (ou em outras faixas etárias, que seja), é de uma crueldade poucas vezes vista desde antes que Pestalozzi, um seguidor do iluminista Jean-Jacques Rousseau, formulasse suas teorias educacionais.
Chamar isso de “sistema educacional inclusivo” – e não uma farsa educacional que, além da crueldade, leva a extremos como a “aprovação automática” dos neoliberais – pode servir para aqueles que têm dificuldade em aceitar os problemas de seus filhos, porque, no fundo, culpam-se tanto por esses problemas, que, numa ginástica egocêntrica, preferem negar a própria realidade. Mas, ignorar esses problemas não os transformam em pais ou mães melhores e mais humanos. Pelo contrário.
Certamente, não é assim que tais preconceitos, falsamente “anti-discriminatórios”, são formulados. No PNE, por exemplo, fala-se em “atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino”. Resta saber qual a “rede regular de ensino” do país – isto é, a rede pública, onde estão 82% das matrículas no ensino básico – em que existe esse “atendimento educacional especializado”. Na verdade, o resultado dessa política é que somente uma quantidade muito pequena da educação especial está na rede pública – o que quer dizer que a maioria da população está excluída do seu acesso.
Estamos falando de uma população que, no Censo de 2010, abarcava 2,4 milhões de brasileiros – e é muito provável que seja maior, pois, geralmente, este é um dos itens do Censo em que há uma tendência à sub-informação (cf. IBGE, Censo Demográfico 2010, Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência, tab. 1.3.1 a 1.3.12).
Segundo o Censo Escolar, em 2014, havia 161.043 alunos com necessidades especiais matriculados em escolas especializadas, 83% deles (133.307 matrículas) na rede privada.
Enquanto isso, havia 698.768 alunos com necessidades especiais em classes comuns, sem atendimento especializado – e 94% deles (655.375 matrículas) estavam na rede pública (cf. MEC/Inep, Censo da Educação Básica 2014, Sinopse Estatística da Educação Básica, tab. 1.37 a 1.44).
Isso é quase tudo o que é preciso dizer sobre essa suposta política “anti-discriminatória”: o que ela discrimina são os pobres.
Como, de resto, qualquer política neoliberal, seu lema é: “os pobres que se danem”.
A situação seria ainda pior se, entre as instituições listadas como “privadas” não estivessem, por exemplo, as APAEs. Porém, é pouco para as necessidades do país.
Não entraremos na discussão sobre a contradição entre os termos “atendimento educacional especializado” e “rede regular de ensino”, que evidenciaria o escopo (?) demagógico da redação dessa meta do PNE. Mais importante é mostrar o resultado concreto dessa política do que enfrentar mais uma mistificação teórica.
No entanto, sempre é bom lembrar que, na discussão do PNE no Congresso, chegou-se a cortar a palavra “preferencialmente” da redação da “meta quatro”, o que eliminaria as APAEs, e qualquer outra instituição especializada, pública ou privada, do ensino brasileiro reconhecido pelo MEC – portanto, impediria qualquer investimento, gasto ou ajuda pública.
A DESORDEM
Voltemos, agora, à doença mental.
A negação da doença mental tornou-se tão corriqueira que as próprias classificações oficiais de doenças mentais substituíram a palavra “doença” por “transtorno” (em Portugal, “perturbação”) – uma tradução do inglês “disorder”, pois foi a classificação dos EUA, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, conhecido pelas iniciais DSM, que instituiu tal substituição, em seguida imposta à Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS), usada no Brasil (sobre o DSM, uma classificação com tremenda influência, bem pouco científica, da indústria multinacional de medicamentos e das empresas de planos e seguros-saúde, ver o nosso artigo “DSM-5: a decomposição da psiquiatria da subserviência”, HP 16, 18 e 23/01/2013).
[UMA NOTA: a explicação da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a adesão ao termo “disorder” na Classificação Internacional de Doenças, 10ª edição (CID-10), é característica. Diz a sua introdução: “o termo ‘disorder’ é usado em toda a classificação, de forma a evitar problemas ainda maiores advindos do uso de termos como doença (‘disease’) e enfermidade (‘illness’)”.
Pode-se discutir, por exemplo, a distinção conceitual – adotada, entre outros, pelo professor Luiz Salvador de Miranda Sá Jr. – entre “enfermidade” (a patologia em termos objetivos) e “doença” (a vivência da enfermidade, isto é, a enfermidade do ponto de vista subjetivo, do ponto de vista de quem se sente doente). Mas não é a essa espécie de problema que se refere a CID-10, ao recusar tanto o termo “enfermidade” quanto “doença”.
Continuemos o texto:
“‘Disorder’ não é um termo exato, mas é usado aqui para implicar a existência de um conjunto de sintomas clinicamente reconhecíveis ou comportamento associados na maior parte dos casos a sofrimento e interferência com funções pessoais”.
Um “conjunto de sinais e sintomas” é o que (desde o século XVII, quando Thomas Sydenham introduziu o termo em medicina) chama-se “síndrome”. Mas, então, o termo “disorder” é apenas um pseudônimo para o antigo – e mais preciso – conceito de “síndrome”? Na verdade, como é claro pelo texto da CID-10, não é em nome de uma precisão maior, mas de evitar críticas de natureza ideológica – não quaisquer críticas, mas aquelas do establishment cevado na medicina por alguns monopólios – que a OMS aderiu ao mesmo termo da classificação norte-americana. A opção é, assim, claramente, por uma precisão menor – e não maior. FIM DA NOTA]
PELA LEI
Em nosso país, chegou-se ao absurdo de aprovar, na Câmara dos Deputados, um projeto de lei, em 2009, tornando obrigatória a expressão “transtorno mental”. O motivo era a resistência em adotá-la, como diz, em sua justificativa, o deputado tucano que propôs essa percuciente norma jurídica.
Em suma, queria-se, por lei, impor uma ideologia e enquadrar um debate científico – aliás, encerrá-lo e impossibilitá-lo.
Posição mais extremada que a dos autores do termo, a American Psychiatric Association, que, pelo menos, adverte, na introdução da quarta edição de seu manual, que o suposto conceito de “disorder” conduz, do ponto de vista científico, a um beco sem saída: “O problema levantado pelo termo ‘transtornos mentais’ [‘mental disorders’] tem se tornado muito mais claro do que sua solução, e, infelizmente, o termo persiste no título do DSM-IV porque não se achou um substituto adequado”.
Foi um mérito do Senado Federal que, uma vez recebido esse projeto da Câmara, o tenha rejeitado por unanimidade na Comissão de Assuntos Sociais – o que teve “caráter terminativo”, isto é, encerrou a carreira do projeto, por bons motivos. Diz o parecer – de raro bom senso – aprovado pelos senadores, de autoria do senador Paulo Davim (PV-RN), por sinal, um médico:
“Do mesmo modo que a expressão ‘alienação mental’ envelheceu e se tornou obsoleta, ‘enfermidade psíquica em geral’ e ‘transtorno mental’ são expressões sujeitas a esse mesmo fenômeno. Definir, no texto legal, ‘transtorno mental’ como ‘enfermidade psíquica em geral’ não terá o condão de impedir que ambas as expressões adquiram, daqui a vinte ou cinquenta anos, significados diversos dos desejados pelo legislador dos dias atuais. (…) Destarte, entendemos que a substituição indiscriminada de ‘quaisquer outras designações legais relativas à mesma classificação’ pela expressão ‘transtorno mental’, conforme propugna o PLC sob análise, é inoportuna e desnecessária. É preciso avaliar cada previsão legal individualmente para determinar qual a melhor terminologia a ser empregada. Ressalte-se que, a despeito das intenções do autor, a aprovação do PLC nº 106, de 2009, não provocaria a automática substituição das expressões mencionadas”.
DOENÇA
Evidentemente, o termo “disorder” (dis-order) coloca a doença mental como uma perturbação de uma ordem pré-existente.
Porém, ninguém até hoje considerou o sarampo como uma “perturbação da ordem estabelecida”. Mas, também, ninguém até hoje negou ao sarampo o seu caráter de doença – mesmo quando não se conhecia a sua causa (“etiologia”), ou seja, quando ele era, para os médicos, uma “síndrome”, um conjunto de sinais e sintomas clínicos, mas sem causa conhecida.
Por que seria diferente no caso das doenças mentais?
Em sua excelente crítica às concepções de Szasz, o psiquiatra galês Robert Evan Kendell argumenta, convincentemente, que toda doença tem aspectos físicos e psicológicos – e lembra que a dor é um fenômeno psicológico (este é o motivo porque a morfina e outros opiáceos são eficazes no combate à dor, apesar de não atuarem no substrato orgânico do sintoma).
Porém, nos parece que Kendell – que tem o mérito de mostrar como, do ponto de vista estritamente médico, Thomas Szasz é notavelmente ignorante – subestima uma questão: o relacionamento dos seres humanos com doenças (isto é, com doentes) que se manifestam por alterações sobretudo do pensamento, da percepção da realidade e dos sentimentos, é diferente daquele que estabelecemos com doenças (ou doentes) cuja principal manifestação é somática, física, corporal.
Isto se dá em virtude das características da própria espécie humana, que se realiza apenas numa coletividade consciente – ainda que o grau ou até qualidade da consciência possa variar enormemente ao longo da História e das sociedades humanas.
Mas isso nada tem a ver com a negação da doença mental.
JULIANO
Vejamos alguns trechos de um artigo publicado pelo dr. Juliano Moreira e por um discípulo – hoje mais lembrado como romancista que como psiquiatra – em 1905, ou seja, há 111 anos:
“No tocante à causa da paranoia há uma tendência geral para incriminar a degeneração – esse mal feito da herança próxima, ou mesmo, mais recuada, do atavismo.
“Esta doutrina de degeneração, desde que se apresentou a Morel e veio nos tempos recentes a se assenhorar da psiquiatria, não encontrou ainda senão submissões irrefletidas, que se vão sucessivamente imitando, porque é mais fácil pensar com os outros do que observar consigo mesmo.
(…)
“O critério com que em psiquiatria hodierna, de origem latina sobremodo, se aponta à degeneração – três ou quatro estigmazinhos irrisórios – um lóbulo aderente da orelha, um septo desviado do nariz, um queixo mais comprido, uns dentes mais separados – a austeridade com que lhe esfumaçam as consequências, permitindo de um lado supor degenerada toda a espécie humana, marcando-lhe do outro, como destino inelutável, o hospital, o manicômio, a prisão, a esterilidade e a extinção, fazem crer que chegamos a um finis hominis irremediável.
“Deslembram-se esses médicos acanhados de que a degeneração que veem por toda a parte é uma já estereotipia diagnóstica, quando não seja uma simples ecolalia de designação, e que, para contrapor aos casos sisudamente comprovados de derrancamento somático do indivíduo, há, a todos os momentos, esta obra de regeneração da espécie que suprime o indivíduo, quando não logra corrigir-lhe as aberrações, integrando, no futuro, o tipo comum.
“Depois, a herança que explica a degeneração e outros malfeitos mais parece ter sido gravada de imaginárias culpas. Não há muito tempo todas as doenças eram hereditárias: para tomar uma só delas, a tuberculose, vimo-la sofrer sucessivas interpretações etiológicas: primeiro herdava-se a tuberculose, depois falou-se na heredotuberculose tardia, mais tarde na predisposição… Agora, Berend demonstrou-o, filhos de héticos até, ninguém traz originariamente a semente de Koch (…).
“Esquecemo-nos por completo do meio em que vivemos uma vida inteira de combates e reações incessantes para tudo atribuir a umas tantas metafísicas da biologia, ainda sem provas. A não ser compreendendo na expressão herança aquele sentido latíssimo que um de nós já lhe emprestou, falando de herança sociológica, que mais prepondera na gênese do adultério que a biológica…” (Juliano Moreira e Afrânio Peixoto, “A paranoia e as síndromes paranoides”, Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, Rio, nº 1, 1905, p.5-33, republicado por História, Ciências, Saúde-Manguinhos vol. 17, supl. 2, Rio, dezembro 2010).
CONHECIMENTO
Nós sabemos o que Kraepelin, Bleuler, Jaspers, Freud ou Juliano Moreira aportaram à ciência.
Mas, qual o conhecimento sobre a doença mental que os “antimanicomiais” trouxeram à psiquiatria – e outros campos correlatos?
Nenhum, até porque sua preocupação é negar qualquer possibilidade de conhecimento – real, verdadeiro, científico – neste campo, já que a própria doença mental, para eles, não existe.
Além disso, para nós, brasileiros, existe a negação de um aspecto nacional, que é importante para completar o perfil dos “antimanicomiais”.
A psiquiatria brasileira, em sua origem, foi um combate – e um combate acirrado – entre duas tendências: uma, reacionária, racista, derivada de Nina Rodrigues, cujo principal expoente foi Henrique Roxo.
A outra, fundada por Juliano Moreira e um sem número de discípulos, que demoliram as teorias racistas, antes e depois da Revolução de 30.
Uma excelente síntese desta última tendência é a seguinte:
“[Juliano Moreira] criticava pelo menos três crenças dominantes na psiquiatria comparada do começo do século XX: primeiro, afirmava que não havia doenças mentais próprias dos climas tropicais; segundo, que a condição racial de um indivíduo não daria imunidade nem tampouco favoreceria o aparecimento de certas formas de insanidade mental; e, terceiro, recusava a tese da inferioridade intelectual nata do negro, atribuindo-a a fatores sociais e educacionais” (cf. Ana Maria Galdini Raimundo Oda e Walmor Piccinini, “Dos males que acompanham o progresso do Brasil: a psiquiatria comparada de Juliano Moreira e colaboradores”, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VIII, 4, pp. 788-793).
Já em 1896, quando, aos 23 anos, foi aprovado em concurso público para professor da Faculdade de Medicina da Bahia (Juliano Moreira entrou aos 13 anos para o curso de medicina, o que, para um negro – aliás, para qualquer um – era, e é, um prodígio, mais ainda em 1886, dois anos antes da Abolição da escravatura), ele disse, em seu discurso de posse na cátedra:
“Subir sem outro bordão que não seja a abnegação ao trabalho, eis o que há de mais escabroso. Tentei subir assim, e se méritos tenho em minha vida este é um. Bem se vê que há muito mais que admirar na bravura nobre, ainda que por vezes ignorada, com que o pequeno reage, pé ante pé, de agrura em agrura, do que em muito triunfo que o nascimento exagera com antecipado, embora falso, renome e que a proteção imerecida incrementa. A quem se arreceie que a pigmentação seja nuvem capaz de marear o brilho desta Faculdade, me parece estar vendo a imagem fulgurante da Pátria Brasileira desde Gonçalves Dias a Gonçalves Crespo, a espargirem os esplendores maravilhosos da beleza de seus versos, até Tobias Barreto, deslumbrante e glorioso. Em dias de mais luz e hombridade o embaçamento externo deixará de vir à linha de conta. Ver-se-á, então, que só o vício, a subserviência e a ignorância são que tisnam a pasta humana quando a ela se misturam ganhando-lhe o íntimo e aí inviscerando o mal. A incúria e o desmazelo que petrificam, a hipocrisia, a baixeza e a desfaçatez que desmoralizam, sim, dão àquela massa humana aquele outro negror que a torna incapaz de fornecer radiações. A contínua genuflexão é que atrofia os músculos com que marchamos e aqueles com que conservamos a espinha ereta” (cit. em Ana Maria Galdini Raimundo Oda, “Alienação mental e raça: a psicopatologia comparada dos negros e mestiços brasileiros na obra de Raimundo Nina Rodrigues”, FCM/Unicamp, 2003, p. 304).
A demolição científica do racismo seria o centro da polêmica de Juliano Moreira contra Nina Rodrigues – e, depois, de seu famoso artigo, também escrito com Afrânio Peixoto, “As doenças mentais nos climas tropicais” (este artigo, escrito em francês para o XV Congresso Internacional de Medicina, realizado em Lisboa, 1906, foi traduzido em 2005 por Monica Seincman, Ana Maria G. R. Oda e Paulo Dalgalarrondo: v. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 8, nº 4, pp. 788-793).
Em 1913, em um congresso na Bélgica, contestando um psiquiatra francês, que postulava a existência de patologias específicas das colônias tropicais (em geral, as colocações racistas eram disfarçadas como problemas “climáticos”), Juliano Moreira foi ainda mais claro:
“Se nas colônias tropicais existe alguma doença mental autônoma, que mereça as denominações referidas, vem isso demonstrar que o fato é mais inerente à condição de colônia dessas regiões que à sua situação nos trópicos, visto que no Brasil nada temos de parecido. Faremos, pois, muito bem em nos vangloriarmos de termos conquistado nossa independência” (cit. em Paulo Dalgalarrondo, “Civilização e Loucura: Uma Introdução à História da Etnopsiquiatria”, São Paulo, Lemos, 1995).
É muito característico de Juliano Moreira que o psiquiatra ao qual estava respondendo fosse o autor do livro-texto de psiquiatria mais usado nas faculdades de medicina francesas da época, Emmanuel Régis. O psiquiatra brasileiro jamais se intimidou perante títulos ou “nomes”.
Antes dos 30 anos, aliás, ele se chocara com Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia bem mais velho, cujo conceito sobre os mulatos aparece, nitidamente, em sua comparação destes com os jagunços de Canudos: “Muito diferente”, garantiu Rodrigues, “é o mestiço do litoral, que a aguardente, o ambiente das cidades, enfraqueceram, abastardaram, acentuando a nota degenerativa e criando esses tipos imprestáveis e sem virilidade…” (cit. em Ana Maria Galdini Raimundo Oda, op. cit., p. 191).
Juliano Moreira, filho de um português que acendia lampiões em Salvador e de uma empregada doméstica negra, saiu-se bem nesse embate com Nina Rodrigues.
É essa a herança nacional que os “antimanicomiais” rejeitam.
ETIOLOGIA
Voltando ao conceito de doença mental, é importante ressaltar que Freud jamais negou – pelo contrário – uma base orgânica, isto é, material, para as doenças mentais, inclusive a histeria. Em um de seus últimos trabalhos, escreveu:
“A etiologia de todo distúrbio neurótico é, afinal de contas, uma etiologia mista. (…) Via de regra, há uma combinação de ambos os fatores, o constitucional e o acidental” (cf. S. Freud, “Análise terminável e interminável”, 1937, Ed. St. Bras., vol. 23).
Ou, em texto escrito ainda depois:
“O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental” (S. Freud, “Esboço de psicanálise”, 1938, Ed. St. Bras., idem).
Logo, a questão colocada por Szasz contra o conceito de “doença mental” – a falta de uma base física -, também quanto a Freud é inteiramente falsa. O conceito de “série complementar”, de Freud, é, precisamente, a condensação de seu ponto de vista sobre isso:
“Quanto à sua causação, os casos de doença neurótica enquadram-se numa série, dentro da qual os dois fatores – constituição sexual e experiência, ou, se preferirem, fixação da libido e frustração – estão representados de tal modo que, quando um dos fatores é mais forte, o outro o é menos. Em um dos limites da série estão os casos extremos dos quais os senhores poderiam dizer convictamente: essas pessoas, em consequência do singular desenvolvimento de sua libido, teriam adoecido de qualquer maneira, quaisquer que tivessem sido suas experiências e por mais que suas vidas tivessem sido protegidas. No outro limite da série, estão os casos que, pelo contrário, os senhores deveriam supor tivessem certamente escapado de adoecer, se suas vidas não os tivessem conduzido a esta ou àquela situação. Nos casos intermediários da série, um maior ou menor grau de predisposição na constituição sexual se combina com um grau menor ou maior de experiências nocivas na vida das pessoas. Sua constituição sexual não as teria levado à neurose, se não tivessem tido essas experiências, e essas experiências não teriam tido um efeito traumático sobre tais pessoas se sua libido tivesse sido disposta de outra forma. Nessa série posso, com certeza, admitir uma preponderância na importância dos fatores predisponentes; porém, admitir isto também depende de saber até onde os senhores resolvem ampliar as fronteiras da doença neurótica. Proponho, senhores, que denominemos a uma série desse tipo ‘série complementar’, e previno-os de que terão oportunidade de formar outras da mesma espécie” (S. Freud, “Conferência XXII – Algumas ideias sobre desenvolvimento e regressão — etiologia” in “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (parte III)”, 1917, Ed. St. Bras., vol. 16).
O que é muito mais preciso do que dizer, como faz a penúltima edição do DSM (o DSM-IV), que “o conceito de transtorno mental, como muitos outros conceitos em medicina e ciência, não tem uma definição operacional consistente que cubra todas as situações”.
Ou, na edição posterior (a última, o DSM-V) do manual norte-americano: “o diagnóstico de um transtorno mental não é equivalente à necessidade de tratamento” – e, depois: “os clínicos podem encontrar indivíduos cujos sintomas não satisfazem todos os critérios para um transtorno mental, mas que demonstram necessidade evidente de tratamento”.
Deixamos ao leitor a consideração sobre o caráter científico de tais concepções.
HISTÓRIA
Se houvesse justiça no mundo, se não houvesse tanta ingratidão, o “movimento antimanicomial” teria que erigir o atual senador José Serra em patrono – e, talvez, edificar uma estátua para ele, pois não há nenhum “antimanicomial” mais consequente do que esse prócer tucano.
Pois foi devido a Serra, quando ministro da Saúde de Fernando Henrique, que se aprovou a Lei nº 10.216/2001 – a suposta “reforma psiquiátrica”, que os “antimanicomiais” cobrem hoje de incenso.
Desde o governo Fernando Henrique, a situação dos doentes mentais – uso este termo intencionalmente, pois a fachada antimanicomial, ao negar a doença mental, nega aos doentes mentais a sua humanidade – somente piorou.
Segundo o Ministério da Saúde, 25.405 leitos psiquiátricos no SUS foram desativados de 2002 a 2014 – e a intenção do Ministério era desativar mais 1.200 em 2015 (cf. MS, Saúde Mental em Dados, Ano 10, nº 12, outubro/2015, p. 28).
A política, quanto aos remanescentes, é o estrangulamento financeiro: desde 2001, houve apenas dois reajustes na diária do SUS para pacientes psiquiátricos, o último em 2009, portanto, há sete anos, apesar da inflação do período 2009-2016 ter sido de 57,29%.
É muito fácil qualificar leitos psiquiátricos como “de baixa qualidade” (sic), quando se paga, como diária, R$ 43,73 (quarenta e três reais e setenta e três centavos) para todas as despesas com o atendimento do paciente.
Dizer que a suposta rede de CAPs (“Centros de Atenção Psicossocial” – um nome algo persecutório) substituiu os leitos desativados é, apenas, mentira. E não porque os hospitais psiquiátricos que foram fechados fossem excelentes. Pelo contrário. Mas a situação atual é ainda pior.
Hoje, o que se vê no país é uma catástrofe. Simplesmente, boa parte dos doentes mentais está nas ruas, entregue à caridade dos passantes. Por sorte, ao contrário da lenda e do preconceito, a maior parte é razoavelmente pacífica. Embora, de vez em quando, casos como o de Rodolpho Rocco enfatizam – de forma trágica, dolorosa, aguda – o quanto é precária a situação do atendimento em Saúde Mental.
Talvez o leitor não se lembre: o dr. Rodolpho Rocco era um grande médico do Rio de Janeiro e um grande mestre da medicina. Foi meu professor na UFRJ – era um homem competente, humano, um pouco parecido com Bianchon, o médico que Balzac criou (dizem que Balzac, deitado já para morrer, falou: “Bianchon me curaria…”).
No final da década de 90, o dr. Rocco tratava de um paciente, afetado por uma gastrite, que também era psicótico – e desenvolveu um delírio persecutório que tinha seu médico por objeto. O próprio Rocco, que não era psiquiatra, anotou, na ficha do paciente, a situação psíquica deste.
Enviado a um psiquiatra, foi proposto o internamento. A família recusou, pois, seguindo o bravo “movimento antimanicomial”, disse um de seus membros que internar pacientes psiquiátricos era algo “superado” – segundo relato do próprio psiquiatra.
Durante quatro meses, tentou-se internar esse paciente, sempre com a mesma recusa da família. Até que ele entrou no consultório de Rodolpho Rocco e crivou-o de balas. Nas palavras da esposa do dr. Rocco, por sinal, uma psicanalista: “Meu marido morreu vítima de nove balas perdidas, dirigidas a uma alucinação”.
Note o leitor que tratava-se de um paciente de classe média, com família estruturada – e que era atendido por um psiquiatra.
A maior parte dos doentes mentais do país não tem essa sorte.
O principal problema não é, entretanto, a morte ou dano físico a outras pessoas, por mais ilustres que elas sejam, como o dr. Rodolpho Rocco.
Acontecimentos como o que mencionamos apenas frisam de maneira aguda o ponto a que chegamos, sob uma ideologia vesga e regressiva, que usa o rótulo “antimanicomial” (que manicômios existem hoje no país?) para negar não apenas a existência da doença mental, mas também todo o acúmulo científico e humanístico desde que Philippe Pinel libertou os loucos das correntes, nos hospícios de Paris, durante a Revolução Francesa.
Pior e mais monstruoso ainda que a dor de pessoas como Rocco e seus familiares, é a dor dos pacientes, deixados ao léu, com uma insensibilidade hedionda.
DEDICATÓRIA
Este artigo, no original, tinha mais uma parte. Mas, por seu conteúdo especificamente médico, e em prol da paciência do leitor, omitimos esta parte.
Resta dizer que, apesar de planejado há tempos, foi um fato quase familiar que nos incentivou, enfim, a escrever este artigo.
Soube, por um casal de velhos amigos, que sua filha, psicóloga, estava participando do “movimento antimanicomial”.
Lembrei dela rapidamente: foi a única pessoa que, quando fez quinze anos, me fez dançar uma valsa – ou, melhor, fingir que estava dançando.
A ela, portanto, dedico estas modestas – até certo ponto – reflexões.