(HP 10/06/2003)
Não é centralmente o mercado, a concorrência, que define a taxa de juros
A elevada taxa de juros – uma das maiores, senão a maior do mundo – é, evidentemente, um problema crucial que o Brasil tem de resolver para que seja possível o desenvolvimento, isto é, o crescimento econômico e a justiça social. Daí, não espanta toda a ebulição dos últimos dias em torno de baixar os juros. Ninguém defende as altas taxas de juros: trabalhadores e empresários, governo e governados e, até mesmo, supõe-se, os banqueiros (dizem que quem silencia, consente), todos são a favor de juros menores.
CARTEL
Quanto aos banqueiros, tem razão o ministro José Dirceu ao denunciar a “gordura do sistema financeiro”, isto é, os seus estúpidos “spreads” (diferença entre o que os bancos pagam para captar dinheiro e o que cobram ao conceder empréstimos). No mesmo sentido, o presidente Lula ressaltou a disparidade entre os juros básicos (26,5% ao ano) e os juros cobrados pelos bancos (57% para as empresas; 99% nos empréstimos pessoais; 173% no cheque especial, etc.). O que Lula e Dirceu deixaram algo mais do que implícito é que os juros não estão assim porque são determinados “pelo mercado”. Realmente, não são – e há muito pouca gente que não perceba isso.
Outrossim, é natural – ou seja, não é surpreendente – que o camarada Meirelles, presidente do BC, acredite nisso e até o repita frequentemente. Sua lógica, evidentemente, é a dos banqueiros, entre os quais fez fulgurante carreira. Para quem é banqueiro – uns mais outros menos – o “mercado” é formado pelos banqueiros, ou seja, pelo cartel financeiro que domina e sufoca o mercado financeiro. Portanto, é o cartel, o monopólio do dinheiro, que deve determinar a taxa de juros.
Pois aí está o xis da questão: nada há nisso, naturalmente, que tenha algo a ver com o significado da palavra “mercado”. Não é o mercado que determina os juros, mas o cartel monopolista que o manieta, e não é de hoje.
Há muito tempo que, neste mundo em que vivemos, o “livre mercado” é uma ficção. Desde pelo menos as últimas décadas do século XIX que o mercado é submetido aos monopólios – sobretudo pelos monopólios bancários – e à ação do Estado. Esta última, certamente, pode ser a favor ou contra os monopólios, mas sempre está presente.
Na verdade, a única forma de garantir alguma liberdade de mercado é, precisamente, através da ação do Estado contra os monopólios. Ao propor que os bancos públicos cobrem taxas menores para forçar a queda dos juros, o presidente expressou exatamente essa consciência.
Então, se é assim, porque os monopolistas – banqueiros e outros integrantes de cartéis – e seus porta-vozes vivem falando em “livre mercado”, como se existisse algum mercado livre de sua ação ou da ação do Estado?
Existe, realmente, uma razão: o “mercado livre” de que falam, esse mercado estrangulado pelo monopólio, só é livre para eles. São eles, e não o mercado, que estão livres para estabelecer sobrepreços – inclusive o sobrepreço do dinheiro, isto é, os juros escorchantes.
Em suma, trata-se da liberdade de extrair super-lucros, também conhecida como a liberdade de arrancar o couro do povo. Basta ver quais foram os lucros dos bancos no último quadrimestre, para comprová-lo. Os bancos são, precisamente, o setor mais monopolizado da economia brasileira.
Somente a ação do Estado, devidamente dirigido – como é, felizmente, o nosso caso – por forças progressistas, nacionais, populares, pode contrabalançar essa ação dos monopólios. Fora isso, como se sabe, é a selva selvagem de que falava Dante, ou seja, o Inferno. Obviamente, quando, como nos EUA, o Estado está sob domínio dos monopólios – mais exatamente, é um mero comitê de monopolistas – ele atua a favor deles, e que se dane o povo.
MONOPOLISTAS
A propósito, o Estado dos EUA não faz outra coisa na vida, senão sufocar, asfixiar o mercado. Inclusive quando perpetra uma agressão para assaltar o petróleo dos outros, o que faz é evitar que os monopolistas sejam obrigados a comprá-lo a preços de mercado. Petróleo cuja utilidade é, exatamente, a de aumentar os lucros dos monopólios, dando a eles energia barata.
Não é a única forma: presidentes dos EUA que pressionam dirigentes de outros países para favorecer empresas americanas é coisa corriqueira. Da mesma forma, é o Estado que guarda as empresas americanas da concorrência de empresas de outros países, não somente no território dos EUA, mas em todo o mundo. Há alguns anos, por exemplo, devido à maior produtividade das indústrias japonesa e alemã, as empresas desses países nitidamente entraram em uma certa disputa com as empresas norte-americanas. Foi o que bastou para que alguns incautos – além de outros simplesmente idiotas, ou de má-fé – cantassem loas a uma suposta “globalização”. Como é que isso acabou? Com o Estado americano interferindo para quebrar os japoneses e colocar os alemães no lugar que os magnatas ianques achavam que eles deviam estar – seja manipulando o dólar, seja estabelecendo barreiras, ou bancando com dinheiro público as suas empresas privadas.
Assim, o mercado livre de que falam os monopolistas e seus porta-vozes é apenas o mercado que eles sufocam, que eles submetem, que eles monopolizam. Nada tem a ver com mercado livre de monopólios e da ação do Estado, exatamente ao contrário. Quem é “livre” aí, não é o mercado, mas eles, os monopolistas.
Portanto, a taxa de juros ou é determinada pela ação do Estado a favor dos monopolistas financeiros, ou contra eles. Vejamos como, desde muito, o Banco Central estabelece a taxa básica de juros: através do que chamam de um “mix” de determinadas taxas de juros dos 10 principais bancos. Ou seja, não é mercado algum, mas o cartel bancário quem acaba determinando a taxa do governo – isto é, os juros que o governo paga aos mesmos bancos, por seus títulos – às custas de toda a população e do Tesouro, ou seja, do dinheiro público.
Evidentemente, depois do rombo feito por Fernando Henrique e caterva nas contas públicas, o país ficou dependente do capital especulativo externo. A própria dívida interna, em boa parte, tornou-se uma dívida com o estrangeiro.
Em suma, com a ação do Estado dos EUA, mesmo com taxas básicas de juros muito menores que as brasileiras, aquele país é um aspirador de dinheiro do mundo todo. Por isso pode manter a maior dívida externa do mundo, o maior déficit público do mundo, o maior déficit comercial, etc. Assim, para atrair dinheiro para cobrir o rombo fernandista, as taxas de juros no Brasil – as dos títulos públicos – têm que estar no espaço.
Evidentemente, trata-se da mais brutal sangria, de algo muito mais predatório do que as atividades de Gengis Khan, Tamerlão e outros do mesmo ramo. Naturalmente, interessa ao capital especulativo manter essa situação. É exatamente como o traficante, a quem interessa que o viciado não se livre de seu vício.
DEPENDÊNCIA
Assim como quem vende cocaína não está interessado em que o cocainômano deixe de sê-lo, quem se abarrota de juros não está interessado em que a sua vítima se liberte da dependência de seu dinheiro. Também analogamente ao viciado, tal como este não se livra de seu vício com um passeio por uma avenida ventilada pela fresca brisa marinha, o dependente do capital especulativo não se livra dele sem algum sobressalto, ou seja, sem ruptura com o vício. É verdade que nada muito traumático, porque o nosso governo tem o apoio de todos – empresários, trabalhadores, e até de banqueiros nacionais que já notaram para onde vão se as coisas permanecem do mesmo jeito – para empreender as mudanças de que o país precisa. Além do que, como observou muito justamente Lula, na campanha eleitoral, o mais traumático mesmo, para o país, será não fazê-las.
CARLOS LOPES