CARLOS LOPES
Para Luísa
(HP, 14/01/2015 a 06/03/2015)
“Todas as reações são vésperas de revoluções, e o poder se torna tirânico quando se sente fraco na opinião. Se a revolução abolicionista fez-se nos quilombos e nas fazendas, a revolução política precisa ser feita nas ruas, e em torno dos palácios do Imperante e de seus ministros. A nação inteira está mesmo à espera de um novo estado de coisas, sente-se nas vésperas de uma reorganização. O partido dito conservador invade o terreno das reformas liberais. O partido liberal arvora a bandeira da federação, que bandeira arvoraremos nós? Certo que a da república imediata, e pois a da revolução.”
(SILVA JARDIM)
1
Este fim de ano, recebi, como dádiva familiar (ou seja, presente de Natal), muitas coisas interessantes. Uma delas foi “1889”, livro de Laurentino Gomes que recebeu o Prêmio Jabuti 2014, na categoria “reportagem”.
Os prêmios literários não são má ideia. Também não é má ideia o tratamento de episódios históricos de modo jornalístico. Mas o Prêmio Jabuti tem 55 anos. Já premiou autores como Érico Veríssimo, Jorge Amado, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Marques Rebelo, Cecília Meireles, Jorge Medauar, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux.
Mas se, hoje, o máximo que se consegue premiar é algo como “1889”, é sinal que a mediocridade passou a ser quase normal – a ponto de dispensar um certo pudor em sua ostentação.
REGIMES
Vamos logo à conclusão do livro – e depois examinaremos como o autor chegou à essa conclusão:
“No fundo, o novo sistema [a República] era muito semelhante ao dos velhos tempos da Monarquia. Em vez de um imperador vitalício, governava o país um presidente da República eleito ou reeleito a cada quatro anos, mas a diferença era apenas nominal e de aparência. Os agentes mudavam de nome, mas os papéis permaneciam os mesmos. No lugar da antiga aristocracia escravagista do açúcar e do café, figuravam os grandes fazendeiros do oeste paulista e de Minas Gerais. Onde antes havia barões e viscondes, entravam os caciques políticos locais, muitos deles, curiosamente, antigos coronéis da Guarda Nacional, dando origem à expressão ‘coronelismo’.” (Laurentino Gomes, “1889”, Ed. Globo, 2013, p. 379/380, grifo nosso).
Como não havia – e não houve – reeleição para presidente do país na República Velha, é evidente que o sr. Gomes está atribuindo a tempos posteriores o seu retrato da era republicana. Mas deixemos isso de lado – e prestemos atenção ao próprio retrato.
Segundo este, a República de 1889 era um regime em tudo igual à monarquia, menos o governante (que não era mais um imperador hereditário e vitalício) e menos a classe dominante (que era outra, diferente do Império).
Fora o governante e a classe dominante, a Monarquia e a República eram (e são) iguais. Isto é, supõe-se, ambas são regimes ou sistemas de governo.
Levar 380 páginas para chegar a essa conclusão brilhante – que dilui o fundamental: a mudança no caráter do Estado – não é coisa que possa animar ou enriquecer culturalmente algum vivente.
Mas, continuemos com a conclusão do sr. Gomes:
“Na prática, a República brasileira, para se viabilizar, teve de vestir a máscara da Monarquia. ‘A República’, observou Raymundo Faoro, ‘depois de dez anos de tropeços, descarta-se, como o Império (…), do mais sedicioso e anárquico de seus componentes: o povo’. E assim permaneceria pelos cem anos seguintes, marcados por golpes e rupturas entremeados por breves e instáveis períodos de democracia, até que uma outra República, inteiramente nova, começasse a nascer – proclamada não por generais ou fazendeiros, mas pelo tão temido componente ‘sedicioso e anárquico’. Em 1984, nove anos antes da realização do plebiscito anunciado por Benjamin Constant na noite de 15 de novembro de 1889, ruas e praças de todo o Brasil foram palco de coloridas, emocionadas e pacíficas manifestações políticas, nas quais milhões de pessoas exigiam o direito de eleger seus representantes” (p. 380).
ESTATOFOBIA
Raymundo Faoro tornou-se, após a morte, ideólogo de tudo o que é reacionário neste país – como, aliás, mostrou o sr. Joaquim Levy, em seu discurso de posse no Ministério da Fazenda do governo Dilma.
Quando, em 1977, Faoro assumiu a presidência da OAB – o que lhe deu mais prestígio que tudo o que escrevera – perguntei a um amigo, especialmente intelectual, a sua opinião sobre “Os Donos do Poder”, a principal obra de Faoro. A resposta foi uma alusão ao fato de que Faoro nasceu em Vacaria, Rio Grande do Sul: “coisa de maragato”.
Esse amigo era, somente agora percebo, um sujeito educado. “Os Donos do Poder” é um pouco pior do que isso. Faoro era um estatofóbico. Não por acaso, os neoliberais de hoje o adotaram: a ojeriza em relação ao Estado – ou seja, ao Estado Nacional – implica em ódio à Nação, ainda que Faoro faça uma intensa ginástica literária (ou retórica) para dizer o oposto, e ainda que apresente o que é ideologia reacionária como se fosse historiografia (ou “historiografia explicativa”, como disse um de seus amigos).
Por exemplo:
“… O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos (…). E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe, dispensários de justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. (…) A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Sousa” (Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder Vol. 2”, Globo/Publifolha, 10ª edição, 2000, p. 380).
A primeira edição de “Os Donos do Poder” saiu em 1958. É mais ou menos evidente contra o que – e contra quem – esse livro foi escrito. Por exemplo, para explicar os motivos do golpe que, em 1945, afastou Getúlio Vargas da Presidência:
“Em 1945, a rigidez nacionalista, estatizante no seu ritmo interno, embaraça a colaboração estrangeira, experimentada no convívio da guerra, para que entre em contato com a empresa nacional” (ed. cit., p. 379, grifos nossos).
Faoro manifesta, o tempo todo (e seu livro é notavelmente verborrágico), uma completa incompreensão sobre o que é o Estado Nacional – e, de resto, sobre o que é Independência Nacional. Daí, a continuidade que vê entre o que chama de “patrimonialismo” português e o que seria, sob outras formas, o “patrimonialismo” brasileiro. É difícil saber se Faoro não compreende o Estado Nacional porque não compreende o que é Independência Nacional, ou vice-versa. Mas isso não é importante.
Ele é capaz de escrever, sobre o primeiro governo de Getúlio Vargas:
“O ano de 1937 [ou seja, o Estado Novo] retifica e desenvolve as virtualidades de 1930, integrando a economia na política, sob o modelo de um Estado que deita raízes nos primeiros dias da dinastia de dom João I” (ed. cit., p. 354, grifo nosso).
Dom João I, o rei português que inaugurou a dinastia de Avis, foi coroado em abril de 1385. Portanto, Faoro está vendo “raízes” do Estado Nacional brasileiro em um Estado português que existiu 552 anos antes do Estado Novo. Não somente “vê” essas raízes, como, para ele, esse é o aspecto decisivo, do ponto de vista histórico, que determina o caráter do Estado Nacional no Brasil. É como se a Independência Nacional não tivesse mudado o caráter do Estado no Brasil – isto é, não tivesse fundado um novo Estado, pela separação em relação ao Estado português – assim como, posteriormente, nem a República ou a Revolução de 30.
Naturalmente, se existir alguma linha de continuidade – sempre é possível que exista – ela não tem importância. No entanto, Faoro gasta 300 páginas de seu livro – quase metade dele – para, supostamente, mostrar como o Estado brasileiro (em qualquer época) é uma continuidade do Estado português de Dom João I.
Não deixa de ser um prodígio.
Do ponto de vista teórico, o apego de Faoro a Max Weber – sempre o patrono dos que escrevem sobre assuntos de que não têm a menor ideia – é, essencialmente, anticomunismo. E nem é necessário nos reportar à vesga interpretação de Marx que ele faz no último capítulo de seu livro – ou à menção a Trotsky como “um teórico marxista atento às lições do seu mestre” (p. 365).
Já se observou que Faoro substitui as classes por uma noção de “estamento”, copiada de Weber. Essencialmente, é verdade, pois as classes, para ele, não existem politicamente:
“Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando” (ed. cit., p. 368).
Mas, sendo assim, é o próprio país que deixa de existir, uma vez que as classes que compõem a sociedade – e por mais de 500 anos – não têm importância alguma.
Ainda bem que o país real não segue o modelo de Faoro. Mas, aqui, uma nota é necessária.
Faoro, diante das reações causadas pela primeira edição de “Os Donos do Poder“, acrescentou um prefácio à segunda edição, no qual diz: “… este livro não segue, apesar de seu próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. Não raro, as sugestões weberianas seguem outro rumo, com novo conteúdo e diverso colorido“.
Evidentemente, o problema não são “sugestões weberianas” a que ele deu “novo conteúdo e diverso colorido”. O problema é que são os conceitos de Weber – ou o que este achava que eram conceitos – que constituem o conteúdo do livro de Faoro, e não a realidade histórica do Brasil, à qual esses “conceitos” têm a função de evitar ou fugir. O próprio Faoro não considerou defensáveis alguns trechos da primeira edição. Tanto assim que os reescreveu nas edições posteriores.
Sintomaticamente, em certos trechos, Faoro dispensa qualquer teoria que lhe faça parecer, mesmo de longe, “científico”. Por exemplo, ao verberar contra a “demagogia irresponsável de generais do povo e generais contra o povo” (p. 379), como se, ao fim da década de 50 – depois do martírio de Getúlio e do contragolpe comandado pelo Marechal Lott a 11 de novembro de 1955 – esse problema político não existisse. Mesmo a ditadura de 1964 não fez com que ele retirasse ou mudasse esse trecho de seu livro, o que mostra como era arraigado o seu elitismo – ou o seu reacionarismo.
Entretanto, o instrumental “teórico” tem outra função: a de rebaixar o país. E, claro, aqui aparece o esmagamento ideológico em relação às matrizes do imperialismo ou do colonialismo:
“O capitalismo clássico, de caráter puritano e anglo-americano, baseia-se em valores de todo estranhos ao curso de uma estrutura de seiscentos anos, deslumbrada, com estilos diferentes, pelo golpe das caravelas na Índia” (ed. cit. p. 375).
Os valores do “capitalismo clássico” (e, aliás, de qualquer capitalismo) são os determinados pela lei do valor – a transformação de tudo em mercadoria, inclusive certo tipo de suposta erudição.
Mas, continuemos:
“O predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade – realidade desconhecida na evolução anglo-americana” (p. 370, grifos nossos).
Interessante a observação de que os “interesses estatais” – ou seja, os interesses nacionais – são “capazes de conduzir e deformar a sociedade”.
Mas, por que isso não aconteceria na Inglaterra e nos EUA? Ora, leitor, mas que pergunta! Por exemplo:
“A Inglaterra, país clássico do capitalismo, não precisou consolidar seu direito para assegurar a plena expansão de seu sistema econômico. Ela dispensou os códigos e o direito romano, por impulso da sua realidade econômica, fundada na ordem privada, a qual floresceu na industrialização” (Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder Vol. 1“, Globo/Publifolha, 10ª edição, 2000, p. 75).
Realmente, seria difícil enquadrar a pirataria e o roubo de terras dentro da pureza do direito…
O POVO
Apenas acrescentaremos que um dos nossos maiores historiadores – autor de uma extraordinária História da Independência – sintetizou a trajetória do povo brasileiro de outra forma:
“[o povo brasileiro] não é um fantasma, como o vê a maioria dos políticos. Ele aprendeu sua língua, formou sua consciência nacional na História, promoveu a unidade nacional, que não é produto da colonização portuguesa, mas da Independência, defendeu a integridade territorial, educa seus filhos dentro de recursos muito escassos, prepara-os para a vida, e tem uma forte sensibilidade nacional, apesar dos sacrifícios que lhe impõe esta mesma minoria, que se horroriza diante de qualquer ideia de reformas básicas. (…) Já reclamava Frei Caneca, em 1824, contra a facilidade com que no Brasil se acusava qualquer projeto popular de demagógico, pois, nesse caso, o Brasil inteiro era demagogo” (José Honório Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural, 1965).
Não concordamos com todas as concepções expostas em suas obras por José Honório Rodrigues – e nem precisamos concordar.
Mas ele era um historiador – e um homem sério.
A RUA
Voltemos ao livro do sr. Laurentino Gomes, que o leitor, a essa altura, deve ter esquecido.
O pior, na citação de Raymundo Faoro, apesar de tudo, não é apresentar um ideólogo reacionário como suposta autoridade historiográfica.
O pior é que mesmo essa citação é deturpada, no livro do sr. Laurentino. Pois Faoro, ao dizer que “a República, depois de dez anos de tropeços, descarta-se, como o Império desde 1840, do mais sedicioso e anárquico de seus componentes: o povo“, estava se referindo especificamente a Campos Sales e à “política dos governadores” – a escolha dos eleitos pelos mandatários de cada Estado, e que se danasse a “verdade eleitoral”, isto é, o resultado das urnas (cf. Raymundo Faoro, ed. cit., vol. 2, p. 183/184).
É verdade que, apesar dessa afirmação, o retrato de Campos Sales – um precursor do entreguismo dilmista – por Faoro é elogioso (“um realista, mas não um cínico“, diz ele, endossando o “descartamento” do povo, não importa a retórica que vem em seguida).
Mas Faoro não diz que o povo “permaneceria” descartado na República “pelos cem anos seguintes” – até porque isso é uma bobagem demasiado evidente.
Ainda que tentando esvaziar o significado da mobilização do povo, Faoro, depois de resumir o comício de Getúlio Vargas em 1930, na Esplanada do Castelo, no Rio (“A Capital Federal, para surpresa dos aliancistas e inquietação do oficialismo, tributa ao candidato delirantes [?!] manifestações, com a Praça Mauá e a Avenida Rio Branco cobertas de povo“), transcreve o testemunho ocular de Paulo Nogueira Filho sobre o comício seguinte, o de São Paulo:
“Assim que por volta das 20 horas despontou o cortejo na Várzea do Carmo, tive um arrepio. Não era possível o que via! Caminhava não um cortejo, mas uma imensa multidão. Que sucederia quando aquela gente toda se encontrasse com a que estava em cima da ladeira?
“Santo Deus! Não sei como passei os minutos que mediaram o instante em que divisei a coluna popular em marcha e o do seu encontro com o público da cidade.
“Hoje, posso dizer com toda a segurança que nenhum dos cidadãos que assistiram àquele espetáculo poderá tê-lo esquecido. No amplexo daquelas multidões, em meio de frenesi coletivo, alguém bradou: ‘Nós que-re-mos Ge-tú-lio!’ A multidão, como nunca São Paulo vira igual, repetia: ‘Nós queremos, nós queremos Getúlio!’
“Daí por diante tudo foi de roldão: as providências policiais e o programa da Comissão de Recepção, tudo, tudo! … São Paulo amanheceu, a 5 de janeiro, estatelado. Como pôde acontecer tudo aquilo entre a gente pacata e fria da cidade dos nevoeiros? Na véspera, aquele entusiasmo ardente, aquela multidão serpenteando num cortejo que não tinha fim, constituíriam espetáculo nem sequer imaginável” (Paulo Nogueira Filho, “Ideais e lutas de um Burguês Progressista“, p. 405/406. cit. in Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder Vol. 2”, ed. cit., p. 318/319).
2
Vejamos a seguinte afirmação do sr. Laurentino Gomes sobre José do Patrocínio, no capítulo com o sugestivo título de “O Golpe”, em que descreve os acontecimentos do dia 15 de novembro de 1889:
“Seria ele um dos muitos republicanos de última hora que o Brasil haveria de conhecer naqueles tumultuados dias.” (Laurentino Gomes, “1889”, Ed. Globo, 2013, p. 62, grifo nosso).
Aqui, o problema é ignorância – e ignorância crassa. Por que um sujeito ignorante resolve escrever sobre o que ignora, não é uma problema historiográfico.
Portanto, continuemos.
No “Manifesto da Confederação Abolicionista”, escrito por Patrocínio em 1883, o grande abolicionista escreveu:
“A revolução de 1817, em Pernambuco, foi coagida a definir-se sobre este ponto [a escravidão]. A metrópole explorou os interesses dos proprietários de escravos em seu favor, apontando como radicalmente abolicionista o novo governo. A república em vez de repelir com esforço a acusação, responde pelo seu secretário: que o seu governo agradece uma suspeita que o honra…” (Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro, Typ. da Gazeta da Tarde, 1883, p. 10, itálico no original).
Patrocínio, seis anos antes da Proclamação, contrastava a atitude da breve república pernambucana com a atitude do Império – e dos republicanos de São Paulo, que resistiam a assumir a bandeira da Abolição da escravatura.
Por quê?
Primeiro, porque ele próprio era republicano, como se pode ler em artigo que publicou (sob o pseudônimo de “Proudhomme”) um ano antes, em 1882, na “Gazeta da Tarde”:
“Não blasonamos, prevenimos. (…) Ou o imperador coloca-se francamente à frente do movimento, aproveita pela sua inércia constitucional o trabalho e o sacrifício dos que tudo arrostaram para levar à alma do povo o convencimento de que é preciso condenar já e de uma vez a escravidão; ou o imperador terá o desprazer de ver os seus últimos dias entenebrecidos pelo mais assombroso acontecimento da nossa história. (…) Se formos, porém, nós os republicanos os que levarmos por diante o movimento, dobre Sua Majestade os seus meios de corrupção, sirva-se de todos os recursos do seu processo de inutilizar homens e revoluções, e verá que não conseguirá senão agravar a sua sentença no tribunal da honra nacional e da História”. (Gazeta da Tarde, 17/07/1882, primeira página).
Segundo: a partir dessa posição inicial, Patrocínio desenvolveria, como nenhum outro republicano, exceto Luiz Gama, a denúncia – e a formulação teórica – do vínculo entre a monarquia e a escravidão.
Por exemplo:
“O Império e a escravidão são solidários” (Gazeta da Tarde, 28/08/1882).
“Desde a ascensão do sr. Saraiva, sentimos que a Monarquia já não tinha mais forças para resistir à nostalgia do pântano. Queria voltar para a lama das paixões de que provinha. É sabido que todos os Braganças foram sempre amigos da escravidão, ao ponto de fazerem dela meio de ganhar dinheiro. Desde d. Pedro II, de Portugal, o moedeiro falso, até Pedro I, do Brasil, a casa do bastardo João IV se desenha na História com a fisionomia de uma família de traficantes. A única exceção é d. José I, porém este, todos sabem, não passou de um jumento manso, em que o marquês de Pombal subiu a montanha da imortalidade, comodamente, como a gente sobe a serra de Sintra em jericos de aluguel. (…) É um fato histórico que a Monarquia só se fundou no Brasil por ser a da escravidão” (Gazeta da Tarde, 19/09/1885, grifo nosso).
“Está finalmente decretada a nova divisa do Império – escravidão ou morte. (…) A Monarquia no Brasil fundou-se para garantir e não para extinguir a escravidão. Esse contrabando do direito político só firmou-se pelo contrabando do direito natural. A escravidão e ela formam uma equivalência. (…) Tudo quanto o Império fez teve unicamente em vista assegurar à escravidão a perpetuidade ameaçada. (…) O Império vive da nossa vergonha moral, da nossa miséria econômica, da nossa baixeza política. (…) Nada criou, à exceção do servilismo; nada conservou, afora a escravidão. Nada tem de respeitável: nem homens, nem instituições. Dentro das suas leis, está a emboscada ao direito; dentro do seu parlamento, o garrote à liberdade; dentro das suas finanças, o assalto à fortuna do cidadão. Com que prestígio, pois, ele vem gritar-nos: calem-se! É certo que o Império precisa de silêncio, porque já o disse Ariosto, só no silêncio podem nascer a perfídia, o perjúrio, os planos de roubo e de assassinato. A nossa voz faz-lhe mal. Tanto pior para ele.” (Gazeta da Tarde, 26/09/1885).
Ou, mais um exemplo eloquente:
“O escravo serve para engordar na piscina do Império as moreias da oligarquia, para desentediar com os seus gritos na surra a alma atribulada dos senhores, e finalmente para dar força governamental aos gabinetes-cadáveres” (Gazeta da Tarde, 31/07/1886).
TENSÃO
Estendemo-nos sobre a posição de Patrocínio antes do 13 de Maio para melhor expor a luta política extremamente tensa que veio em seguida – assunto completamente omitido, exceto em aspectos marginais ou superficiais, no livro do sr. Gomes. Aliás, os artigos de Patrocínio não fazem parte da bibliografia de “1889”, apesar de existir, inclusive no “Domínio Público”, uma coletânea prefaciada pelo historiador mais citado no livro do sr. Laurentino, José Murilo de Carvalho. Para este artigo, nós preferimos a consulta direta aos jornais da época, possibilitados pela Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional – o que também era possível ao sr. Gomes.
No entanto, faz parte da lista de livros supostamente consultados por ele, a coletânea dos artigos e discursos de Silva Jardim, “Propaganda Republicana”.
Deveria tê-la lido com mais atenção.
Descobriria que, após o 13 de maio de 1888, Silva Jardim acusou José do Patrocínio de traição à causa republicana. Obviamente, Silva Jardim não poderia acusar Patrocínio de traição à causa e ao partido republicano – antes da proclamação da República – se o abolicionista fosse “um dos muitos republicanos de última hora” que apareceram no dia 15 de novembro de 1889, e em diante.
ATAQUE
A historiografia (ou a “reportagem historiográfica”, que seja) não pode ter como modelo as Seleções do Reader’s Digest. Há episódios que resistem às simplificações, sobretudo, como é óbvio, às simplificações grosseiras. É o caso da polêmica de Silva Jardim e Patrocínio, entre maio de 1888 e junho de 1889.
A acusação de Silva Jardim não era leve – nem leves foram os seus termos. O documento mais significativo é a “Carta Política ao País e ao Partido Republicano”, que Silva Jardim publicou no jornal “O País”, edição de 6 de janeiro de 1889.
Depois de mencionar a tentativa da monarquia de perpetuar-se no poder através de usurpar a popularidade da Lei Áurea, diz Silva Jardim:
“Para uma tal obra foi preciso, ao lado de um ministro revoltantemente hipócrita, encontrar um instrumento; e um homem houve que a isso se prestou, por ambição de lucros diretos ou indiretos, por vaidade de gozo do aulicismo, ou por servilismo de quem aceitava como esmola aquilo que se supusera que pensara conquistar, rebaixando assim a posição dos que parecera proteger, e dos companheiros nessa proteção.
“Este homem, de cor, mas até então tolerado por todos os brancos, que jamais lhe haviam feito questão de raça, muito amado mesmo pela mocidade e pelo público generoso, em vista de uma suposta dedicação à causa dos escravos, converteu-se em órgão da dinastia, principalmente da princesa D. Isabel, e do ministério, que apenas presidira ao ato parlamentar da abolição; – e daí começou de sustentá-los, traidor então à sua raça, que, por proletária no Brasil, carece claramente para o seu desenvolvimento de um regime republicano, traidor ao partido a que dissera pertencer, não como renegado confesso, mas como Judas consciente, e reputado tal, pelo continuar a se dizer dele sectário, iludindo apenas a um ou outro inexperiente, e traidor à sua Pátria, composta de brancos e de pretos, para todos os quais uma sagacidade desgraçadamente perdida e perversa lhe podia fazer claramente entrever que a República seria a felicidade.” (Silva Jardim, “Carta Politica ao Paiz e ao Partido Republicano – Publicada n’O PAIZ de 6 de Janeiro de 1889”, Imprensa Mont’Alverne, 1889, p. 5).
A Carta de Silva Jardim prossegue por mais 25 páginas, sem economizar menções a Silvério dos Reis e Calabar.
Ao leitor de hoje pode parecer um exagero. Alguns verão, inclusive, algumas conotações racistas. A verdade que há nisso, porém, não ultrapassa os umbrais da época em que foi escrito, mais ou menos como o próprio Patrocínio, filho de um padre e de uma escrava, chamando o fundador da casa de Bragança de “bastardo”…
Esses problemas, subprodutos momentâneos da luta política, estão longe de essenciais.
BATALHA
O motivo da erupção, verdadeiramente vulcânica, de Silva Jardim, não foi somente – nem principalmente – o beijo que Patrocínio dera na mão da Princesa Isabel, após a assinatura da Lei Áurea, ou tê-la chamado de “a loira mãe dos brasileiros”, ou ter dito, na mesma ocasião, que “minha alma sobe de joelhos nestes paços” – embora, o que mais incomodou os republicanos, por razões óbvias (e justas), foi uma frase, dita no 13 de maio e confirmada em artigo por Patrocínio: “Enquanto houver sangue e honra abolicionistas, ninguém tocará no trono de Isabel, a Redentora” (cf. José do Patrocínio, “O Isabelismo”, Cidade do Rio, 18/05/1889).
Nenhum outro republicano tinha a popularidade de Patrocínio, um dos poucos deles que fora eleito durante o Império – era vereador do Rio de Janeiro, capital do país. Portanto, os outros republicanos tinham razões para não gostar (usando uma expressão suave) da atitude de Patrocínio.
Porém, mais importante que o ocorrido na assinatura da Lei Áurea, no dia 30 de dezembro de 1888, um domingo, cerca de 300 membros da chamada “Guarda Negra da Redentora” – negros manipulados pela monarquia para defender o regime cadente – invadiram, no Largo do Rocio (a atual Praça Tiradentes), o prédio da Sociedade Francesa de Ginástica, onde Silva Jardim proferia um discurso.
O tribuno republicano estava respondendo ao monarquista Joaquim Nabuco, na época em campanha para manter o regime, em favor do qual elaborou a brilhante tese de que a República seria uma espécie de golpe de Estado escravocrata – o que, obviamente, tinha o objetivo de apavorar alguns setores, com a ameaça de restauração do escravismo.
Para que não restem dúvidas sobre a posição de Nabuco nessa época, eis alguns trechos de um discurso seu, pronunciado em 5 de novembro de 1888:
“… considero uma fortuna para a monarquia, fortuna devida à alta inspiração moral da lei de 13 de maio, ter nascido a agitação republicana do ressentimento de uma classe contra o maior acontecimento de nossa pátria, porque basta isto para estigmatizar a nova República perante o mundo civilizado, que aplaude os progressos da nossa pátria e para impedir que ela tenha raízes no coração do nosso povo, identificado com a dinastia naquele grande ato” (Joaquim Nabuco, Obras Completas, XI, Instituto Progresso Editorial S. A., 1949, S. Paulo, p. 342, grifo nosso).
Retratar o aumento da popularidade do republicanismo como “nascida” do ressentimento contra a abolição da escravatura não era apenas imprecisão: era uma fraude – e Nabuco sabia perfeitamente disso. Mas era a esse tipo de falsificação que os monarquistas, até mesmo Nabuco, recorriam às vésperas da Proclamação da República, com algum efeito, principalmente sobre Patrocínio.
No mesmo discurso, diz Nabuco:
“… o exército, na sua grande maioria, é recrutado nessa raça contra cuja liberdade se levanta o novo partido Republicano; é composto na sua maioria de homens de cor, porque a classe que se julga com tanto direito ao governo do país, que hoje, porque o fazendeirismo foi ferido, pretende atirar com a República como insulto, senão como desforço à face da monarquia, essa classe, digo eu, recrutou sempre às fileiras do exército entre a raça cuja liberdade a desespera, e não deu nunca uma gota do seu sangue pela defesa de nossa pátria” (op. cit., grifos nossos).
A última parte é verdade. Sobretudo depois da Guerra do Paraguai, como diz um biógrafo de Silva Jardim, “não era raro chegarem aos mais elevados postos do oficialato os filhos dos artesãos, das camadas médias, advogados, engenheiros, médicos e comerciantes, sem ligação estreita com os grandes senhores de terra. Casos houve em que descendentes de antigos escravos, negros, mulatos e índios, alcançavam as mais ambicionadas patentes. O Marechal Deodoro era um mestiço. Sem dúvida, também havia barões e viscondes no Exército, e (…) os filhos dos fazendeiros com influência política possuíam as maiores facilidades. Entretanto, o fato notável é que não conseguiam ‘monopolizar’ as posições de mando e prestígio” (cf. Maurício Vinhas de Queirós, Uma Garganta e Alguns Níqueis, Ed. Aurora, 1947, Rio, pp. 131/132).
Quanto ao resto do que dizia Nabuco, era apenas o velho, já nessa época, golpe de ameaçar com o apocalipse, se as coisas deixassem de ser como são, para que elas ficassem do mesmo jeito que eram.
GUARDA
Os invasores da Sociedade de Ginástica, armados, gritavam “mata o Silva Jardim!”, segundo o noticiário da época. Os republicanos resistiram – e a resistência foi liderada por um negro, o operário Anacleto de Freitas, amigo de Silva Jardim e um dos fundadores do Clube Republicano dos Homens de Cor.
Quanto ao orador, relata ele em suas memórias: “conservei-me de pé, na tribuna, protestando não me retirar dali… Tirei o meu revólver e dispus-me a defender com a vida a liberdade de pensamento. Ali fiquei para bem simbolizar esse direito; era ali que devia morrer, ou continuar a falar” (Silva Jardim, “Memórias e Viagens”, Lisboa, 1891, p. 230).
A reportagem de “O Paiz”, jornal republicano bastante moderado – até Joaquim Nabuco tinha nele uma coluna para propagandear as benesses da monarquia – estimou em “mais de oitenta” os feridos, inclusive duas crianças, descrevendo um conflito que se alastrou pelo centro do Rio. Há dúvidas sobre o número de mortos. Nominalmente, foram citados 22 feridos – à bala, à navalha e à pauladas – em estado grave (cf. “Graves Conflictos” in “O Paiz”, 31/12/1888 e 01/01/1889, primeira página).
Mas, por que Silva Jardim responsabilizou José do Patrocínio pelo incidente?
Em seu livro, o sr. Gomes diz apenas que “[Silva Jardim] teve de interromper o discurso ao ser atacado pela Guarda Negra, a milícia organizada pelo abolicionista José do Patrocínio e composta de escravos libertos simpatizantes da princesa Isabel, herdeira do trono” (p. 149, grifo nosso).
É injusto (e errado) atribuir a Patrocínio a “organização” da Guarda Negra – formada a partir de grupos de negros antes mantidos pelos partidos Conservador e Liberal. Dos abolicionistas, o que mais se envolveu nessa organização foi o pintor Emílio Rouède, segundo o próprio Patrocínio.
[Existe, também, uma anotação de André Rebouças, datada de 05/01/1889 – portanto, seis dias após os acontecimentos do Largo do Rocio -, de que teria comparecido à sede do jornal de Patrocínio para encontrar Manuel Maria de Beaurepaire Pinto Peixoto, “organizador da Guarda Negra” (sic, grifo nosso) e aconselhá-lo a “evitar a violência e construir sociedades e clubes para educação, instrução e aperfeiçoamento da Raça Africana”. Beaurepaire, como Rebouças, era abolicionista e monarquista (cf. Iram Rubem Pereira Brandão, “Entre o turíbulo e o punhal, o verbo da utopia – a trajetória sinuosa de José do Patrocínio, do Império à República”, USS, Vassouras, 2009, p. 214).]
Hoje existem vários trabalhos sobre a origem da Guarda Negra, até mesmo textos encomiásticos – daquele tipo em que os negros, e sua luta, são sempre, fantasiosamente, separados da questão nacional, isto é, da pátria e do povo brasileiro, renunciando, portanto, à sua maior construção, o Brasil, da mesma forma que a postura de submissão antinacional é considerada “independência” em relação aos brancos.
Mas não vale a pena perder mais tempo com isso.
3
Um contemporâneo de Patrocínio e Silva Jardim – Rui Barbosa, na época redator-chefe do “Diário de Notícias”, jornal publicado no Rio de Janeiro – disse o mais importante sobre a Guarda Negra:
“Esta invenção teve o seu berço na polícia, recebeu o enxoval do Tesouro, a bênção do presidente do conselho e a santificação batismal da regência [isto é, da Princesa Isabel, que era a regente]. Nasceu adulta no mal e sequiosa de sangue, em que banhou as suas primeiras armas, na capital do império, aos 30 de dezembro de 1888. Daí em diante cada um dos seus movimentos, no interior, tem sido um crime, e todos eles perpetrados sob o nome da sereníssima princesa, como tributo de gratidão às suas virtudes, como aviso aos adversários do princípio que sua alteza representa” (Rui Barbosa, “Trono e Mazorca“, Diário de Notícias, 20/04/1889, primeira página; o texto desse artigo nas Obras Completas de Rui, Vol. 16, tomo 2, p. 75, foi ligeiramente modificado em questões de linguagem e estilo; preferimos aqui manter o original, tal como os leitores da época puderam ter acesso – exceto, é claro, pela ortografia).
Rui, nesse artigo, descreve a ação da Guarda Negra para impedir o republicano Nilo Peçanha de falar em Laje do Muriaé, no Estado do Rio:
“A cumplicidade policial assegura-lhe, por toda a parte, a mais absoluta impunidade. Os telegramas de ontem, acerca das ocorrências do dia 17 na Laje do Muriaé, revelam novas circunstâncias, de significação cada vez mais odiosa. O cidadão Antonio Pereira, ferido por um tiro, foi, ainda em cima, submetido à prisão, subjugado a um tronco, torturado no decurso da noite, durante a qual se ouviram partir da cadeia gritos lancinantes. O tribuno popular, ferido ele mesmo, evitou o assassínio, com que o ameaçavam a força e os libertos, sob a direção do comandante do destacamento, deixando o arraial, cujos pontos de saída estavam guarnecidos pelos malfeitores e pela polícia. (…) Que diremos nós de um regímen, que organiza guardas pretorianas contra as instituições liberais, e entrega os direitos populares à escopeta dos bandidos? Não será afugentar da monarquia para a república todos os espíritos liberais e todos os conservadores esclarecidos, aliando o trono à mazorca?” (Rui, loc. cit.).
Patrocínio não foi “organizador” desse bando de arruaceiros anti-republicanos. Mas que teve a ilusão de que a Guarda Negra, debaixo da sombra da monarquia, pudesse se transformar no primeiro partido político negro do país, não existe dúvida. As provas são os artigos de seu jornal, “Cidade do Rio”, alguns, não poucos, de sua própria lavra, se assim podemos nos expressar.
A nota sobre a fundação da Guarda foi um desses artigos redigidos pelo próprio José do Patrocínio, publicado na edição de 10 de julho de 1888 de “Cidade do Rio”:
“Ontem à noite (…) os pretos libertos Hygino, Manoel Antonio, Jason, Aprígio, Gaspar e Theócrito reuniram-se em casa de Emílio Rouède, o infatigável abolicionista de todas as tiranias, de todos os preconceitos, de todas as ingratidões, e acordaram fundar uma associação que, com o título de ‘Guarda Negra da Redentora’, se dedicasse em corpo e alma e em todos os terrenos à defesa do reinado da excelsa senhora que os fez cidadãos.
“Esses homens agradecidos tomaram as seguintes deliberações, que o meu amigo Rouède me facilita, pedindo ao mesmo tempo as publique e coadjuve a realização de tão belo pensamento. Como nunca neguei nada a esse bom amigo, acedo gostosamente ao seu pedido.
“Ficou assentado:
“1º Criar uma associação, com o fim de opor resistência material à qualquer movimento revolucionário que hostilize a instituição que acabou de libertar o país”.
Depois de transcrever outras deliberações, de caráter organizativo, Patrocínio comenta:
“É com verdadeira satisfação que escrevo estas linhas. Sinto neste momento uma alegria indescritível, porque vejo que no nosso país há gratidão; que por baixo da pele bronzeada dos libertos corre um sangue saturado de agradecimento, e enfim que, se os fazendeiros despeitados compram almas para apontá-las contra a Redentora, os escravos que Ela transformou em cidadãos rodearão o seu trono e saberão morrer em sua defesa” (cf. “Chronica de hontem”, in Cidade do Rio, 10/07/1888).
JORNALISMO
Pior ainda foi como o jornal de Patrocínio noticiou a batalha do dia 30 de dezembro de 1888:
“O modo como os republicanos de 14 de maio [isto é, os senhores de escravos contrariados pela Abolição] estão dirigindo a propaganda contra as instituições vigentes tem provocado em toda a parte do país a maior indignação. Desnaturado o sagrado ideal da República, servem-se dele como a arma de vingança contra a monarquia, os que não queriam e não querem ainda agora conformar-se com a igualdade de todos os brasileiros” (cf. “O Dia de Hontem”, in “Cidade do Rio”, 31/12/1888).
Silva Jardim não era, evidentemente, um “republicano de 14 de maio” – pelo contrário, como Júlio de Castilhos e Raul Pompeia, era um dos jovens que despertara politicamente sob a influência de Luiz Gama. Ao filiar-se no Clube Republicano de Santos, declarara que os republicanos tinham que ter “uma cor acentuadamente abolicionista” (apesar de fluminense, Silva Jardim morava em Santos com a esposa, sobrinha-neta de José Bonifácio).
Patrocínio sabia disso, mas o texto escracha os “oradores da república escravista”. Segue-se uma bajulação da princesa Isabel (“Mãe dos Cativos”, etc.) e uma defesa da “Guarda Negra da Redentora”, que, segundo o jornal, “é um verdadeiro partido político, tão respeitável como qualquer outro”.
Depois de transcrever uma nota do “chefe-geral” da Guarda Negra, Clarindo de Almeida, negando a participação de seus chefiados na invasão do prédio da Sociedade Francesa, diz o texto:
“Apesar da abstenção da Guarda Negra, foi impossível conter, ontem, a explosão de cólera popular que desde muito fumega do caráter e do brio nacional, contra essa propaganda que insulta duas vezes a pátria, rebaixando-lhe o ideal americano e uma raça que pelos seus sentimentos generosos conseguiu fazer-se amar ao ponto de sermos nós um povo quase sem preconceitos de cor“.
RETOMADA
Convenhamos que é difícil condenar o jovem Silva Jardim (que, aliás, jamais seria velho: tinha 30 anos quando desapareceu, na cratera do Vesúvio, em Nápoles) por denunciar José do Patrocínio…
Tanto isso é verdade que Patrocínio mudou a sua posição, antes da Proclamação da República, reconciliando-se com seus companheiros republicanos. A partir de maio de 1889, com a queda do gabinete João Alfredo e sua substituição pelo visconde de Ouro Preto, Patrocínio retoma a campanha republicana.
Quando, em 14 julho de 1889, a Guarda Negra foi usada para outro ataque violento aos republicanos – que comemoravam a queda da Bastilha – no centro do Rio, naquela que era então a principal via da capital, a rua do Ouvidor, Patrocínio escreve “Aos homens de cor”, classificando o acontecido como “cena de barbárie”. Diz ele:
“Os acontecimentos de ontem demonstram que os nossos irmãos estão sendo criminosamente explorados. Só a mais infame especulação podia conseguir que partisse de homens de cor a perturbação de uma festa que tinha por fim honrar a memória da Revolução, que teve como um dos seus dogmas a libertação dos cativos e a igualdade política da raça negra.
“Como se pode explicar a revolta da Guarda Negra contra homenagens aos que primeiro levantaram a questão da liberdade dos cativos negros, quando ela está pronta a morrer pela princesa só porque esta assinou a lei de 13 de maio?
“Não salta aos olhos que uma perigosa influência está desnaturando criminosamente os fins da instituição, e convertendo-a no mais perigoso dos instrumentos, porque será destinado a servir indistintamente aos dois partidos e a sustentar todos os atentados do governo, pelo mais condenável dos meios – a supressão da liberdade de tribuna, de imprensa e de reunião?“
E acrescenta:
“Ao signatário destas linhas deram a responsabilidade dos primeiros abusos de liberdade por parte da Guarda Negra. (…) Eu nunca aconselhei a violência…” (cf. Cidade do Rio, 15/07/1889, primeira página).
DISPUTA
Sobre seu apoio ao gabinete do Partido Conservador, chefiado pelo conselheiro João Alfredo, Patrocínio dirá, quando da sua queda: “não se tratava da sorte de um gabinete, mas da dignidade de um reinado” (cf. Cidade do Rio, 01/06/1889).
Essa é uma questão importante: entre o 13 de Maio e a queda de João Alfredo (o gabinete ficou inviabilizado a 4 de maio de 1889 e o político pernambucano saiu do governo no dia 7 de junho), toda a formulação de Patrocínio é que o objetivo central da luta é barrar a reação dos fazendeiros, ex-senhores de escravos, contra a Abolição, inclusive barrar as propostas de indenização pelos escravos “perdidos”.
Daí a sua ideia de uma aliança com a monarquia, através da princesa Isabel e seu futuro terceiro reinado. Obviamente, isso implicava em adiar a República.
Para Silva Jardim, Lopes Trovão e a maioria dos republicanos, pelo contrário, a República é que poderia ser a garantia contra qualquer reação ou compensação escravista.
Porém, Patrocínio criticava nos republicanos – e especificamente em Silva Jardim – exatamente a sua aproximação com os fazendeiros, a antiga base da monarquia. Para Silva Jardim, pelo contrário, passar à República era o principal. Ele via os fazendeiros como uma espécie de reserva dos republicanos.
A questão histórica é que o Império, acuado pelo movimento abolicionista, se chocara com sua própria base – e a destruíra, com a Abolição.
Do ponto de vista político, isso se manifestou através da queda de João Alfredo e das dificuldades para conseguir quem chefiasse um novo gabinete – sucessivamente, o imperador, que voltara da Europa, fracassou ao convidar o conselheiro Manuel Correia, depois o visconde de Cruzeiro, e, depois, o visconde de Vieira da Silva, todos do Partido Conservador.
Convidou, então, um membro do Partido Liberal, o famoso Conselheiro Saraiva – mas este, um monarquista histórico, disse ao imperador que preparasse o país para a República. Segundo o relato de Saraiva, o imperador perguntou: “e minha filha?”, ao que ele respondeu: “O reinado de vossa filha não é deste mundo” (cf. Heitor Lyra, “História da Queda do Império“, Tomo I, CEN, S. Paulo, 1964, p. 343).
Assim, quase por eliminação, o gabinete ficou para o liberal Afonso Celso – o visconde de Ouro Preto – que passou à História como o político mais obtuso que o Império teve à frente de um gabinete, incapaz de perceber o que estava acontecendo – ou mesmo o que já tinha acontecido, como mostram as suas memórias.
Quando o gabinete João Alfredo caiu, Patrocínio percebeu que a política que até então empreendera – que tirava do centro a República para se concentrar na resistência aos ex-senhores de escravos – não era viável. Ou, é possível que tenha pensado: não era mais viável. Se foi isso, ele estava errado em pensar que alguma vez fosse viável – ou que tal política fosse mais que uma ilusão. Simplesmente, ela não correspondia ao conjunto das necessidades do país naquele momento. Mas, seja lá qual tenha sido o pensamento de Patrocínio – não entraremos aqui, por desnecessário, em seus escritos e pronunciamentos posteriores – o resultado prático foi sua reintegração ao movimento republicano, em junho de 1889.
Assim, no dia 11 de junho de 1889, ele escreveu:
“Mas, entre Isabel, a Redentora, e o nosso coração, está a nossa Pátria, que é maior que ela e que nós outro. Entre os interesses pessoais da princesa e a nossa dedicação, estão os interesses sagrados da liberdade nacional. Nunca prometemos sacrificar esta por amor daquela. (…) Não prometemos nunca apoio cego e obstinado; não prometemos o futuro da nação brasileira, que não é nosso, em holocausto ao dia 13 de maio” (Cidade do Rio, “Notícias de Isabel, a Redemptora”, 11/06/1889, primeira página).
Assim terminava a disputa entre duas políticas, dentro dos republicanos. Ainda haveria outra: aquela entre os “evolucionistas”, liderados por Quintino Bocaiúva, e os “revolucionaristas”, liderados por Silva Jardim, que atravessa 1889, até 15 de novembro, apesar da vitória de Bocaiúva no Congresso Republicano de maio daquele ano.
Patrocínio não seria – e não foi – um “republicano de última hora”. E não guardaria ressentimentos em relação à Silva Jardim – os dois estariam juntos na Proclamação da República. Depois, seria de Patrocínio o obituário mais famoso de Silva Jardim:
“Bela sepultura o vulcão, extraordinário destino o do grande brasileiro; até para morrer converteu-se em lava“.
4
Passemos a outra descoberta do sr. Laurentino Gomes:
“O padre Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça e depois regente do Império, promoveu uma profunda reforma nas Forças Armadas. O Exército foi praticamente dissolvido. Em seu lugar organizou-se a Guarda Nacional, sob controle civil, inspirada nas milícias de cidadãos da Revolução Francesa. A pátria em armas zelaria pela própria segurança” (cf. Laurentino Gomes, “1889”, Ed. Globo, 2013 p. 84).
A imagem do Padre Feijó influenciado pelas milícias da Revolução Francesa é tão fantástica, que talvez seja uma tentativa de homicídio – por matar as pessoas de rir.
Não que Feijó fosse um tolo ou ignorasse as revoluções do seu tempo (nasceu em 1784), como mostram as edições do jornal que publicou em São Paulo, “O Justiceiro” (há uma coleção na Hemeroteca Digital Brasileira).
Mas a sua grande preocupação, como ministro da Justiça e como regente, não era democratizar a defesa nacional – e muito menos através da Guarda Nacional.
Já em 1835, logo depois de assumir a Regência, Feijó estava tão dedicado a reprimir as revoltas que se alastravam pelo país – talvez seja mais preciso dizer, desesperado – que pediu a intervenção inglesa e francesa, e mesmo portuguesa (ou seja, da antiga metrópole da qual o Brasil se separara havia pouco), contra a “cabanagem”, no Pará.
Esse pedido era inteiramente ilegal, como o próprio Feijó disse aos embaixadores estrangeiros, e totalmente desnecessário.
O documento que transcrevemos abaixo é o relatório do embaixador inglês no Brasil, Henry Stephen Fox, ao seu chefe, o ministro do Foreign Office em Londres – o notório Henry Temple, visconde Palmerston – sobre a audiência com Feijó:
“De: Henry Stephen Fox, Ministro de Sua Majestade Britânica no Rio de Janeiro
“Para: Lorde Palmerston
“Data: 17 de dezembro de 1835
“Local: Rio de Janeiro
“Despacho nº 61
“Secreto e Confidencial
“Excelência
“Há alguns dias, eu e Monsieur Pontois, ministro francês na Corte do Brasil, fomos convidados pelo Regente Feijó para uma conferência particular, quando Sua Excelência nos fez a seguinte comunicação confidencial:
“Ele disse que o Governo brasileiro estima que possa reunir no Pará, por volta do mês de abril próximo, uma força de 3.000 homens, compreendendo 2.000 soldados regulares; que ele calcula que essa força seja suficiente para retomar a cidade do Pará e vizinhanças; mas que, não obstante, para tornar o êxito mais seguro e para privar os rebeldes de qualquer esperança de resistência, ele deseja que a Inglaterra, a França e Portugal façam reunir no Pará, aproximadamente no mesmo período, e como se fosse por acaso, uma esquadra de navios de guerra, transportando uma tropa de cerca de 1.000 soldados regulares, aptos para serviço em terra, quer dizer, cerca de 300 a 400 de cada nação. Ele propõe que esta força deveria ficar de prontidão para cooperar com as tropas brasileiras, a pedido e à discrição das autoridades civis e militares brasileiras no comando e que seriam mais particularmente empregadas na ocupação temporária dos postos do Marajó, Cametá e outros lugares nos arredores da cidade do Pará; tal cooperação, ele julga, seria suficientemente justificada, ao que parece, pelo interesse geral da humanidade e civilização, como também pelos motivos particulares de proteger nossos respectivos conterrâneos e de colocá-los novamente de posse de suas residências e propriedades sem que fosse de conhecimento público que as medidas foram usadas a pedido do Governo brasileiro.
“Monsieur Pontois e eu concordamos imediatamente e declaramos ao Regente que estávamos prontos para transmitir seu comunicado a nossos respectivos governos, mas que não esperávamos que qualquer resultado sucedesse a não ser que o comunicado fosse feito por escrito (o que poderia ser feito de maneira igualmente confidencial) para que pudéssemos informar nossos Governos exatamente sobre a extensão da cooperação que Sua Excelência desejava obter, seus limites e objetivos expressos; e ainda, para justificar essa cooperação, caso se concretizasse e fosse contestada por qualquer parte no Brasil. O Regente nos respondeu que, como a Constituição do Império proibia taxativamente a admissão de tropas estrangeiras no território brasileiro sem o consentimento da Assembleia Geral (o que não poderia ser alcançado agora em tempo hábil), ele estava impossibilitado de colocar sua proposta por escrito e que, além disso, seria desonroso para o Governo tornar oficialmente conhecido que eram incapazes, sem ajuda estrangeira, de dominar um punhado de rebeldes desgraçados e que, portanto, ele somente poderia solicitar que comunicássemos aos nossos Governos o que ocorreu nessa entrevista, como o assunto de uma conversa confidencial com o Regente, deixando ao encargo dos nossos Governos enviar aos comandantes de suas respectivas forças navais aquelas instruções que achassem convenientes sobre o posto em questão.
“Monsieur Pontois e eu prometemos ao Regente, portanto, que faríamos o comunicado aos nossos Governos na forma confidencial que ele desejava, mas não lhe oferecemos qualquer certeza, até onde valesse nossas opiniões, de ser atendido seu pedido de cooperação. O Regente declarou, em resposta a uma pergunta minha, que nem os ministros brasileiros residentes na Inglaterra e na França, nem o Marquês de Barbacena, agora encarregado de uma missão especial na Inglaterra, seriam informados do comunicado que ele acabava de nos dar em confidência.
“O acima exposto é o conteúdo da conversa com o Regente, do qual eu e M. Pontois concordamos em fazer um sumário depois que se concluísse a entrevista. O mínimo que posso fazer, é claro, é transmitir o comunicado a Vossa Excelência, mas não creio que haja a menor probabilidade de o Governo de Sua Majestade ou de o Governo Francês aquiescerem aos desejos do Regente, ou consentirem em comandar uma operação militar com base em um pedido tão informal e vagamente feito. A proposta do Regente é, como ele mesmo admitiu, uma violação direta das leis e da Constituição do país e seria, é claro, imediatamente rejeitada, e a culpa da intervenção não autorizada atribuída aos poderes estrangeiros se achasse conveniente fazê-lo.
“Devo observar, também, que não creio que haja a menor probabilidade de que o Governo brasileiro consiga, agora ou no futuro, reunir diante do Pará uma força regular tão grande como a que o Regente propunha contar.
“O ministro português não foi convidado pelo Regente para a mesma conferência comigo e com o ministro francês, porém, quero crer que uma comunicação semelhante já lhe tenha sido feita, ou está prestes a sê-lo, em separado. Empregar no Pará os ingleses ou franceses, junto com uma força portuguesa, tornaria ainda mais questionável esse procedimento, considerando na peculiar ciumeira da influência e dos propósitos que Portugal ainda nutre por este país.
“Arrisco-me a sugerir, sem prejudicar o Regente Feijó, cuja conversa comigo e com M. Pontois foi particular e confidencial, que seria prudente não mencionar esse assunto ao Marquês de Barbacena, que provavelmente estará em contato com Vossa Excelência sobre outras questões.” (cf. David Cleary (org.), “Cabanagem – Documentos Ingleses”, trad. Cristine Moore Serrão, SECULT/IOE, 2002, p. 188).
ORSAY – PARIS
Não reproduzimos esse relatório para mostrar que o padre Feijó era entreguista – mas para mostrar a que ponto chegava o desespero em 1835.
O regente, aliás, não tinha o apoio da principal figura do Exército – e principal regente do triunvirato que antecedera Feijó no governo -, general Francisco de Lima e Silva, ou de seus irmãos, generais José Joaquim e Manuel da Fonseca de Lima e Silva, embora tenha contado com a colaboração do filho do primeiro deles, major Luís Alves de Lima, o futuro Duque de Caxias, na organização da Guarda Nacional.
O outro motivo porque reproduzimos o relatório do embaixador inglês é que há certas questões historiográficas, no Brasil, que parecem beirar a maluquice – o que é uma consequência da intensa luta ideológica, que sempre houve, cada vez mais intensa, sobre a nossa História.
Quando o inglês David Cleary, diretor no Brasil da ONG “ambientalista” norte-americana The Nature Conservancy (TNC) – sustentada pelo Goldman Sachs, BP, ExxonMobil, Morgan Stanley, Phillips Alaska, Capital Research and Management Company, Duke Energy e outras entidades filantrópicas – publicou o relatório do embaixador inglês, a mídia por aqui fez um escândalo.
Segundo vários elementos, Cleary havia revolucionado, com uma descoberta inédita, os estudos sobre a Regência, e, especialmente, sobre a Cabanagem, descobrindo algo completamente inédito. Pretensamente, queriam mostrar como Feijó era submisso – e como era “ordinária” a nossa história. O livro de Cleary foi, em seguida, traduzido e publicado pela Secretária de Cultura do Estado do Pará.
Não procure o leitor alguma coerência nesse magote de entreguistas acusando Feijó de… entreguista. A coerência não é – nem pode ser – a especialidade de quem se coloca, a rigor, contra a História. O ideal dessa malta é que a História não existisse – ou chegasse ao fim, desde que com os seus amos por cima do país e da Humanidade.
A coletânea de Cleary tem, realmente, coisas interessantes – como a íntegra do relatório que transcrevemos.
Porém, não existe novidade na reunião de Feijó com esses embaixadores. Em 1937, Alberto Rangel revelara esse encontro, a partir de arquivos diplomáticos franceses. O livro de Rangel foi publicado, portanto, 65 anos antes da publicação do livro de Leary (cf. Alberto Rangel, “No rolar do tempo – opiniões e testemunhos respigados no Arquivo do Orsay – Paris”, José Olympio, Coleção Documentos Brasileiros, 1937).
Em 1942, Octávio Tarquínio de Sousa, baseado em Rangel, descreveu outra vez a audiência de Feijó com os dois embaixadores. O trecho abaixo foi extraído da segunda edição de seu livro sobre Feijó, sétimo volume da “História dos Fundadores do Império do Brasil”:
“Na mesma carta de 10 de dezembro de 1835 ao marquês de Barbacena, [Feijó] dava notícia do que fizera, esperando ter no Pará, em abril de 1836, ‘2.000 homens de terra e 1.000 de mar, com uma esquadrilha de 12 vasos pequenos, uma corveta e um barco de vapor’, ao mesmo tempo que pedia o ‘engajamento’ de 500 homens na Europa, para o mesmo fim. E tão preocupado estava com as desordens no extremo Norte, que não trepidou em entabular com os ministros da França, da Inglaterra e de Portugal acreditados junto ao seu governo negociações no sentido de obter a cooperação de forças navais desses países, visando sobretudo a impressionar os rebeldes.
“Pontois, representante diplomático da França, narrando esse episódio, em nota ao Quai d’Orsay, informou que, juntamente com o ministro inglês, se dispusera a aceitar a proposta, mas com a condição do governo brasileiro fazer o pedido por escrito, ao que se negara Feijó, ‘invocando a Constituição que não permitia a admissão de tropas estrangeiras no território nacional sem autorização da Assembléia Geral’.” (cf. op. cit., p. 259/260, grifos nossos).
O relato do embaixador francês é, portanto, idêntico ao do embaixador inglês. A revelação do relatório deste último, em 2002, não acrescentou novidade.
O desastre somente não se consumou porque Feijó, ao contrário de outros governantes, respeitou algum limite, quando os embaixadores pediram um documento assinado, ainda que secreto, solicitando tropas inglesas e francesas.
Feijó não assinou ou emitiu o documento. Se houve algo, em sua vida, que ele conseguia perceber, era o cheiro da chantagem…
Interessante é o comentário de Octávio Tarquínio de Sousa:
“Eis até onde o arrastavam alguns dos defeitos mais constantes do seu caráter e temperamento: pessimismo catastrófico, falta de confiança nos outros, impaciência que se transformava por vezes em precipitação. Sem o auxílio das forças navais estrangeiras o Pará voltou pouco tempo depois à tranquilidade. Por que, pois, esse apelo infeliz?“ (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil Vol. VII, José Olympio, Rio, 2ª edição, 1957, p. 260).
MODELO
Foi em meio a esse desespero que Feijó apresentou o projeto da Guarda Nacional.
Na sua bibliografia, o sr. Gomes omite José Honório Rodrigues. Talvez porque seja um historiador “muito nacionalista” – ou talvez porque José Honório fosse um torcedor muito fanático do Flamengo.
Mas ele omite, também, os historiadores monarquistas, por exemplo, Octávio Tarquínio de Sousa e sua monumental “História dos Fundadores do Império do Brasil”.
Eis como Octávio Tarquínio relata a criação da Guarda Nacional:
“Impunha-se processar e castigar os que atentaram contra a ordem pública, e para isso Feijó expedia os atos necessários. Mas era mister organizar a defesa da sociedade com a distribuição de armas aos elementos de confiança, a três mil cidadãos com a qualidade de eleitor. Antecipava-se o ministro da Justiça à providência julgada salvadora e que estava em discussão nas Câmaras. Essa grande providência em breve se concretizaria na lei de 18 de agosto, que estabeleceu no Brasil a Guarda Nacional, e cujo artigo 1º dizia: ‘As guardas nacionais são criadas para defender a Constituição, a Liberdade, Independência e Integridade do Império; para manter a obediência às leis. conservar ou restabelecer a ordem e a tranquilidade pública; e auxiliar o Exército de Linha na defesa das fronteiras e costas’.“ (Octávio Tarquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil Vol. VII, Ed. José Olympio, Rio, 2ª edição, 1957, p. 166, grifo nosso).
Tarquínio observa que Evaristo da Veiga (nessa época, prócer do “partido moderado” e principal apoiador da candidatura Feijó ao cargo de regente – e, acrescentamos nós, sempre um romântico) era entusiasmado pela ideia de uma “milícia cidadã” que seria “a nação toda em armas” e – ainda nas palavras de Evaristo – “um fruto da revolução liberal da França e dos Estados Unidos”.
Não é uma surpresa que Evaristo – um dos três deputados que elaboraram a versão final do caudaloso projeto que criou a Guarda Nacional, aliás, “as guardas nacionais” – tivesse esse tipo de ilusão. Evaristo também acreditava que a monarquia no Brasil era “a república sem o nome de republicano”. No sexto volume da História dos Fundadores do Império do Brasil, Octávio Tarquínio faz uma observação pertinente sobre Evaristo, em relação a Feijó, nessa época:
“É curioso como Evaristo, homem de tato, com altas qualidades de condutor político, não via os defeitos do padre paulista, a sua falta de ductilidade, a sua incapacidade para um posto em que a atitude habitual deveria ser a de árbitro das correntes de opinião, fiel de balança no jogo dos interesses opostos” (op. cit., Vol. VI, p. 164).
O problema é que quase todas as alternativas possíveis eram piores que Feijó. Portanto, é compreensível a atitude de Evaristo.
Prossegue o grande historiador, sobre a fundação da Guarda Nacional:
“O modelo mais direto dos nossos legisladores regenciais foi o francês, da época de Luís Filipe (…). Pelos termos da lei que a instituiu, a Guarda Nacional vinha substituir as forças policiais, extintos todos os corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças, e, ao mesmo tempo, fazer as vezes das forças regulares do exército e até da marinha, reduzidas ao mínimo possível e pouco merecedoras da confiança do governo, à vista dos acontecimentos recentes. Dado o processo do desenvolvimento histórico brasileiro, a Guarda Nacional não teria o caráter de ‘burguesia armada’ como na França e com o correr dos tempos seria instrumento do mandonismo da grande propriedade territorial” (op. cit., Vol. VII, p. 166, grifo nosso).
Talvez o sr. Gomes pense que o reacionário Luís Filipe de Orleans – monarca da oligarquia financeira francesa – e a Revolução Francesa são a mesma coisa, porque ele, e seu pai, Duque de Orleans, tentaram dar um golpe nos primos Bourbon (Luís XVI e os futuros Luís XVIII e Carlos X), apoiando formalmente a Revolução.
Mas isso não chega a ser um pensamento. Até porque o golpe não deu certo. O pai de Luís Filipe não escapou da guilhotina. O filho, rei depois da queda de Carlos X, em 1830, seria derrubado pela Revolução de 1848.
5
As questões culturais são, via de regra, a desembocadura do reacionarismo antinacional e de seu cortejo: a subestimação racista da nacionalidade, a negação da História do país, a difamação da capacidade do povo de se autodeterminar. Em geral, é nesse terreno onde o rancor ao país e ao povo se revela de forma absoluta, sem maquiagens.
Certamente, um povo incapaz de ter cultura própria é, necessariamente, incapaz de construir uma nação. Logo, o truque é tratar o desejo – ou a sanha – entreguista como se realidade fosse.
Porém, olhando por outro ângulo, é muito difícil, para não dizer impossível, fazer certas afirmações meramente ideológicas – sem base na realidade histórica, inclusive documental – se a cultura for levada em consideração.
Por isso é necessário destruí-la – ao menos em fantasia – ou negar a sua existência, isto é, a existência de uma cultura nacional.
O leitor deve conhecer os exemplos mais grosseiros dessa miséria. Não é difícil, considerando que temos uma presidenta que se diz fascinada por Henry Adams, esse pequeno egocêntrico imperialista, e sua autobiografia, na qual ela teria aprendido que “para construir uma grande nação, a base deve ser a educação” (sic).
Como todo mundo sabe, os EUA sempre basearam o seu expansionismo na educação…
Não deixa de ser interessante como a rearrumação que Adams fez, com tinta e no papel, da sua vida (“The Education of Henry Adams“), se transformou na fascinação de alguns babaquaras entreguistas. Compreende-se que sua fidelidade ideológica ao avô, John Quincy Adams – que elaborou, quando secretário de Estado de Monroe, a doutrina que tem o nome desse presidente norte-americano – garanta esse tipo infeliz de público.
Mesmo assim, é difícil achar alguma genialidade em um antissemita baboso, capaz de dizer besteiras algo incríveis para um cidadão “educado”, mesmo naquela época (Adams morreu em 1918). É verdade que essas besteiras não eram desinteressadas – serviam ao propósito de desviar a atenção do público em relação à casta monopolista que dominou os EUA depois do assassinato de Lincoln, sobretudo a partir da guerra com a Espanha. Segundo Adams, eram os judeus – e não a casta financeira anglo-saxã e protestante – que estavam dominando o mundo.
Porém, não é possível culpar Adams por aquilo que a presidenta diz que aprendeu com ele, porque, em sua autobiografia, o oposto é verdadeiro até em relação a ele mesmo. No mais, as demais pessoas são apenas uma extensão de si próprio…
[NOTA: Um artigo sobre o assunto é “Why Education Failed to Educate Henry Adams” [Por que a educação fracassou em educar Henry Adams], de Winthrop Dudley Sheldon, publicado em “The Sewanee Review”, Vol. 28, nº 1, Jan./1920, pp. 54-65. Para o leitor disposto a conhecer mais sobre Adams, o melhor são as cartas do período final de sua vida: “Letters of Henry Adams (1892-1918)”, Worthington Chauncey Ford, Houghton Mifflin Company, 1938.]
SEPARAÇÃO
Deixemos de lado as grosserias entreguistas e vejamos uma modalidade “mais sofisticada” de negação do país, de sua história, de sua cultura e de seu povo – aquela que se apresenta como afirmação e até como reivindicação histórica de maior participação popular.
O trecho abaixo é do historiador mais citado pelo sr. Gomes:
“Todas essas importações [ideológicas, depois da Independência] serviam à preocupação central que era a organização do Estado em seus aspectos político, administrativo e judicial. Tratava-se antes de tudo de garantir a sobrevivência da unidade política do País, de organizar um governo que mantivesse a união das províncias e a ordem social. Somente ao final do Império começaram a ser discutidas questões que tinham a ver com a formação da nação, com a redefinição da cidadania” (cf. José Murilo de Carvalho, “A Formação das Almas – o imaginário da República no Brasil“, Companhia das Letras, 2003 [1ª impressão, 1990], p. 23, grifo nosso; o mesmo texto foi incluído pelo autor em outro de seus livros, “Pontos e Bordados: escritos de história e política“, Editora UFMG, 1999, p. 91).
Em sucinto trecho de sua “Pequena História da Formação Social Brasileira”, Manoel Maurício de Albuquerque fulminou esse suposto desdém pelas “importações ideológicas”, como se alguma delas pudesse manter-se sem que nada tivesse a ver com a realidade interna, a realidade nacional.
Mas isso não é o mais grave no texto acima.
Naturalmente, o autor teria de demonstrar que a organização do Estado nacional e a unidade política do país nada tinham (e nada têm) a ver com a “formação da nação, com a redefinição da cidadania”, para que sua tese tivesse alguma possibilidade de estar correta.
Dito de outra forma, e levando até às últimas consequências esse raciocínio, seria necessário provar que a nação e a cidadania podem existir sem a organização de um Estado próprio dessa nação, que garanta a unidade política do país e delimite os direitos do cidadão.
Certamente, isso é impossível. No entanto, a separação entre Estado nacional e Nação é a base para que esse autor faça a distinção, inteiramente escolástica, entre “cidadania” e “estadania”, que perpassa a sua obra (cf. José Murilo de Carvalho, “Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi“, Cia. das Letras, 3ª edição, 1987, p. 50; a distinção está espalhada por outros livros do autor, entre eles, “A Formação das Almas – o imaginário da República no Brasil“, “Pontos e Bordados: escritos de história e política” e “Cidadania no Brasil, o longo caminho“).
Não é possível definir “cidadania” como aquilo que cada um, arbitrariamente, quer que seja a cidadania. Se fosse assim, tal conceito estaria esvaziado de conteúdo, por carência de objetividade. Ou a cidadania tem um conteúdo nacional e histórico – não o mesmo em todos os momentos, mas sempre um conteúdo concreto em cada um desses momentos – ou ela não é nada.
A distinção entre “cidadania” e “estadania” serve apenas para borrar que a cidadania e a nacionalidade têm como questão central, precisamente, a construção e o desenvolvimento do Estado nacional. Em outras palavras, cidadania e nacionalidade só existem dentro da noção de coletividade (sociedade e nação, o que implica na existência do Estado nacional) ou não existem.
ÂMBITOS
Porém, José Murilo de Carvalho é, provavelmente, o único dos historiógrafos de corte tucano, ou neo-tucano, que não é um ignorante. Ele não desconhece os fatos e documentos: o problema está naquilo que abstrai a partir deles, ou seja, na interpretação do sentido e significado desses fatos.
É interessante que ele tanto fale nas “importações” ideológicas ou filosóficas do Império ou da República – logo ele, que parece submetido ao paradigma (se assim é lícito se expressar) dos “founding fathers” dos EUA, como se a comparação com o processo de independência dos norte-americanos pudesse nos dizer algo sobre o processo de Independência e afirmação da República no Brasil.
Infelizmente, o resultado é apenas alguma literatice, não de todo desagradável ou inútil. Mas, o historiador sabe, bem ou mal, com graus flutuantes de consciência e inconsciência, que sua afirmação de que “somente ao final do Império começaram a ser discutidas questões que tinham a ver com a formação da nação” tem um sério problema: é preciso sustentá-la contra a realidade. Por isso, ele expressa esse problema logo a seguir:
“Após a consolidação da unidade política, conseguida em torno da metade do século, o tema nacional voltou a ser colocado, inicialmente na literatura. O Guarani de José de Alencar, romance publicado em 1857, buscava, dentro do estilo romântico, definir uma identidade nacional pela ligação simbólica entre uma jovem loura portuguesa e um chefe indígena acobreado. A união das duas raças num ambiente de exuberância tropical, longe das marcas da civilização europeia, indicava uma primeira tentativa de esboçar o que seriam as bases de uma comunidade nacional com identidade própria.” (idem).
Como, então, o autor faz para continuar sustentando que “somente ao final do Império começaram a ser discutidas questões que tinham a ver com a formação da nação”?
Diz ele:
“No âmbito político, a temática nacional só foi retomada quando se aproximou o momento de enfrentar o problema da escravidão e seu correlato, a imigração estrangeira” (idem).
Essa frase, no entanto, não é uma solução do problema, nem um avanço nessa direção, mas, somente, uma repetição da outra – uma alteração de forma através do uso de sinônimos: dizer que somente ao final do Império “começaram a ser discutidas questões que tinham a ver com a formação da nação” é a mesma coisa que “no âmbito político, a temática nacional só foi retomada quando se aproximou” etc.
O formalismo enxuga-gelo pode ser irritante para alguns leitores, mas o principal problema é que seu conteúdo é falso em vários – aliás, todos – os sentidos.
O enfrentamento do “problema da escravidão” percorre todo o Império. É falso localizar a questão somente no final da monarquia. A abolição da escravatura, como princípio legal, foi admitida, na legislação do Império, em 1831 – nove anos após a Independência. A partir desse ano, a escravatura e sua abolição tornaram-se a questão central da luta política no parlamento. Já em 1837, como nota Rui Barbosa, essa luta tornou-se feroz (cf. Rui Barbosa, “Parecer sobre a emancipação dos escravos“, Typographia Nacional, 1884, p. 11, e, também, Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XI 1884, Tomo I, Ministério da Educação e Saúde, Rio, 1941, onde há, também, um excelente prefácio do organizador do volume, Astrojildo Pereira, sumariando a questão).
Assim como separou a nação do Estado nacional, o autor separou a cultura da política de uma determinada época. Não é possível que os homens da política – inclusive o autor de “O Guarani“, deputado José de Alencar, durante breve tempo, ministro da Justiça – nada tivessem a ver com a cultura da mesma época.
A política é sempre o aspecto decisivo. É nesse sentido que Lenin escreveu que “a política é a economia concentrada”. Evidentemente, as polêmicas culturais do Segundo Império são choques entre políticas culturais – ou propostas de políticas culturais – diferentes para o país.
Além disso, o autor não define o que chama de “âmbito político”. É uma daquelas noções vagas, que parecem muito óbvias, até o momento em que se presta alguma atenção a elas. O que é “âmbito político”? O parlamento? O Ministério? O pessoal que matava o tempo, conversando sobre política, na Confeitaria Paschoal da rua do Ouvidor?
Mas nada é tão característico quanto a confusão entre “imaginário” ou percepção subjetiva e realidade objetiva. Existe algo de parecido com aqueles “teóricos” da mídia que negam a existência da verdade, substituindo-a por “versões”.
Por exemplo, José Murilo de Carvalho pretende, na introdução de “A Formação das Almas“, que, livro seu anterior “sobre a implantação da República mostrou a nula participação popular em sua proclamação e a derrota dos esforços de participação nos anos que se seguiram” (ed. cit., p. 9, grifo nosso).
Felizmente, para ele, não é verdade. Aliás, nesse livro anterior, o historiador nem se propõe a essa tarefa, desde as palavras com que inicia a obra:
“Em frase que se tornou famosa, Aristides Lobo, o propagandista da República, manifestou seu desapontamento com a maneira pela qual foi proclamado o novo regime. Segundo ele, o povo, que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar. Não nos interessa aqui discutir em que medida a observação correspondia à realidade, isto é, em que medida o povo participou ou não da proclamação da República. Há versões contraditórias à espera de uma análise critica, a qual não será feita neste texto” (cf. José Murilo de Carvalho “Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi“, Cia. das Letras, 3ª edição, 1987, p. 9, grifo nosso).
Ou seja, segundo o próprio autor, o livro não é sobre a participação popular, mas sobre a percepção que os republicanos tinham dela.
Aliás, saindo de seu proclamado objetivo, nesse livro anterior, diz o sr. José Murilo de Carvalho sobre a participação popular real:
“Durante quase dez anos de República, as agitações se sucediam na capital (…). Para os que controlavam o setor mais poderoso da economia (exportação) e para os que se preocupavam em manter o país unido, tornava-se urgente acabar com a instabilidade política. A natureza da tarefa que se impunha pode ser descrita como a necessidade de eliminar, ou pelo menos neutralizar, a influência da capital na política nacional. Isto significava pelo menos duas coisas: tirar os militares do governo e reduzir o nível de participação popular” (cf. op. cit., p. 31/32, grifo nosso).
E, mais adiante, no mesmo livro:
“… A história da cidade desde a independência indicava intensa participação popular nos acontecimentos políticos, sobretudo durante o Primeiro Reinado e a Regência. Mesmo durante o período mais tranquilo do Segundo Reinado, houve momentos de agitação popular, como durante a crise que levou ao rompimento com a Inglaterra e em especial durante a Revolta do Vintém, em 1880. Nesta última, uma multidão de mais de cinco mil pessoas reuniu-se no centro da cidade, arrancou trilhos de bondes e pedras do calçamento das ruas, construiu barricadas, lutou contra a polícia. Três mortos e mais de vinte feridos resultaram do conflito. Mais perto da República, a campanha abolicionista também teve momentos de intenso envolvimento popular em comícios, demonstrações perante a Câmara, desfiles comemorativos.
“Se na proclamação da República a participação popular foi realmente arranjada de última hora e de efeito apenas cosmético, logo após as agitações se tornaram cada vez mais frequentes e variadas, incluindo greves operárias, passeatas, quebra-quebras. O auge da agitação deu-se entre a Revolta da Armada em 1893 e o atentado contra Prudente de Morais em 1897. (…) É a época do jacobinismo florianista…” (idem, p. 70).
Apesar de já nesse livro aparecer uma clara subestimação da participação popular (por esse critério, qualquer participação popular organizada seria “arranjada de última hora e de efeito apenas cosmético”), nitidamente, a opinião do historiador mudou entre um livro e outro – daí a reinterpretação da obra anterior. Como já frisamos, é no campo político que, em geral, se travam os combates mais decisivos. Frequentemente, sobretudo nos últimos tempos, alguns desses combates redundam em uma revisada versão do passado e das obras sobre o passado – não necessariamente nova, nem melhor, ou mais verdadeira, que a anterior.
6
O jovem Machado de Assis era um otimista, e dos mais entusiasmados, sobre os jornais. É verdade que ele tinha apenas 19 anos quando dedicou a Manuel Antonio de Almeida – o autor de “Memórias de um Sargento de Milícias”, chefe e protetor, na Imprensa Nacional, até o ano anterior, do tipógrafo Joaquim Maria – sua ode jornalística aos jornais, que deveriam substituir os livros.
Percebendo alguns problemas na sua tese, Machado tentou, ao final do texto, relativizar a posição, o que não conseguiu, mas serviu de registro às suas convicções: “Quem enxergasse na minha ideia uma idolatria pelo jornal teria concebido uma convicção parva. Se argumento assim, se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia; e a democracia é o povo, é a humanidade. Desaparecendo as fronteiras sociais, a humanidade realiza o derradeiro passo, para entrar o pórtico da felicidade, essa terra de promissão” (cf. Machado de Assis, “O jornal e o livro”, Correio Mercantil, 10 e 12/01/1859, in Obra Completa, Nova Aguilar, V. III, 1994).
Esse artigo é notável, também, por outra razão, aliás, correlata: a identificação que Machado faz entre república e democracia (“O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções. O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social“.)
Cabe frisar que Machado não está falando dos monopólios de imprensa, que não existiam na época, embora, como Alencar escreveria depois, já existissem mercenários da pena e candidatos a barões da imprensa bancados com dinheiro obscuro.
Todo esse nariz de cera, que nem se compara em tamanho aos do tempo de Machado, é para dizer que escrever em jornal, mesmo no bravo e democrático HP, tem lá os seus problemas – por exemplo, o espaço. Não conseguimos, na edição anterior, abordar duas questões, ainda relacionadas ao mesmo tema.
Uma historiadora, formada por uma de nossas mais renomadas instituições universitárias, disse-me há alguns anos que, hoje, ninguém consegue ser aprovado em uma pós-graduação da área de “humanas” sem citar Michel Foucault, ainda que a citação não tenha finalidade alguma.
A observação, apesar de um pouco caricata, mostra a que ponto chegou a arbitrariedade dentro de certos meios acadêmicos. Nem o triste fim do supostamente “sofisticado” Foucault – afogado em deitar loas ao neoliberalismo, o monstrengo ideológico mais grosseiro, mais estúpido, mais sanguinário, em uma palavra, mais anti-humano desde o nazismo – serviu para mostrar alguma coisa aos cavalheiros e damas que avaliam (e orientam) nossos pós-graduandos em certas áreas.
Algumas “liberdades”, contra os fatos e documentos, como aquelas que vimos num laureado historiador, ainda que demonstrem senso infinitamente maior, são da mesma categoria daquelas de Foucault, e isso não é um elogio (hoje em dia, esse aviso é, pelo menos, prudente). Não importa que o autor pareça (ou até tenha a convicção de) nada ter a ver com Foucault, mas esse foi o aborto mental parido por um ambiente de contrarrevolução, que só recentemente começou a chegar ao fim: o revisionismo arbitrário nos escritos sobre História.
São “liberdades” muito pouco – ou nada – livres. Em maior ou menor grau, é a substituição da verdade histórica pelo discurso meramente ideológico – uma substituição que é sempre pela escravatura a um discurso ideológico reacionário.
DIA 15
A segunda questão é a seguinte: já que fomos obrigados a passar pelo assunto, vejamos o famoso artigo de Aristides Lobo, em que ele diz: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”.
Essa frase é apresentada, por 10 entre 10 propagandistas reacionários, como a prova de que a República – e, de resto, o Brasil – nada teve, e nada tem a ver, com o povo que habita estas plagas.
No entanto, Aristides Lobo estava convencido do contrário. É dele uma das mais irretorquíveis e sintéticas defesas da revolução republicana: “Desde que as instituições deixam de corresponder às aspirações nacionais, é um crime mantê-las, porque são a expressão de uma tirania, instrumentos de tortura e de desorganização social“.
Em 1889, Aristides Lobo escrevia uma coluna, as “Cartas do Rio”, para o jornal paulistano Diário Popular. A tão citada frase é parte de uma delas, intitulada “Acontecimento Único”. A frase é referente aos civis (evidentemente, os militares também faziam, como fazem, parte do povo) e apenas nos primeiros instantes, onde até boa parte dos republicanos – civis e militares – estava atônita, surpresa. Mas o melhor é que o leitor julgue por si mesmo, com o conhecimento do texto inteiro do artigo:
“Cartas do Rio
“Acontecimento Único
“Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1889.
“Eu quisera poder dar a esta data a denominação seguinte: 15 de Novembro, primeiro ano de República; mas não posso infelizmente fazê-lo. O que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era.
“Em todo o caso, o que está feito, pode ser muito, se os homens que vão tomar a responsabilidade do poder tiverem juízo, patriotismo e sincero amor à liberdade.
“Como trabalho de saneamento, a obra é edificante. Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula.
“O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava.
“Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.
“Era um fenômeno digno de ver-se.
“O entusiasmo veio depois, veio mesmo lentamente, quebrando o enleio dos espíritos.
“Pude ver a sangue-frio tudo aquilo.
“Mas voltemos ao fato da ação ou do papel governamental. Estamos em presença de um esboço, rude, incompleto, completamente amorfo.
“Bom, não posso ir além; estou fatigadíssimo, e só lhe posso dizer estas quatro palavras, que já são históricas.
“Acaba de me dizer o Glycerio, que esta carta foi escrita na palestra com ele e com outro correligionário, o Benjamim de Vallonga.
“E no meio desse verdadeiro turbilhão que me arrebata, há uma dor que punge e exige o seu lugar – a necessidade de deixar temporariamente, eu o espero, o Diário Popular.
“Mas o que fazer? O Diário que me perdoe; não fui eu; foram os acontecimentos violentos que nos separaram de momento.
“Adeus.
“Aristides Lobo“.
Resta dizer que a versão de uma República proclamada sem que houvesse povo (provavelmente, um povo composto de bestas, pois esse é o sentido que se quer dar à palavra “bestializado”), é, sem por nem tirar, a versão monarquista da Proclamação da República, que teve como jogada inicial o livro do primeiro Afonso Celso – o visconde de Ouro Preto, último presidente do conselho de ministros do Império, notável pela arrogância e falta de senso de realidade (v. Visconde de Ouro Preto, “Advento da Dictadura Militar no Brazil“, Imprimerie F. Pichon, Paris, 1891; existe um exemplar desse livro, com cópia digitalizada, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP).
Essa versão monarquista foi exumada em 1925, na apologia bajulatória que Oliveira Viana fez da família imperial, até mesmo do Conde D’Eu (há uma edição recente desse livro: Oliveira Viana, “O Ocaso do Império“, Senado Federal, Brasília, 2004).
Depois, foi exumada outra vez, em 1957, por João Camillo de Oliveira Torres em “A Democracia Coroada”, um panfleto monarquista de quase 600 páginas, às vezes até divertido – e não apenas porque expressões como “comunistas em maré de rebeldia” (p. 470 da segunda edição) são muito cômicas, principalmente num livro sobre o Império. Mas há coisa até mais engraçada. Por exemplo: “Quanto mais hostil aparecer a nossos olhos a ‘autoridade’, tanto mais garantidos estaremos contra a opressão“. E, na mesma página: “É no discurso meio ressentido de Samuel aos judeus que queriam um rei (…) que encontramos a essência da velha desconfiança do povo contra os reis (1 Reis 7, 11-19), desconfiança que pode levar à república” (cf. João Camillo de Oliveira Torres, “A Democracia Coroada – Teoria Política do Império do Brasil“, 2ª edição, Vozes, 1964, p. 21).
Portanto, os revisionistas atuais estão exumando um cadáver já duas vezes exumado – há 89 anos e há 57 anos – com pouco sucesso. Rapidamente, foi enterrado outra vez.
RESTOS
Aquilo que no sr. José Murilo de Carvalho aparece como uma interpretação em que, não sem alguma inibição, se separam aspectos da realidade (nação e estado nacional, cultura e política, etc.) e se confunde o que não tem realidade objetiva (“o imaginário”) com aquilo que é real (pois existe uma realidade histórica), no sr. Laurentino Gomes torna-se exaração de lugares-comuns há muito repetidos pelos panfletários, aliás, historiógrafos, direitistas:
“Os artistas enviados [pelo Império] para a Europa de lá voltavam repletos de modelos artísticos e iconográficos que pouco tinham a ver com a realidade brasileira. Os quadros de Victor Meirelles e Pedro Américo, as óperas de Carlos Gomes e os romances açucarados de José de Alencar refletiam o que se fazia na Europa e não a dura realidade tropical brasileira. O romantismo, fonte na qual bebiam, buscava redescobrir as raízes da nacionalidade brasileira, mas a matéria-prima eram modelos europeus. Coube a eles a tarefa de idealização do índio, a essa altura já dizimado em toda a costa brasileira e segregado às regiões mais distantes, onde não poderia causar problemas aos brancos. Os negros e mulatos, estes sim uma onipresença na realidade brasileira, eram ignorados nessas obras de arte – e só iriam aparecer mais tarde, nos trabalhos de Aluísio Azevedo, Tobias Barreto, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, entre outros” (Laurentino Gomes, “1889”, Ed. Globo, 2013, p. 103/104, grifo nosso).
Em poucas linhas, e sem se sentir obrigado a provar o que diz, o sr. Gomes excluiu Castro Alves da literatura brasileira. Ou será que o “poeta dos escravos” ignorou os negros e mulatos?
Também excluiu Bernardo Guimarães (“A Escrava Isaura“, de 1875). Além, é claro, de Luiz Gama (“Primeiras Trovas Burlescas de Getulino“, de 1859).
E nem falemos de outros, hoje menos conhecidos – por exemplo, um dos grandes amigos de Alencar e Machado, Joaquim Serra, autor de “Pacotilha Negreira”, poema em que, depois de uma colagem de anúncios e notícias (“Foi ontem ter com o subdelegado/ A mulatinha Ignez,/ Que diz escrava ser de um deputado;/ Tinha um olho vazado,/ Os dentes arrancados com torquês,/ Em uma chaga a cabeça e a cara!/ Pela infeliz foi dito/ Que fora seu senhor que a castigara…/ Procedeu-se ao corpo de delito.“), seguem-se os versos finais:
“Pátria minha infeliz, onde tal gente
“Pretende dominar!
“Isto faria rir, se, tristemente
“Não fizesse chorar.”
Quanto à lista de artistas que, supostamente, não ignoraram os “negros e mulatos”, nem comentaremos a estupidez de colocar Tobias Barreto ao lado de Di Cavalcanti e Tarsila.
Mais aberrante é o que Barreto, mulato que se dizia “grego”, com aspirações a alemão, está fazendo nessa lista.
Tobias Barreto era tão identificado com o povo brasileiro – ou com os “negros e mulatos” – que publicou, em 1876, na cidade pernambucana de Escada, um jornal em alemão. Para isso, usou o dinheiro do sogro, um senhor de escravos. Obviamente, os negros e mulatos – e o povo de Escada – gostaram muito do jornal de Tobias…
Gomes não parece ter a menor ideia de quem era – ou foi – Tobias Barreto.
Por razões que um dia (talvez) abordaremos, Barreto foi retirado do barril de inutilidades esquecidas por aquele círculo de trânsfugas “intelectuais” que girava em torno do sr. Bob Fields, aliás, Roberto Campos, depois de abril de 1964. Na série de artigos que dedicamos ao golpe de Estado, escrevemos (e depois cortamos, pois a série já estava muito longa) um texto sobre o assunto.
Mas talvez tenha interesse atual o motivo desse texto, que tem relação direta com a imagem de Tobias Barreto que apareceu após o golpe de 1964, e que o sr. Gomes parece adotar.
Lá por 1966, Antonio Paim – que nem sempre foi aquele sujeito amargo, que, ainda sob a ditadura, denunciava pelo Jornal do Brasil as “patrulhas marxistas” na PUC do Rio – presenteou meu pai (eram, então, velhos amigos e ex-companheiros de prisão, condenados por resistir à invasão, em 1947, do jornal Imprensa Popular) com um exemplar da primeira edição de seu livro “A Filosofia da Escola do Recife”.
Nessa época, o irmão do filósofo, o economista Gilberto Paim, ex-professor do ISEB, já se tornara um áulico de Roberto Campos, principal ministro do primeiro governo da ditadura. O que meu pai não percebeu – nem eu, que o acompanhava – é que Paim, o filósofo, também estava fazendo o mesmo deslocamento. Sua cansativa apologia de Tobias representava a tentativa de encontrar, na história brasileira, um ídolo que servisse para justificar a adesão aos inimigos da véspera. Embora, na época, ele não parecia ter consciência disso.
Mas é forçoso reconhecer que Tobias não é responsável pela traição de ninguém. Quando li a obra de Paim, achei a “filosofia” da suposta “escola do Recife” perfeitamente inútil, isto é, irrelevante – qual a importância do que Victor Cousin e outros, franceses ou alemães, pensavam (ou deixavam de pensar) para a trajetória do país? Absolutamente nenhuma, assim como os seus plagiadores brasileiros. No entanto, quando li o livro pela primeira vez, eu era um adolescente. Hoje, quase 50 anos depois, relendo-o, é imediata a impressão – e correta – de que se está diante de uma idealização ou fabricação de Tobias e sua suposta “escola”.
O melhor julgamento de Tobias Barreto e sua obra continua sendo o de Agripino Grieco:
“A rigor, haverá também exagero nisso de incluir Tobias Barreto, depois de morto, entre as sombras do Valhala, com música de Wagner. Tobias – já é tempo de reconhecê-lo – foi apenas um inflamado professor de direito, e talvez mau professor, porque sem medida, sem aquilo que os gregos (e ele se dizia um “grego pequeno e forte”!) classificavam de euritmia. Expositor veemente, tonteado pelo seu verbo fuliginoso, alucinava-se e alucinava os discípulos, mas é certo que não se constrói coisa alguma assim numa perpétua tempestade. Gabava-se de ensinar uma ciência exata e vivia numa constante vertigem, bêbado de Alemanha e de palavras alemãs.
“À parte a notável monografia, excepcionalmente equilibrada, com que tratou de “Menores e loucos”, nada deixou que resista aos arranhões e às dentadas dos séculos. Era por vezes um caso de indigestão de leituras, e ter-se-ia vontade de oferecer-lhe, amistosamente, um pouco de bicarbonato.
“Seus versos, com exceção de uma poesia erótica e de uma poesia épica que nos leva a pensar em Castro Alves, são milagres de insipidez ou de pernosticismo retórico. Era um poeta, por assim dizer, em prosa.
“E quanto ao seu horror à teologia e à metafísica, o seu fanatismo pela Germânia, depois de ter sido fanático da França, são apenas de quem mudava de patrão, de quem trocava uma servidão por outra. Não é só no sentido físico que se nasce escravo. Ou o Sena ou o Reno: o Capiberibe é que nunca…
“Examinando-se bem, não era ele, no sentido do espírito, um homem livre, e nem sequer um homem liberto, mesmo com as limitações que este vocábulo comporta. Meetingueiro, não raro empolgante, da filosofia, Tobias Barreto, com os seus ouropéis do monismo, faz-nos recordar os sobas da Zululândia, que se deixam fotografar de tanga e cartola, a fingir que leem um número do ‘Times’.” (cf. Agripino Grieco, “Carcaças Gloriosas”, 2ª ed., José Olympio, Rio, 1957, p. 168/169).
7
Em trabalho brilhante e ainda pouco conhecido – apesar de escrito em 1925 – Vicente Licínio Cardoso demonstrou que o Brasil, após a crise econômica que eclodiu a primeiro de setembro de 1864, afundou numa cinzenta estagnação, devido à persistência de uma economia baseada no trabalho escravo.
A própria crise de 1864 (conhecida como “a quebra do Souto”, pois foi marcada pela falência do banco pertencente ao português Antonio José Alves Souto, visconde de Souto) não fora apenas uma “crise financeira”, em que bancos faliram às pencas, mas – como apontara Mauá em 1878 – uma crise da produção agrícola, toda ainda baseada no trabalho escravo, numa situação em que o tráfico de seres humanos, fora alguns contrabandos, terminara em 1853.
A especulação desbragada fora cevada por recursos antes aplicados no tráfico escravagista e na agricultura – esta, que constituía a economia real, reduzira sua produção, sem que houvesse, por parte do governo, qualquer política de industrialização que permitisse a alocação desses recursos em outros empreendimentos (cf. Vicente Licínio Cardoso, “À margem do Segundo Reinado”, incluído na obra póstuma “À Margem da História do Brasil“, 1933; para este artigo, usamos a segunda edição, de 1938, da Companhia Editora Nacional, p. 134-227; a visão de Mauá está em seu livro “Exposição do Visconde de Mauá aos credores de Mauá & C e ao público“, Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C, Rio, 1878, p. 135 e segs.).
Para completar esse quadro, como escreve um de nossos historiadores econômicos, o Brasil da época tinha “uma dependência quase absoluta da importação de produtos manufaturados, em grande escala. Importávamos até palitos e cabos de vassoura” e um Estado que se afundava, cada vez mais, em empréstimos externos – ou seja, nos Rothschild, de Londres, que eram também representantes oficiais do governo diante dos outros bancos externos: “em muitos casos, [as operações de empréstimos] figuravam só como novos encargos assumidos, porque suas importâncias permaneciam em todo ou em parte em Londres, destinadas a satisfazer os compromissos naquela praça. Nenhuma possuía fins reprodutivos. E durante o período histórico que estamos examinando, fizemos 13 empréstimos desses” (cf. Heitor Ferreira Lima, “História do Pensamento Econômico no Brasil“, CEN, 1976, p. 123-124).
Em meio a essa difícil situação econômica, os liberais – no poder desde 1862, quando caiu o Ministério presidido por Caxias – lançaram “o país na aventura de uma guerra externa”, com a intervenção no Uruguai, supostamente, para defender fazendeiros gaúchos que se instalaram em território uruguaio. Com isso, os liberais passavam por cima do maior general do Império – o próprio Caxias:
“O governo imperial consultou o marquês de Caxias, expoente do Partido Conservador e a maior autoridade militar do Império, com experiência no Rio Grande do Sul e no Prata, sobre eventual apoio àqueles fazendeiros. [o antigo líder farroupilha] Souza Neto procurou pessoalmente o marquês, prometendo mobilizar 40 mil brasileiros bem armados no Uruguai. Caxias respondeu a Souza Neto que não se mobilizariam nem mil brasileiros e, mais, que sua opinião era a de que o Brasil não devia se envolver nas questões internas dos países vizinhos. Para Caxias, a única providência que o governo imperial deveria tomar para garantir os ‘direitos’ de brasileiros no Uruguai era a de reforçar as guarnições militares na fronteira” (cf. Francisco Doratioto, “Maldita Guerra”, 2ª ed., Companhia das Letras, 2007, p. 51-52).
É interessante a descrição de João Batista Calógeras (pai do futuro historiador, e ministro da Guerra, Pandiá Calógeras) da política externa dos liberais. Na época servindo no Ministério dos Negócios Estrangeiros, dizia Calógeras:
“Toda nossa política nessa questão foi infeliz desde a origem. Começamos por enviar uma missão especial, levados por uma ameaça de revolução dos rio-grandenses que apoiavam Flores, e que visam a estender sua influência ao Estado oriental. Assim deixamo-nos arrastar por um princípio revolucionário e fomos apoiar uma revolução, a de Flores contra o governo legal de Montevidéu. Fomos exigir a satisfação de reclamações que tínhamos abandonado há doze anos, enquanto o Estado oriental tinha outras tantas coisas contra nós, uma verdadeira provocação, mais ainda, pois no momento em que apresentávamos semelhantes pretensões contra o governo da República do Uruguai, esse governo estava, e continua estando, a braços com uma revolta que não consegue dominar, e que é sustentada sobretudo pelos brasileiros que abraçaram a causa de Flores” (cit. in Francisco Doratioto, liv. cit., p. 65).
Além de Caxias, Mauá e Rio Branco também se opunham à intervenção no Uruguai. Especialmente depois do bombardeio de Montevidéu, Caxias manifestou sua oposição de maneira enfática. O que mais o deixava indignado era o apoio do imperador a essa política aventureira. Daí suas cartas sobre Pedro II, “classificando-o de amante de ‘patacoadas’, de ‘bobo’ e de ‘sujeitinho’” (op. cit.).
Vicente Licínio Cardoso – hoje lembrado pela fundação do glorioso Botafogo, o que não deve ter sido o seu menor feito – tinha razão sobre o período final do Império. Sobre o conjunto do Segundo Reinado, ele faz uma observação que também é procedente:
“Certo, houve progresso durante o segundo reinado, houve aumento valioso das energias econômicas do país. Apenas esse aumento não foi o que deveria ter sido. O confronto com a evolução do Canadá, Argentina, Austrália não nos é, de modo algum, favorável. Os dados estatísticos de Rio Branco na obra de Lavasseur (1889) são verdadeiros: mostram, de fato, grande aumento, quando confrontados com os de 1840 ou 1822. Mas exigem pontos de referência. E, sem eles, as estatísticas tornam-se geralmente perigosas” (cf. Vicente Licínio Cardoso, op. cit., p. 154, itálicos no original).
A REVOLTA
Mas, se esse é o fundo econômico da questão, que fatores políticos ou político-ideológicos, sobre esse pano de fundo, levaram à derrocada da monarquia?
Capistrano de Abreu, historiador que geralmente é citado por aquilo em que não tinha razão – sua subestimação da Inconfidência Mineira, que ignorou em seu livro “Capítulos de História Colonial”, embora não em seu trabalho sobre Varnhagen – fez um sucinto retrato dos tempos finais do Império (e do imperador), que desmente qualquer visão idílica do segundo reinado, não bastassem os problemas econômicos – e a escravidão, que persistiu durante toda a monarquia, com exceção do último ano.
A propósito, são completamente falsas as versões que mostram um imperador que, como o rei ou a rainha da Inglaterra, reinava mas não governava – sua correspondência com o Barão de Cotegipe mostra alguém que acompanhava diariamente o que acontecia na vida política, e, mais importante, decidia a política do governo. O que era, aliás, perfeitamente coerente com a Constituição da época – o cargo de presidente do Conselho de Ministros, que o imperador inventara em 1847, sempre foi informal. Nunca foi incluído na Constituição, segundo a qual o imperador era tanto chefe de Estado quanto do governo (v. “Cartas do Imperador D. Pedro II ao Barão de Cotegipe“, CEN, 1933).
Mas, escreveu Capistrano de Abreu:
“A volta dos liberais ao poder em 78 foi precedida ou acompanhada de mortes de homens eminentes: Alencar, Zacarias, Nabuco [de Araújo], Caxias, Rio Branco, Osório, o que trouxe um abaixamento considerável do nível moral e intelectual em todo o país. As honras e dignidades caíam no maior descrédito; o edifício do prestígio oficial fendia-se de alto a baixo; uma atmosfera de chalaça deletéria envolvia tudo. Só o imperador não dava por isso, embebido em seus estudos de sânscrito, persa, árabe, hebraico, tupi, etc. O dia do vintém (1.° de janeiro de 80) não lhe serviu de aviso; o assassinato de Apulcro de Castro (25 de outubro de 83), não o chamou à realidade; a chamada questão militar (87) deixou que crescesse à vontade, para depois ser solvida com arranhões na dignidade governamental” (cf. J. Capistrano de Abreu, “O Brasil no século”, publicado em “A Notícia”, 01/01/1900, incluído em “Ensaios e Estudos (Crítica e História) 3ª série“, org. Sociedade Capistrano de Abreu, Briguiet, 1938, p. 140-141).
O “dia do vintém” é uma referência à revolta popular que ficou conhecida como Revolta do Vintém – contra um aumento de vinte réis (um vintém) na passagem dos bondes puxados a burro, devido a um imposto decretado pelo governo (gabinete liberal presidido pelo visconde de Sinimbu).
Alguns historiadores notaram que a quantia, em si, cobrada como imposto, era pequena – mas isso não tem a menor importância: realmente, não foi a magnitude da escorcha o principal fator que fez explodir a revolta popular, mas a sua injustiça, em um tempo cheio de injustiças, com o país economicamente paralisado.
Para que o imposto não diminuísse os lucros das empresas estrangeiras que exploravam os bondes, o governo resolvera cobrar o imposto diretamente dos usuários. Depois, proibira “reuniões públicas e a manifestação da liberdade de expressão” (sic) no Rio de Janeiro, “além de colocar em alerta os contingentes da polícia, as ‘tropas de linha’ e os marinheiros” (cf. Ronaldo Pereira de Jesus, “A revolta do vintém e a crise na monarquia“, História Social nº 12, Campinas, 2006, p. 77).
Essa proibição foi mandada às favas. Na “Gazeta de Notícias”, aquele que se tornaria o principal líder da revolta, o republicano Lopes Trovão, escreveu: “Só por meio de uma revolução, o povo conseguirá chamar o poder ao cumprimento dos seus deveres” (cf. Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, 4ª ed., Mauad, 1999, p. 231).
Um autor favorável à monarquia, e a D. Pedro II, assim se refere ao tribuno republicano, misto de médico e jornalista:
“… Lopes Trovão, redator da Gazeta de Notícias, grande tribuno, bela estampa, cabeleira ao vento, com o seu inseparável e já popular monóculo encaixado num dos olhos. Vivia sempre às turras com a polícia toda vez que aparecia nas ruas centrais da cidade a incitar o povo contra as autoridades públicas. Relativamente moço, nessa época com 38 anos de idade, fora ele quem, de parceria com José do Patrocínio, promovera as desordens que se tinham dado na Corte em janeiro de 1880, incitando o povo a não pagar o chamado ‘imposto do vintém’, a ser cobrado em cada passagem de bonde, o que obrigou a polícia a intervir com meios violentos, provocando com isso derramamento de sangue e mesmo a morte de uns poucos populares, fato que tanto aborreceu o Imperador – ‘as primeiras do meu reinado’, lamentara ele.” (Heitor Lyra, “História da Queda do Império 1º v.“, CEN, São Paulo, 1964, p. 264).
A seguir, veremos o quanto é falso esse relato dos acontecimentos. Mas não deixa de ser interessante o retrato do líder republicano.
SANGUE
Convocadas por Lopes Trovão, José do Patrocínio e outros republicanos, milhares de pessoas, a 28 de dezembro de 1879, ocuparam o Campo de São Cristóvão, próximo ao Paço Imperial da Quinta da Boa Vista – onde morava D. Pedro II – para entregar ao imperador um pedido de revogação do aumento. A polícia impediu que os manifestantes se aproximassem do Paço – onde hoje funciona o Museu Nacional. Somente quando a multidão já se dispersara, D. Pedro II enviou um emissário para dizer aos líderes da manifestação que receberia a comissão de representantes. A comissão – composta, além de Lopes Trovão e José do Patrocínio, por Ferro Cardoso e Joaquim Piero da Costa – recusou o encontro com o imperador naquelas condições.
No dia 1º de janeiro de 1880, quando o aumento da passagem de bonde entrou em vigor, a multidão, depois de um discurso de Lopes Trovão, “seguiu pela rua do Ouvidor acima, manifestando o seu desagrado ao Jornal do Commercio, Cruzeiro, até a rua Uruguaiana” (cf. Revista Illustrada, 07/01/1880).
Os manifestantes bradavam “Fora o vintém!”. O repórter da Revista Illustrada, presente ao ato, relata:
“Essa atitude pacífica de modo algum podia convir à policia disfarçada em gente, que o Sr. Dr. chefe de polícia derramara em toda a cidade para manter a ordem. A polícia precisava, portanto, ter o que apaziguar, para fazer jus às generosas recompensas que lhe fora distribuída pela verba secreta. Começou então a preparar o drama, arrancando trilhos, quebrando carros até que veio a força de linha, recebida com vivas pelo povo e com pedradas pelos agentes do Sr. Dr. Pindahyba. A tropa reagiu e com o denodo do gigante armado que se bate com a criança inerme ‘tomou de assalto as barricadas’ e, sem as intimações, fez descargas contra as pessoas aglomeradas na rua e nas janelas” (Revista Illustrada, 07/01/1880).
Resumindo: a revolta tomou o centro do Rio depois que, além das provocações da polícia, o comandante de uma unidade do exército, enviada pelo governo, mandou abrir fogo sobre os manifestantes, depois de receber o impacto de uma pedra, arremessada por um policial disfarçado. Morreram três pessoas, cujos cadáveres ficaram expostos durante todo o dia no meio da rua (nos quatro dias da revolta houve, segundo vários relatos, dez mortos). O incidente com as tropas foi em frente à Escola Politécnica (o prédio onde atualmente funciona o IFCS, da UFRJ, no Largo de São Francisco) e foi inteiramente inesperado, pois o exército era muito popular – e fora aplaudido quando chegou ao local.
Revoltado, o povo tomou a cidade – e nem os muares, que puxavam os bondes, escaparam. A sublevação durou até o dia quatro de janeiro, espalhando-se pelo Andaraí, Tijuca, e, inclusive, pelo bairro onde residia o imperador, São Cristóvão. Nessa altura, as companhias de bonde – ou seus funcionários – já não cobravam o aumento, apesar do porta-voz do governo, Conselheiro Paranaguá, esbravejar que se tratava de uma lei, e, portanto, tinha de ser cumprida. O ponto de vista do governo, como registrou a Revista Illustrada, foi exposto no Diário Oficial: “Foram quebrados muitos bonds e mortos alguns sediciosos”.
Depois da Revolta do Vintém, nunca mais a monarquia, e Pedro II, recuperariam o prestígio nem o respeito anteriores.
Um dos maiores poetas do país nessa época – Raimundo Corrêa, autor de “Mal Secreto” e “As Pombas”, um dos três membros, com Bilac e Alberto de Oliveira, da “trindade parnasiana” – dedicou ao imperador o poema “Ao Poder Público”, escrito a 1º de janeiro de 1880:
“Tu que és da direção das massas investido,/ Tu que vingas o crime e que o Povo defendes,/ E executas a lei penal, e do bandido/ No topo de uma forca, o cadáver suspendes;// Tu que tens o canhão, a tropa, a artilharia,/ Tu mesmo és quem fuzila a inerme populaça;/ Incurso está também no Código e devia/ Pra ti também se erguer uma forca na praça!“
Outros poetas preferiram outro tipo de poema. Por exemplo, o autor de “Poemas Americanos”, Mathias Carvalho, publicou “O Imposto do Vintém”:
“E o rei sentiu-se mal – fora sinistro o dia!/ Passou-lhe no frontal a contração sombria/ Que marcava a convulsão tempestuosa, interna!/ Pois que! leproso o cão ousar a sujar-lhe a perna!/ A sombra dar um passo! o diamante régio/ Sentir manchas na luz de sua grande esfera!/ O verme avolumou-se em proporção de fera!/ Ter o arrojo brutal, o grande atrevimento/ De contestar a cifra do Dogma-Orçamento/ E tirar-lhe em cheio ao seu sagrado rosto:/ ‘Este imposto é ilegal: eu não pago esse imposto!’/ Oh! isto era demais!”
Na Revista Illustrada, de Angelo Agostini, outro poeta, sob o pseudônimo de Toby, publicou na edição de sete de janeiro um “poema repentino”, dedicado “Às vítimas do 1º de janeiro”:
“Por terdes ido ver
“Como esta hidra liberal oprime,
“Mandaram vos prender
“Ou fuzilar
“É o crime pelo crime”.
8
O aumento no preço das passagens de bonde – o “imposto do vintém” – fora decretado pelo então ministro da Fazenda, o liberal Afonso Celso, o mesmo que seria, depois da revolta, agraciado pelo imperador com o título de “visconde de Ouro Preto” – e, com esse título, passaria à História do Brasil como o chefe do último e mais infeliz Ministério da monarquia, deposto a 15 de novembro de 1889.
Há muitas décadas tem-se repetido, a torto e a direito, e se elevado a fato histórico – e absoluto, como se fosse incontestável – a famosa frase de Holanda Cavalcanti, visconde de Albuquerque, segundo a qual “nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder“.
[NOTA: Os conservadores tinham o apelido de “saquaremas” devido à fazenda de um dos fundadores do partido, o visconde de Itaboraí, que se situava naquela localidade do Estado do Rio; já o apelido de “luzias”, dado aos liberais, tinha origem na cidade de Santa Luzia, em Minas Gerais, um dos focos da revolta liberal de 1842, ocorrida após D. Pedro II, ao dissolver a Câmara, ter, na prática, anulado a vitória do Partido Liberal na eleição de 1840 – conhecida como “eleição do cacete“, por razões óbvias.]
No entanto, a frase do visconde de Albuquerque mais parece uma lamentação por algumas iniciativas de governos conservadores do que a descrição de um fato. Os conservadores mostraram-se, em primeiro lugar, mais independentes em relação à Inglaterra que os liberais. É verdade, como notou Nelson Werneck Sodré, que essa maior independência assentava na contradição entre os fazendeiros escravagistas e as pressões inglesas – aliás, muito interessadas e interesseiras – pela supressão do tráfico de escravos. Ou seja, tinha como base a dependência desses fazendeiros do escravagismo (v. Nelson Werneck Sodré, “O Que Se Deve Ler Para Conhecer o Brasil“, 3ª ed., Civ. Bras., 1967, p. 173).
Mas talvez por não terem de provar nada mais ao seu eleitorado – ou, paradoxalmente, como escreveu Vicente Licínio Cardoso, por estar “extinta a missão histórica do partido conservador” – também as medidas abolicionistas foram, todas elas, tomadas por gabinetes conservadores: a proibição do tráfico de escravos foi durante o Ministério presidido pelo marquês de Monte Alegre, um conservador, e a lei foi elaborada pelo ministro da Justiça, outro conservador, Eusébio de Queirós; a lei que criminalizou o contrabando de escravos foi no Ministério do conservador marquês do Paraná; a lei do ventre livre foi no Ministério conservador de Rio Branco; a Lei dos Sexagenários – que não era apenas o que seu nome faz, erradamente, pensar, mas uma tentativa de extinção gradual, mas geral, do cativeiro – foi assinada durante o Ministério do barão de Cotegipe, outro conservador; e a Lei Áurea foi uma iniciativa do Ministério presidido pelo conservador João Alfredo.
É difícil, mas sempre possível, achar que o objetivo dessas leis (com exceção da última) era postergar a abolição da escravatura. A dificuldade consiste, exatamente, na última lei, a que aboliu a escravidão, e no fato de abolicionistas, como José do Patrocínio, considerarem os políticos liberais, de modo geral, mais distantes da causa abolicionista que os conservadores.
Porém, o que mais chama a atenção na trajetória dos partidos tradicionais do Império é, precisamente, a falência ideológica do Partido Liberal. Nesse sentido, a frase do visconde de Albuquerque é perfeitamente justa. A partir do Ministério Zacarias (1862), ainda sob a égide da “Liga Progressista”, os liberais traem, uma a uma, as suas bandeiras. A ponto da cúpula liberal perseguir membros e deputados de seu próprio partido que mantinham o ideário que estava em seu programa, como fez Zacarias de Góis e Vasconcelos, com crueldade fora do comum, em relação a Mauá, deputado liberal pelo Rio Grande do Sul.
Estranhamente – e insistimos na questão porque é significativa – foram Caxias e Rio Branco, dois conservadores, que mostraram mais compreensão com a obra, e a figura, de Mauá.
Não temos, aqui, como aprofundar a questão dos partidos no Império. Estamos de acordo com Vicente Licínio Cardoso e Gilberto Amado em que, na vida política do segundo reinado, “mais influente do que o peso do trono, a resistência da lei, ou a força demolidora do discurso, influiu um elemento anônimo, orgânico, imprescindível: o escravo” (Vicente Licínio Cardoso, “À Margem da História do Brasil“, 2ª ed., CEN, 1938, p. 135, itálico no original).
Mas isso não quer dizer que não tenhamos de compreender em termos políticos a própria vida política da época – isto é, como se traduziam politicamente os interesses econômicos.
ALIENAÇÃO
A justificativa do imposto sobre as passagens de bonde – repetida até hoje em trabalhos acadêmicos – seria a cobertura das despesas com a seca do Nordeste. Basta apenas olhar um quadro da dívida interna e, sobretudo, externa, do Império para perceber que o problema é bem outro: entre 1865 e 1879, o serviço da dívida externa – isto é, os juros pagos pelo império aos Rotschilds –, considerados em contos de réis, quadruplicaram. Ao mesmo tempo, o serviço da dívida interna quintuplicou (cf. Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho e Otavio Ladeira de Medeiros, “Dívida Pública: a experiência brasileira“, Tesouro Nacional/Banco Mundial, Brasília, 2009, p. 39-40; o quadro anual da dívida pública externa em libras esterlinas para o período 1824-1889 está no anexo estatístico desse trabalho, p. 470-471).
A monarquia estava, em 1879, à beira da bancarrota – e sem nenhuma política para enfrentar o problema, exceto a mera pilhagem sobre o povo, o que era uma consequência da dependência ideológica e econômica, sobretudo em relação à Inglaterra.
Por isso, Afonso Celso, considerado um tremendo especialista em finanças públicas, justificara o aumento como essencial para o equilíbrio orçamentário, isto é, para combater o déficit público. Como alguns de seus sucessores no cargo, ele era apenas um troglodita enfatuado – sempre disposto a fazer recair os resultados da estúpida política antinacional sobre os mais pobres. Por justiça, é forçoso observar que o presidente do Conselho, visconde de Sinimbu, se opôs à cobrança do imposto da população:
“O ministro da Fazenda tratou de fazer a regulamentação para a cobrança do novo imposto, que deveria ser feita diretamente da população. Para as passagens de bondes foi criada a taxa de vinte réis, paga pelo passageiro com a passagem respectiva. Em conselho de ministros, o presidente do gabinete manifestou-se contrário à maneira da arrecadação do imposto, sugerindo uma forma mais razoável, por ser menos antipática, a de que o imposto recaísse sobre as companhias e empresas de viação de qualquer natureza. A essa sugestão opôs-se o ministro da Fazenda, por entender que não era justo recair o imposto sobre a receita das companhias, quando devia o pagamento da taxa sair do bolso do público, sobretudo atendendo à circunstância de que não seriam aumentados os preços das passagens [para as companhias]. (…) Afonso Celso insistiu no seu ponto de vista, fazendo questão fechada da maneira, da arrecadação da taxa como ele a desejava. O ministério estava visivelmente enfraquecido pela atitude do Senado e pela campanha de impopularidade levantada pela dissidência liberal, pelos conservadores e pelos republicanos. (…) Afonso Celso chegara a falar em abandonar a pasta, caso não fosse aceito o alvitre. Sinimbu cedeu (…). Inflexível nos seus propósitos, o ministro da Fazenda mandou dar começo à cobrança no dia 1° de janeiro de 1880” (cf. Craveiro Costa, “O Visconde de Sinimbu: sua vida e sua atuação na política nacional”, CEN, 1937, p. 294-295).
Sobre a atitude de D. Pedro II, ele realmente não parece ter, nem de longe, chegado à conclusão de que a “revolta do vintém” marcava uma virada política na população.
Em meio ao levante, quando, no dia dois de janeiro, foi até o Colégio Pedro II, recebeu pessoalmente o desagrado da população. E ficou, prudentemente, calado. A partir daí, ele seria, na visão e nas canções populares, o “Pedro Banana”, que já nem governava o país.
O que não quer dizer que isso fosse um fato – mas, pelo menos na representação que as parcelas mais mobilizadas do povo faziam do poder, Pedro II já fora, para todos os efeitos, deposto. Faltava apenas quem aparecesse para substituí-lo.
No dia seguinte à sua ida ao Colégio que tinha (e ainda tem) o seu nome, o imperador escreveu ao conde de Gobineau, ideólogo racista de quem se tornara amigo, desde que o francês fora representante diplomático no Brasil:
“Tendes lido notícias do Rio? Esses acontecimentos afligem-me profundamente. É esta a primeira vez que isto sucede no Rio desde 1840. Há quase 40 anos que aqui presido o Governo sem que jamais fosse preciso atirar contra o povo. Felizmente, parece que tudo volta ao seu estado normal” (cf. “D. Pedro II e o Conde de Gobineau – correspondências inéditas“, org. George Raeders, CEN, 1930, p. 319).
Essa mesma carta, de 3 de janeiro de 1880, com uma tradução ligeiramente diferente – na penúltima frase não existe a palavra “jamais” ou equivalente (“Há quase quarenta anos que aqui presido o Governo sem que tivesse sido necessário atirar sobre o povo“), o que muda o seu sentido – foi publicada, com base no manuscrito existente no arquivo da Biblioteca de Estrasburgo, por Heitor Lyra, historiador favorável à monarquia (cf. “História de Dom Pedro II 1825-1891, Volume 2º, Fastígio 1870-1889“, CEN, 1939, p. 459).
Trata-se de algo importante – tanto assim que, até hoje, está em disputa: qual a atitude do imperador, diante da Revolta do Vintém?
Apesar de seus defensores o apresentarem como consternado diante dos acontecimentos, Pedro II escreveu à sua confidente de sempre, a condessa de Barral: “… mas que remédio. A lei deve ser respeitada. Creio que houve prudência da parte das autoridades”.
EXECUÇÃO
A Revolta do Vintém provocou a queda do Ministério, com uma característica notável: seu principal líder fora um republicano, Lopes Trovão – da mesma forma que os outros líderes, entre os quais, José do Patrocínio.
O sr. Laurentino Gomes ignora o papel-chave da Revolta do Vintém na queda da monarquia – ou seja, na República. Certamente, considerá-la enquanto acontecimento histórico, deixaria exposto o preconceito quanto à participação do povo no surgimento da República. Mas, ao não considerá-la, expôs muito bem como são certas “defesas da participação popular”. Sempre, elas se referem a um povo que não existe. Afinal, por que aqueles negros, mulatos e brancos de baixa extração, provavelmente cheirando a suor, que tomaram a capital do Império durante dias, deveriam ser levados em consideração?
Quanto a outro episódio referido por Capistrano de Abreu como sinal de que a monarquia estava à beira da cova, o sr. Laurentino passa a ideia de que Apulcro de Castro era um “jornalista”, vítima da intolerância antidemocrática dos militares. Mas não é verdade que o assassinato desse difamador fosse porque “criticou o mau uso do recrutamento militar para fins políticos e atacou o comportamento de oficiais do 1º Regimento de Cavalaria da Corte” (cf. Laurentino Gomes, “1889“, Ed. Globo, 2013, p. 180).
O que esse Apulcro escrevia e publicava nada tinha a ver com crítica, ou, mesmo, ataque ao comportamento, mas com a calúnia da vida pessoal. Era um doente e comerciante do escândalo – notável apenas pela falta de limite. Realmente, seus executores não foram punidos, mas isso tem pouco a ver com algum “esprit de corps” especifico do Exército: ninguém, no Rio, lamentou essa morte. Um contemporâneo, favorável à monarquia, o alemão Carl von Koseritz, na época no Rio de Janeiro, anotou: “O morto se chamava Apulcro de Castro e era proprietário e redator do famoso Corsário, este pasquim que desde há muito servia o Rio de Janeiro como repositório de escândalos. Foi o último ato desta história escandalosa, terminada tragicamente“. (cf. Carl von Koseritz, Imagens do Brasil, Martins, 1943, p. 234).
Koseritz escreve que, dias após a morte de Apulcro, “ao cair do crepúsculo, grandes quantidades de capoeiras e semelhantes ‘indivíduos catilinários’ se reuniram na praça de São Francisco e começaram, ali e na rua do Ouvidor, a apagar os bicos de gás, e, logicamente, a destruir os lampiões, enquanto gritavam alto e bom som ‘Viva a Revolução’”. E depois: “o Rio tem nos seus capoeiras um mau exemplo e deles se aproveita a propaganda revolucionária dos abolicionistas, sublevando os homens de cor pela morte do negro Apulcro“.
Apulcro, realmente, era mulato. Mas essa ligação com os abolicionistas – e com as camadas mais pobres da capital do Império – parece algo fantasiosa, não fosse o autor do texto um defensor da monarquia. Também não pudemos comprovar tais vínculos a partir da coleção de “O Corsário” na Hemeroteca Digital Brasileira. Nem há menção disso no Relatório do Chefe de Polícia da Corte, que relata o caso. Somente se diz, com a cabeça típica de um chefe de polícia do Império, que:
“O assassinato de Apulcro de Castro, redator da folha “O Corsário”, agravado pela circunstância de ter sido praticado nas imediações da polícia, de onde, havia momentos, saíra o infeliz, acompanhado e protegido por um oficial militar, que exercia junto do ajudante general do exército comissão importante, fora ocasião para que a turbulência, sempre à espreita do ensejo para desenfrear-se, se lançasse na praça pública, derramando o susto e o terror. Havia três dias que a multidão tumultuosa, no largo de S. Francisco e rua do Ouvidor, exercitava suas tropelias e violências”.
Depois de relatar que tomara as providências devidas, com o que as cadeias “regurgitavam de detidos“, ele opina que “os turbulentos, embora infundadamente, alegassem queixas”, tinham “apenas o detestável propósito de fazerem desordem só pela desordem, vícios latentes em certa camada, predispondo-a a explosões, logo que se lhe ofereça oportunidade. É o que se observa de há alguns anos a esta parte” (cf. “Relatório do Chefe de Polícia da Corte”, 1884, p. 3, 4 e 5, anexo ao “Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na quarta sessão da décima oitava legislatura pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça, Conselheiro Francisco Prisco de Souza Paraíso”, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1884).
Em suma, a população estava à beira da explosão. Mas não se menciona nada em relação aos abolicionistas. O fato é que nenhum abolicionista – e, de resto, ninguém no Rio – pranteou Apulcro, o que não quer dizer que fosse justa a atitude dos que o mataram.
Euclides da Cunha, que era abolicionista e republicano, e não aprovou a execução, sintetizou o acontecimento em sua obra maior, ao traçar o perfil do coronel Moreira César:
“Foi em 1884, no Rio de Janeiro. Um jornalista, ou melhor, um alucinado, criara, agindo libérrimo graças à frouxidão das leis repressivas, escândalo permanente de insultos intoleráveis na Corte do antigo império; e tendo respingado sobre o exército parte das alusões indecorosas, que por igual abrangiam todas as classes, do último cidadão ao monarca, foi infelizmente resolvido por alguns oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e desesperadora do linchamento” (Euclides da Cunha, “Os Sertões – Campanha de Canudos“, 3ª edição, Laemmert & C., 1905, p. 297-298).
Aliás, deveria servir de advertência aos revisionistas, nesta questão, o nome do jornal que Apulcro de Castro publicava e editava: “O Corsário”, que levava como subtítulo “órgão de moralização social”.
9
Capistrano de Abreu sintetiza o caminho até a Abolição – e, depois, até a República – do seguinte modo:
“Em 71, Paranhos arrancara do poder legislativo a liberdade dos nascituros; em 84, ao passo que o Ceará e o Amazonas se libertavam, Dantas vem pugnar na conquista da liberdade dos sexagenários; em 85, obtinham-na, dada de má vontade e sofismada, Saraiva, Antônio Prado e Cotegipe. Julgava este que nada mais havia a fazer, e que à morte, à munificência particular, ao fundo de emancipação, competiam a última palavra. Entraram, então, em cena os escravos, por êxodos consideráveis das fazendas, e tal eficácia alcançou sua atitude resoluta que aboliram a escravidão em menos de uma semana, sem resistência, e, o que mais é, mesmo sem obstrução, como quem se aliviava de um pesadelo” (cf. Capistrano de Abreu, “Ensaios e Estudos (Crítica e História) 3ª série”, Briguiet, 1938, p. 141-142).
Essa revolta dos escravos, na qual tomaram parte abolicionistas como Antonio Bento – talvez a figura mais injustiçada, até hoje, pela historiografia da Abolição, provavelmente porque, quase 130 anos após o 13 de maio, a mídia ainda o acha um mau exemplo, não fosse ele branco, juiz, membro do Partido Conservador e organizador, em São Paulo, da insubmissão dos negros – foi decisiva para romper a resistência escravista no parlamento. Uma excelente e sucinta descrição da hegemonia escravagista na Câmara e no Senado, até às vésperas do 13 de maio, é a de Heitor Lyra, no terceiro volume de sua biografia de Pedro II (v. Heitor Lyra, “História de Dom Pedro II”, 3º vol., CEN, 1940, p. 41 e segs).
Prossegue Capistrano:
“Ano e meio depois caía a monarquia; só um homem expunha por ela a vida e derramava o sangue, o barão de Ladário que, aliás, se dizia republicano; e de um a outro extremo do império, foi aceita a forma republicana sem protestos que não fossem platônicos. Neste ponto e também em outros, 15 de novembro assemelha-se um tanto a 7 de setembro: em ambos houve um levante local que se generalizou, combateram a instituição os que a juraram defender; e se Deodoro da Fonseca era marechal do exército imperial, convém não esquecer que D. Pedro era príncipe regente, como tal deu ordens, fez-se obedecer, e assegurou-se até 12 de outubro de 22, quando foi aclamado imperador” (obr. cit., p. 141-142).
Capistrano – que, além de um dos maiores, senão o maior historiador brasileiro da época, foi um contemporâneo dos acontecimentos de 15 de novembro de 1889 – coloca o acento no lugar correto: ao invés de sacudir na cara do leitor uma suposta ausência de fantasiosas “participações populares” (sempre fantasiadas com a intenção de negar a verdadeira participação popular), demonstra que ninguém no país, exceto “platonicamente”, protestou pela queda da monarquia. Na época, era um tal consenso que o país não podia continuar eternamente estagnado, que os monarquistas levaram três ou quatro anos para tentar uma restauração – quando a República enfrentou dificuldades, políticas e econômicas, que pareciam insolúveis a muitos dos partidários do antigo regime.
A morte solitária do antigo prócer liberal Gaspar da Silveira Martins, em 1901, num quarto de hotel em Montevidéu, com uma prostituta por companhia, seria a condensação simbólica do fim de qualquer pretensão monárquica. Não faltava dinheiro a Martins – mas, aos 66 anos, faltava-lhe alguma razão para viver, depois de uma carreira com o objetivo de chegar à supremacia no império.
O sr. Laurentino Gomes cita uma frase de Silveira Martins (“amo mais minha pátria do que o negro”), com base em Décio Freitas – um autor respeitável quanto à história da escravidão, mas que, no que se refere à história do Rio Grande do Sul, é um repetidor dos preconceitos sobre Júlio de Castilhos.
Já foi dito que o ensaio de Freitas sobre Castilhos – “O homem que inventou a ditadura no Brasil” – é uma obra de ficção. Antes fosse só isso. O historiador gaúcho Mário Maestri está, em nossa opinião, inteiramente certo quando, em 2003, apontou:
“A incessante campanha contra o castilhismo-borgismo dos últimos anos assume claro caráter liberal-conservador. Esse movimento desenvolve-se sobretudo através da apologia dos grandes líderes federalistas e libertadores – Gaspar Silveira Martins, Gumercindo Saraiva, Assis Brasil, etc. – e da execração dos próceres republicanos – Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, etc. São claras as razões dessa operação ideológica, que tem exemplo excelente no ensaio de Décio Freitas sobre Júlio de Castilhos – O homem que inventou a ditadura no Brasil.
(…)
“A defesa das velhas lideranças liberais-latifundiárias da República Velha e a critiquice incondicional do castilhismo-borgismo não são operação cultural inocente. Ao contrário, constituem execração do direito e da obrigação do Estado de intervir em favor do desenvolvimento social e da apologia indireta das propostas neoliberais de internacionalização da economia e da sociedade” (Mário Maestri, “A Segunda Morte de Júlio Castilhos“, Espaço Acadêmico nº 30, novembro/2003).
LIBERDADE
O historiador Heitor Lyra, simpático à monarquia, cita a mesma frase – e tem razão ao dizer:
“Silveira Martins (…) dizia amar mais a pátria do que o Negro, para justificar sua oposição às medidas emancipadoras do Governo, esquecido de que o problema da liberdade dos escravos, deixado sem solução, acabaria por arruinar essa pátria que ele dizia tanto idolatrar” (cf. Heitor Lyra, obr. cit., p. 43).
Era típico de Silveira Martins ignorar que a pátria é, antes de tudo, quem a construiu, com seu trabalho. Mas a pátria de Silveira Martins não era o Brasil – pelo menos não o Brasil real, que substituía por uma deprimente projeção de si mesmo.
Hoje, em alguns trabalhos acadêmicos, Silveira Martins foi promovido a “abolicionista”. Em outros – às vezes, no mesmo – diz-se que sua posição sobre a escravidão foi adotada por Júlio de Castilhos.
São duas asnices.
Martins seria um abolicionista sui generis: alguém que, ao explicar, na Câmara, sua renúncia ao Ministério da Fazenda (por ter o governo recusado o direito de voto para os não-católicos, que se concentravam, nessa época, no Rio Grande do Sul) afirmou:
“Eu compreendo que haja ideias justas, mas inoportunas. Não há nada mais justo do que a emancipação dos escravos, porém, senhores, quem se atreverá a decretar de chofre uma medida, que vai de encontro à vida da nossa pátria, que será a morte da lavoura e da indústria, o esfacelamento, a destruição e a ruína deste vasto império? Diante da primeira das conveniências de uma nação, a de conservar-se, pode-se dizer que essa medida de alta justiça não pode infelizmente realizar-se já” (cf. “Annaes da Camara”, 1879, sessão de 10/02/1879, p. 419).
Em suma, nada havia mais justo que a abolição da escravatura, contanto que a escravatura não fosse abolida…
A diferença para a posição do líder republicano Júlio de Castilhos, futuro maior adversário de Martins, é radical – não fosse Castilhos um dos discípulos de Luiz Gama.
Quando estudante em São Paulo, Castilhos foi um dos fundadores do Centro Abolicionista, com Gama, Raul Pompeia, Antonio Bento, Alberto Torres e outros, reunidos pelo grande abolicionista negro (v. Clóvis Moura, “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, Edusp, 2004, p. 73).
Júlio de Castilhos foi também um dos membros da sociedade secreta dos “caifazes”, liderada por Bento, que organizava a libertação de escravos das fazendas e os abrigava longe dos senhores, feitores e capitães-do-mato (v. Emília Viotti da Costa, “Da Senzala à Colônia“, Ed. UNESP, 1998, p. 491).
De volta ao Rio Grande do Sul, Castilhos escreveu, em um dos primeiros números do jornal que fundou, “A Federação”:
“Temos externado muitas vezes a nossa opinião franca sobre a escravidão. Somos partidários da abolição imediata. Entendemos que decretá-la é um dever imposto pela dignidade nacional, que não pode ser mais maculada do que é pela aviltante instituição. Só por esta forma pode ser reparado o nefando crime do passado. (…) libertação sem indenização, porque não há, perante o direito, posse do homem sobre o homem” (Júlio de Castilhos, “A opinião do governo”, publicado em “A Federação”, 05/08/1884, in “Pensamento Político de Júlio de Castilhos”, Martins Livreiro Ed., Porto Alegre, 2003, p. 16)
GENERAL
O sr. Laurentino Gomes repete – citando Hélio Silva – a história de que a inimizade entre Deodoro e Silveira Martins teve origem na disputa por uma dama (cf. Laurentino Gomes, obr. cit, p. 192).
Se essa história é verdadeira – ou não – realmente não sabemos. Porém, mesmo que tenha acontecido, não foi o que determinou que Deodoro detestasse Martins. É suficiente ler as intervenções de Silveira Martins no Senado – por exemplo, seus apartes ao senador Junqueira Júnior, quando este comentava as palavras do visconde de Pelotas, ministro da Guerra, na sessão de 11 de Agosto de 1880 – para perceber a posição hostil e arrogante de Martins em relação ao Exército.
Junqueira Júnior também fora ministro da Guerra (1872-1875), conhecia bem os assuntos de sua antiga pasta – e respeitava o titular de então, o visconde de Pelotas (que, na República, seria chamado pelo posto e sobrenome: marechal Câmara), herói da Guerra do Paraguai, participante, sob as ordens de Caxias, da “dezembrada” – a ofensiva que levou à entrada em Assunção – e comandante das tropas brasileiras na última operação daquela guerra (a batalha de Cerro Corá, onde morreu Solano López).
Enquanto isso, Silveira Martins berrava (ele não sabia falar de outro jeito, embora não fosse surdo) pela volta dos castigos corporais no Exército (“Se continuar o exército como está, não há outro remédio”) e proferia insultos (“não existe um batalhão que preste”) às tropas (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1880, Vol. V, p. 177-178).
Pode-se imaginar o que Deodoro, ainda mais sendo ligado ao Partido Conservador, achava disso. Sobretudo depois que, em 1886, fora governador do Rio Grande do Sul, com a feroz oposição de Martins.
Bem antes disso, em 1875, quando deputado, o discurso de Silveira Martins sobre o segundo Ministério Caxias, apesar de embrulhado em elogios formais ao presidente do Conselho – provavelmente, a figura mais popular do país, sobretudo no Rio Grande do Sul – foi, essencialmente, desrespeitoso:
“O nobre duque, presidente do conselho é um homem de guerra, carregado de serviços à pátria, é verdade, mas alcançado em anos, afastado da política ativa, e impróprio para as discussões que se agitam neste momento” (o discurso de Martins foi publicado por Cesário Alvim – que, na República, seria ministro do Interior e governador de Minas Gerais – junto com outro discurso, este de Zacarias de Góis e Vasconcelos, na época, chefe da oposição liberal: v. Cesario Alvim, “Discursos Parlamentares”, Typographia da Reforma, 1876, p. 29).
Caxias estava com 72 anos quando voltou a presidir o Conselho de Ministros. Em seis meses, conseguiu resolver o principal problema político do Império naquele momento, a chamada “questão religiosa” – no que mostrou mais competência que o visconde do Rio Branco.
São importantes os comentários de José Honório Rodrigues, na edição das atas do Conselho de Estado, publicadas pelo Senado:
“Caído o Gabinete [do visconde do Rio Branco], talvez em parte pelo desgaste sofrido com a questão religiosa, sobe ao poder a mesma situação conservadora, mas vinha na presidência o homem a quem sempre recorria o Imperador nas horas difíceis. (…).
“Ele [Caxias] fora sempre assim, defensor extremo da lei, combatente leal, impondo sua vitória ao adversário, mas, como bom brasileiro, reconhecendo neste outro também um brasileiro, e por isso, sempre generoso na vitória, clemente com o vencido, igualando todos, vencedores e vencidos, numa lição memorável que perdura sempre.
“Assim, aos 17 de dezembro de 1875 – ele subira ao Poder aos 25 de junho –, seis meses depois, concede anistia aos Bispos, governadores e outros eclesiásticos que se achavam envolvidos no conflito religioso, e ordena que fiquem ‘em perpétuo silêncio os processos que por esse motivo tenham sido instaurados’.” (Senado Federal, “Atas do Conselho de Estado do Império, vol. 10, 1875-1880“, grifo no original).
Caxias, assim como Rio Branco, era maçom. Os bispos estavam presos por perseguir a maçonaria, considerada pelo Império “uma sociedade beneficente, permitida pelo Estado”, aplicando uma bula papal que não recebera aprovação do imperador – tal como determinava o regime de “padroado”, pois o Estado, no Império, não era separado da Igreja Católica Apostólica Romana. Como era a religião oficial do estado, as decisões do papa somente valiam depois da aprovação do monarca. Somente em 1890, já na República, esse sistema seria abolido (v. João Dornas Filho, “O Padroado e a Igreja Brasileira”, CEN, 1938).
Certamente, era inútil esperar que Silveira Martins reconhecesse os méritos políticos de Caxias. Originário daquele grupo de fazendeiros que provocaram a intervenção no Uruguai – ele mesmo nascera naquele país – era uma espécie de Carlos Lacerda do Império, embora bem mais fracassado (ou, talvez, nem tanto, considerando o fim de Lacerda; mas isso é muito difícil de medir).
A ÉPOCA
Alguns autores levantaram o descompromisso de Martins com a monarquia, que aparece em alguns pronunciamentos seus, como algo a seu favor. É verdade que – ao contrário de seu adversário, Júlio de Castilhos – ele só tinha compromisso com a imagem que fazia de si próprio. Mas a perseguição que desatou aos republicanos, após ser nomeado para o governo do Rio Grande do Sul, no início de 1889, mostra que sua ligação com a monarquia não era tênue (um bom resumo do “proconsulado” de Martins no Rio Grande do Sul é o de Sérgio da Costa Franco em “Júlio de Castilhos e Sua Época”, ed. Globo, Porto Alegre, 1967, pp. 19, 39 e 56; sobre a ação de Silveira Martins no banho de sangue “federalista”, pp. 153 e segs. Este é, provavelmente, o melhor livro sobre a transição para a República no Rio Grande do Sul).
Muito antes de ser nomeado pelo visconde de Ouro Preto para o governo provincial, Silveira Martins já era um adepto da violência contra os republicanos:
“Não podia ser mais infeliz do que foi a forma pela qual o Sr. Conselheiro Gaspar Silveira Martins invectivou o partido republicano. De envolta com as acres censuras dirigidas ao governo de Sua Majestade por não reprimir energicamente a propaganda republicana, sua excelência sustentou a incompatibilidade dos republicanos com as funções públicas e aconselhou a demissão daqueles que as exercem” (Júlio de Castilhos, obr. cit., 27/04/1885, p. 30-31).
O imperador não seguiu o conselho de Martins – e todo o artigo de Castilhos é sobre o fracasso e inépcia política do chefe liberal, encerrando com a inclusão de Silveira Martins entre os “homens que na sua vida pública não têm um objetivo certo e determinado, não têm orientação segura, não são moralmente sinceros”.
Castilhos tinha razão – mas era, assim mesmo, um otimista.
Ninguém se debateu tão histericamente contra a República, e, portanto, pela volta da monarquia – a ponto de espinafrar a princesa Isabel por suposta vacilação – do que Silveira Martins. Ele somente enxergava as pessoas – e, mais ainda, o povo – sob o ângulo da submissão. De algum modo, embora não fosse difícil, sentiu que a República não era um terreno favorável às suas pretensões. Logo ele, que havia se preparado durante tantos anos…
10
Há umas três décadas, a História Política tornou-se maldição nos livros que, nas escolas, obrigam (ou não obrigam) as crianças e jovens a ler. Os seres humanos com nome e sobrenome quase deixaram de existir nessa literatura compulsória – primeiro, substituídos por forças sociais ou econômicas; depois, por um “culturalismo” tão pobre quando o pseudo-marxismo anterior. O fato de que forças (ou relações) sociais, econômicas ou culturais são conceitos que sintetizam a ação dos seres humanos – e que, dentre estes, existem aqueles que condensam essas forças, assim como o ethos, a coletividade, inclusive a nacionalidade e a Humanidade – é de difícil compreensão para essa mentalidade.
Para quem foi educado – como é o nosso caso, ou, melhor, o meu caso – com a leitura da “História do Brasil” de Accioly e Taunay, livro adotado pelo Colégio Pedro II na década de 60, esses livros que apareceram após a ditadura eram chatíssimos, e, via de regra, muito ignorantes.
O problema principal dessa “nova” literatura didática era (e é) a subestimação – em muitos livros, a anulação – da nacionalidade. Por isso, as figuras históricas – os homens e mulheres que condensaram a nacionalidade em seus vários momentos de construção – desapareceram desses livros.
Entretanto, não se constrói – ou se continua a construir – uma nacionalidade com abstrações ou conferindo a cada segmento dessa nacionalidade uma cultura ou história separada dos demais. Alguns chamaram “multiculturalismo” à essa última tendência. Melhor seria “aculturalismo”, pois, hoje, não existe história ou cultura fora das nações – e se estas estão oprimidas, inclusive culturalmente, pela forma atual do imperialismo (isso que se chama “neoliberalismo”), mais necessidade temos de ver a história e a cultura, inclusive em cada segmento da sociedade, pelo prisma nacional.
É verdade que, há alguns anos, vários historiadores têm procurado fechar essa brecha aberta na historiografia brasileira – já citamos o livro, sobre a Guerra do Paraguai, do professor Francisco Doratioto, “Maldita Guerra”.
A Guerra do Paraguai, aliás, é um dos exemplos mais agudos de aonde pode chegar o preconceito – e, portanto, a ignorância. Em 1981, ao expor a bibliografia sobre o tema, o historiador Manoel Maurício de Albuquerque escreveu, sobre a tentativa de Júlio José Chiavenatto (“Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai”) de rever esse episódio da história sul-americana: “deficiente documental e teoricamente e muito prejudicada pelo emocionalismo” (cf. Manoel Maurício de Albuquerque, “Pequena História da Formação Social Brasileira“, Graal, 1981, p. 414).
Apesar de marxista, perseguido pela ditadura e um dos mais notáveis professores e historiadores do país, Manoel Maurício, em sua advertência sobre o revisionismo de Chiavenatto, foi ignorado por décadas. Tornou-se lugar-comum nas universidades a versão revisionista, repetida ad nauseam – sem que fossem necessárias (ou solicitadas) provas -, segundo a qual o Brasil, a serviço da Inglaterra, perpetrou o mais bárbaro genocídio contra o Paraguai, devido ao suposto caráter progressista do regime de Solano López. Até que uma nova geração de historiadores – brasileiros e paraguaios – mostrou que o revisionismo era uma falsificação, sem base factual, ou, como advertira Manoel Maurício, documental e teórica.
(Sobre as origens do revisionismo historiográfico quanto à Guerra do Paraguai, v. Francisco Doratioto, obr. cit, p. 79-96; para o leitor interessado na história da guerra, v. também Alfredo da Mota Menezes, “Guerra do Paraguai: como construímos o conflito“, Ed. UFMT, 1998; entre os historiadores paraguaios, um livro importante é “Gran Bretaña y la Guerra de la Triple Alianza“, de Juan Carlos Herken Krauer e María Isabel Giménez de Herken – devo ao amigo e escritor Sérgio Cruz o conhecimento das duas últimas obras, e, aliás, a renovação do interesse pelo tema.)
ALENCAR
Voltemos, agora, para a nossa história cultural, sujeita a uma falsificação semelhante.
Sobre o trecho do livro do sr. Gomes que citamos na sexta parte deste artigo (v. HP, 30/01/2015), dizer que a obra de Carlos Gomes – e também a de Vítor Meirelles ou Pedro Américo – nada tem a ver com o Brasil é tão falso quanto colocar José de Alencar numa frase antecedida de outra em que se diz: “Os artistas enviados para a Europa [por D. Pedro II]…”.
No mínimo, esse modo de escrever anula ou apaga a figura de Alencar, escritor decisivo de nossa literatura, que mal suportava Pedro II desde, pelo menos, 1856, quando ambos polemizaram pelos jornais sobre “A Confederação dos Tamoios”, poema de Gonçalves de Magalhães que o imperador pretendia elevar à epopeia nacional (dizem que o encomendou).
Uma aversão que era recíproca: a posterior vinda ao Brasil do escritor português José Feliciano de Castilho é atribuída a um convite de D. Pedro II, com o objetivo de combater a influência de Alencar na literatura brasileira (v. Lúcia Miguel-Pereira, “Machado de Assis – Estudo crítico e biográfico“, CEN, São Paulo, 1936, p. 120).
O imperador fez de Feliciano de Castilho “conselheiro” (o título de nobreza inicial, na monarquia brasileira) e não há dúvida que sustentava o jornal “Questões do Dia”, dirigido pelo escritor português (sob o pseudônimo de “Lucio Quinto Cincinnato”) e veículo de seus ataques ao escritor de “Iracema” (e também dos ataques de Franklin Távora, que julgava-se um rival cearense de Alencar).
Com sua irritação – bastante justificada – contra o imperador e sua propensão a entrar em polêmicas, José de Alencar é o principal alvo dessa parte do livro do sr. Gomes. Mais adiante, examinaremos o anti-abolicionismo, o suposto e o real, de Alencar. Antes, é necessário ver o seu papel na constituição de uma cultura nacional.
Comecemos por essa última polêmica – entre Alencar, de um lado, e Castilho e Távora, do outro – ocorrida em 1872, 16 anos depois da primeira, sobre “A Confederação dos Tamoios”.
Alencar é, provavelmente, o escritor brasileiro mais difamado de nossa história literária – e difamado por suas qualidades, não por seus defeitos, que, sem dúvida, ele os tinha. A tal ponto que qualquer mediocridade, sem ter a menor ideia do que são seus romances ou do que representam em nossa história literária, acha que tem direito e espaço para falar em “romances açucarados de José de Alencar” (cf. Laurentino Gomes, obr. cit., p. 103).
Por isso, somos obrigados a expor mais extensamente a posição daquele que foi, com Gonçalves Dias, o fundador da literatura brasileira – no mesmo sentido em que Pushkin e Gogol foram os fundadores da literatura russa: nossa literatura não seria sustentável, enquanto literatura nacional, com Macedo e Gonçalves de Magalhães, para citar dois expoentes anteriores a Gonçalves Dias e Alencar. Estes foram os primeiros a escrever obras em um português que não era mais o português lusitano – e fizeram isso conscientemente. A influência de Alencar era, portanto, uma influência nacionalista.
Alguns acadêmicos apresentaram a polêmica de Alencar versus Castilho/Távora como se os últimos estivessem reivindicando o realismo contra o romantismo do primeiro. Mas nada nessa polêmica autoriza a essa conclusão – ou na vida de José Feliciano de Castilho, irmão de Antonio Feliciano de Castilho, o ultra-romântico que foi mandachuva na vida literária de Portugal até que, em 1865, tentou massacrar literariamente os jovens escritores da futura “geração de 70” (entre eles, Antero de Quental e Eça de Queirós), mais afeitos ao realismo, na chamada Questão Coimbrã.
Da parte de Castilho e Távora, a polêmica é meramente insultuosa – daí o apelido que Alencar pespegou em Castilho (“gralha imunda”).
Pode ser acrescentado que boa parte dos méritos do romancista José de Alencar está naquilo que antecipou do realismo – desde muito jovem, como revelou em “Como e por que sou romancista“, ele era um leitor de Balzac. Aliás, a maior parte dos ataques à obra de Alencar no século XIX não foram por seu romantismo. Quase ao final da vida – que não foi longa – seria acusado pelo jovem Joaquim Nabuco de imoralidade, por causa de “Lucíola” (1862), romance em que a protagonista, uma prostituta, dança nua em cima de uma mesa.
A resposta de Alencar foi, no mínimo, perspicaz, considerando certo farisaísmo peculiar a Nabuco: “Qualquer destes próximos domingos [Nabuco escrevia aos domingos no jornal “O Globo”], o nosso beato folhetinista começa o artigo fazendo o pelo sinal. Este último folhetim tem cheiro de Quaresma” (cf. Lira Neto, “O Inimigo do Rei”, ed. Globo, 2006, p. 362, grifo no original).
Mas a cena de Lucíola bem poderia nada ter a ver com realismo, já que a literatura romântica está prenhe de “boas” prostitutas – que, claro, morrem no final do livro para poupar ao seu amado o constrangimento de não casar com elas ou para poupar às leitoras da época (os romances eram, no início, lidos principalmente por mulheres) o constrangimento de ver o herói casar com uma ex-prostituta.
No entanto, além da cena, o modo como Alencar prepara esse trecho está algo além do romantismo:
“Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade. Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo uma reticência, tremo! (…) A que se reduz por fim de contas a moral literária! Ao mesmo que a decência pública: a alguns pontos de mais ou de menos” (“Lucíola, um perfil de mulher”, Typ. Franceza de Frederico Arfvedson, Rio, 1862, p. 49-50, grifo no original).
A LITERATURA
Respondendo aos ataques de Castilho e Távora, escreveu José de Alencar:
“[no futuro] com certeza se não há de buscar o crítico literário, entre os abegões do bezerro de ouro, que passaram a vida a cevá-lo, e com isso cuidam lá no seu bestunto que se fizeram barões da imprensa.”
Referindo-se aos seus livros – tentavam pespegar-lhe o rótulo de escritor comercial, ao dizer que Alencar tinha uma “musa industrial” – bateu direto em Pedro II:
“Estes volumes são folhetins avulsos, histórias contadas ao correr da pena, sem cerimônia, nem pretensões, na intimidade com que trato o meu velho público, amigo de longos anos e leitor indulgente, que apesar de todas as intrigas que lhe andam a fazer de mim, tem seu fraco por estas sensaborias.
“A razão deste fraco, não é senão capricho; o povo, como os reis, estão no direito e uso de os ter. Estes fazem ministros de qualquer bípede, e já o houve, que fez senador um quadrúpede. Aquele não lhes fica a dever; e, se a história não mente, fez um rei de uma mulher, e chamou-o Maria Tereza.”
Maria Tereza da Áustria, única mulher governante entre os Habsburgos, era tetravó de Pedro II.
Mais à frente, diz Alencar:
“… Lá uns gênios em Portugal, compadecendo-se de nossa penúria, (…) decretaram que não temos, nem podemos ter literatura brasileira.
“… Resignemo-nos. Este grande império, a quem a Providência rasga infindos horizontes, é uma nação oca; não tem poesia nativa, nem perfume seu; há de contentar-se com a manjerona, apesar de ali estarem rescendendo na balsa a baunilha, o cacto e o sassafrás.
“Os oráculos de cá, esses querem que tenhamos uma literatura nossa; mas é aquela que existia em Portugal antes da descoberta do Brasil. Nosso português deve ser ainda mais cerrado, do que usam atualmente nossos irmãos de além-mar; e sobretudo cumpre erriçá-lo de hh e çç, para dar-lhe o aspecto de uma mata virgem.”
Oposto à mentalidade colonial, Alencar desenvolve seu conceito de literatura nacional:
“A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização.
“… a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.”
Avançando em relação a formulações anteriores, Alencar acrescenta, na definição do que é nacional, o elemento popular:
“… a poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, não já somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões da família.”
Porém, há um problema: qual, naquele momento (o texto de Alencar é de 1872), a relação da literatura brasileira com as outras literaturas? Dito de outra forma: como a cultura nacional poderia se desenvolver numa situação em que outras culturas nacionais já estavam formadas há muito?
“Os povos têm, na virilidade, um eu próprio, que resiste ao prurido da imitação; por isso na Europa, sem embargo da influência que sucessivamente exerceram algumas nações, destacam-se ali os caracteres bem acentuados de cada raça e de cada família.”
Antes que haja mal entendidos: “virilidade” é usado aqui no sentido, hoje pouco comum, de idade adulta. Em seguida, Alencar analisa o caso de povos que ainda não atingiram essa fase:
“Não assim os povos não feitos; estes tendem como a criança ao arremedo; copiam tudo, aceitam o bom e o mau, o belo e o ridículo, para formarem o amálgama indigesto, limo de que deve sair mais tarde uma individualidade robusta.
(…)
“.. tal é a nossa sociedade atualmente. Notam-se aí, através do gênio brasileiro, umas vezes embebendo-se dele, outras invadindo-o, traços de várias nacionalidades adventícias; é a inglesa, a italiana, a espanhola, a americana, porém especialmente a portuguesa e francesa, que todas flutuam, e a pouco e pouco vão diluindo-se para infundir-se n’alma da pátria adotiva, e formar a nova e grande nacionalidade brasileira.”
Aqui, a necessidade do realismo cruza com a afirmação de uma nova nacionalidade – com o que há de específico no Brasil havia tão pouco tempo independente:
“Como se há de tirar a fotografia desta sociedade, sem lhe copiar as feições? Querem os tais arqueólogos literários, que se deite sobre a realidade uma crosta de classicismo, como se faz com os monumentos e os quadros para dar-lhes o tom e o merecimento do antigo?
(…)
“Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo. Palavra que inventa a multidão, inovação que adota o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado: tudo isto lança o poeta no seu cadinho, para escoimá-lo das fezes que porventura lhe ficaram do chão onde esteve, e apurar o ouro fino.”
Um ano depois dessa polêmica, Alencar definirá o romance como “poema da vida real” – logo depois de frisar a influência, sobre ele, de Balzac e outros escritores franceses, em “Como e por que sou romancista” (1873). Mas, voltando a 1872:
“… ilustres e não ilustres representantes da crítica, não se constranjam. Censurem, piquem, ou calem-se, como lhes aprouver. Não alcançarão jamais que eu escreva neste meu Brasil coisa que pareça vinda em conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata.
(…)
“A manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. Assim acontece com os poucos livros realmente brasileiros: o paladar português sente neles um travo.
(…)
“O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?” (José de Alencar [Sênio], “Bênção Paterna” in “Sonhos D’Ouro“, tomo I, B.L. Garnier, Rio, 1872, p. V-XIX).
11
Quando José de Alencar enfrentou a literatura oficial de Gonçalves de Magalhães, tinha 27 anos e não publicara ainda “O Guarani” (1857) nem romance algum – o primeiro, “Cinco Minutos”, sairia naquele mesmo ano, 1856, em que ocorreu a polêmica sobre “A Confederação dos Tamoios”.
O imperador interveio na polêmica, sob o pseudônimo de “outro amigo do poeta”, depois do fracasso de Araújo Porto Alegre (que usara o pseudônimo “amigo do poeta”). Mas, depois que os textos de Alencar começaram a encontrar adeptos, a reputação literária de Gonçalves de Magalhães, até então imensa (ou, melhor, hipertrofiada), semelhante à história do rei que estava nu, foi volatizada.
Pedro II achou que era necessário convocar artilharia pesada contra o jovem Alencar. Melhor seria se ficasse quieto, até porque o jovem polemista era filho de um senador e padre que fora um dos principais líderes do movimento pela Maioridade, permitindo que ele assumisse o trono aos 14 anos – ao invés dos 18 anos determinados pelo artigo 121 da Constituição de 1824.
O imperador tentou fazer com que Gonçalves Dias (por sinal, o poeta brasileiro que Alencar, com toda razão, mais admirava) defendesse Magalhães – mas o grande Gonçalves Dias recusou a honra (“achei a versificação frouxa”, disse ele a D. Pedro II, sobre “A Confederação dos Tamoios”).
Pediu o mesmo a Francisco Adolfo de Varnhagen, o historiador oficial da corte, conhecido pelo aulicismo – que lhe valeu o título de visconde de Porto Seguro. Mas, dessa vez, Varnhagen nem desconversou para recusar, talvez porque visse em Gonçalves de Magalhães (depois agraciado com o título de visconde de Araguaia) um rival no favoritismo imperial. Ao que, com certeza, somava uma razão mais ideológica: Varnhagen detestava nossa herança indígena – e, mais ainda, o indianismo literário.
Como se trata, nada mais nada menos, do autor que é considerado o maior historiador brasileiro do século XIX – com apenas um rival: João Francisco Lisboa – o problema merece ser melhor exposto. A distância entre a historiografia e a História sempre é uma boa amostra (ou mais que isso) da ideologia de uma sociedade. Mas não existe ideologia sem luta ideológica. Em um país recém-separado da metrópole, a luta sobre o papel dos índios na constituição da nacionalidade foi a forma que assumiu, em determinado momento, a luta por qual país era necessário construir: se uma nação ou um arremedo colonial.
A posição de Varnhagen sobre os índios, e também sobre o indianismo, era clara, desde que, em 1850, publicara “Florilégio da Poesia Brasileira”, no qual incluíra o “Ensaio sobre as letras no Brasil”. Dizia ele, nesse texto:
“Não será um engano, por exemplo, querer produzir efeito e ostentar patriotismo, exaltando as ações de uma caterva de canibais que vinha assaltar uma colônia de nossos antepassados só para os devorar?” (Varnhagen, “Ensaio sobre as letras no Brazil” in “Florilegio da Poesia Brazileira“, Tomo I, 1850, Imprensa Nacional, Lisboa, p. XVI).
Em 1852, ele proferiu a conferência “Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil?“, na Academia de História de Madri. Com certeza, o imperador, que presidia as sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), conhecia essa conferência, em que Varnhagen, também membro do IHGB, diz:
“Porventura aspiramos nós a ser selvagens? Ou a render culto e vassalagem aos asquerosos sacrifícios da antropofagia? (…) devemos fazer proceder a nacionalidade nossa da civilização e do cristianismo, inoculados nesta terra por uma das nações mais heróicas da Europa de há três séculos e meio, cuja língua falamos (…). Não, a nacionalidade brasileira atual e futura não é neta da antropofagia que a raça tupi havia trazido à nossa terra“.
O texto dessa conferência, com alterações de tom – mas sem mudança de essência – foi, depois, transformado no “Discurso Preliminar – Os índios perante a nacionalidade brasileira“, publicado no segundo tomo da “História Geral do Brasil” de Varnhagen, aparecido em 1857. Alguns trechos:
“Nem sequer mereciam o nome de bárbaros: eram selvagens, com o que explicamos a condição social a que os filólogos, independentemente da significação etimológica, aplicam essa palavra. Mantinham a antropofagia: desfiguravam-se horrivelmente, esburacando a cara: andavam geralmente nus; experimentavam toda a sorte de privações, passando até por vezes fomes, por excesso de imprevidência; não castigavam vícios, nem premiavam virtudes; ou antes não reconheciam estas nem àqueles. Tratavam as mulheres como escravas: e eram viciosos contra naturam. (…) Se percorremos o sagrado texto, foi nesse regime de tribo que o inocente Abel pereceu vítima da inveja do irmão, que o velho Noé se viu escarnecido pela família, e que as filhas de Lot pecaram incestuosamente. (…) Não hesitamos em asseverar que sem o emprego da força não era, nem é possível reduzir os selvagens; assim como não poderia haver sociedade sem castigos para os delinquentes. (…) Em primeiro lugar cumpre dizer que o selvagem cercado de outros selvagens, por quem teme ser devorado, como ele os devoraria se pudesse, não compreende a princípio que ninguém o busque só para lhe fazer bem” (Historia Geral do Brazil T. 2, Laemmert, 1857, p. XVII-XX).
O que determina a posição de Varnhagen, entretanto, não são os seus rasgos moralistas ou carolas, nem algum respeito extraordinário aos fatos, mas a sua posição política, em um país que estava, com grande esforço, se constituindo Nação. Por exemplo, diz ele no prefácio desse segundo tomo do seu principal livro:
“Oxalá os leitores façam a devida justiça aos nossos princípios, não por esta ou aquela passagem da obra, mas pelo seu conjunto! Oxalá descubram nela, através da ostentação de uma tolerância civilizadora, os sentimentos de patriotismo nobre e elevado que nos animaram; – não doutro lamentável patriotismo cifrado apenas na absurda ostentação de vil e rancoroso ódio a tudo quanto é estrangeiro” (obr. cit., p. XI).
A quem Varnhagen estava se referindo? Com certeza, a ninguém concretamente. Era apenas o truque de atribuir aos oponentes ideológicos uma posição que não era a deles, para mais fácil vituperá-los. Não deixa de ser um veredicto que, depois de 150 anos, a retórica antinacional e seus truques continuem os mesmos.
O que não quer dizer que o ódio de Varnhagen aos índios não fosse verdadeiro, embora sempre em função de promover os colonizadores – a antiga metrópole, da qual o Brasil declarara independência.
Mais tarde, em 1867, na sua resposta a João Francisco Lisboa, ele propôs que se desse como recompensa aos veteranos da Guerra do Paraguai o direito de escravizar os índios e tomar as suas terras: “E que boa ocasião se vai oferecer de civilizar o nosso país, recompensando aos heróis da guerra do Paraguai, tanto livres como libertos, com os braços dos índios bravos que sujeitem e com as terras deles que conquistem!” (cf. Varnhagen, “Os Índios Bravos e o Sr. Lisboa“, Imprensa Liberal, Lima, p. IV).
Até o “socialista Proudhon” é citado por Varnhagen para justificar os benefícios da escravidão para os escravos. Mas a melhor citação é a de um certo capitão Pim, inglês que escrevera uma obra intitulada “The Negro and Jamaica”, com a tese de que a escravidão é muito importante porque “gente ‘decididamente inferior é resgatada de estado de barbárie, escassamente humana, e obrigada a tomar uma posição útil, visto ser contra as leis divinas e humanas que continuasse ociosa espectadora dos trabalhos de seus companheiros’” (Varnhagen, obr. cit., p. IV).
Essa polêmica entre Lisboa e Varnhagen tem mais do que interesse histórico, embora este último seja inestimável: em 1858, numa longa nota aos seus “Apontamentos sobre a História do Maranhão (Jornal de Timon III)”, João Francisco Lisboa, que antes contestara Gonçalves Dias sobre as dimensões do extermínio indígena pelos colonizadores portugueses, mudou sua posição. Escreveu ele: “é justamente acerca da ocasião e intensidade dos abusos e dos seus resultados, que as nossas ideias de então se acham hoje consideravelmente modificadas. Um estudo mais aprofundado da matéria, e o exame sobretudo dos documentos oficiais, isto é, da correspondência havida entre os governos da metrópole e das colônias, pela maior parte inédita e pouco conhecida, nos habilita hoje para proferirmos um novo julgamento, em que a condenação dos invasores é inevitável” (cf. “Sobre a escravidão e a História Geral do Brasil pelo Sr. Varnhagen” in Obras de João Francisco Lisboa Vol. III, Typ. de B. de Mattos, São Luiz do Maranhão, 1865, p. 465).
Em seguida, à luz dessa mudança em suas ideias, Lisboa fez uma crítica ao livro de Varnhagen, favorável aos colonizadores e à escravidão indígena (Varnhagen considera, inclusive, que os colonizadores foram demasiado benevolentes para com os indígenas).
Para contestar essa nota de Lisboa, de 40 e poucas páginas, Varnhagen escreveu o livro que citamos acima, com 144 páginas, que tem um ponto de partida esquisito: Varnhagen começa afirmando que Lisboa “retratou-se” das ideias anteriores “para agredir-me”.
PEDIDOS
Pedro II tinha uma posição muito mais próxima de Magalhães – e até de José de Alencar – que de Varnhagen. Devia estar ansioso em demasia com as críticas de Alencar, para pedir a Varnhagen – logo a quem – que defendesse “A Confederação dos Tamoios”. No mesmo ano em que proferiu sua conferência anti-indígena em Madri, 1852, Varnhagen enviara carta ao imperador, aconselhando-o a se precaver contra Magalhães e o “brasileirismo caboclo”. E ainda preveniu D. Pedro II contra os aduladores…
Em 1856, ao pedido para defender o poema de Magalhães, Varnhagen, que estava na Europa, respondeu:
“Infelizmente está o poema mui longe de poder, no mais minimo, aspirar às honras da epopeia nacional do século de Pedro 2°- Nem o assunto da tal confederação bestial é verdadeiramente épico. (…) nem o autor, exceto na parte descritiva, tem ao gênero épico tendência, nem tem o saber, nem a robustez de princípios, nem a generosidade e grandeza d’alma, que o gênero requer; pois é muitas vezes homem, e homem de paixões pequeninas.
E, ainda mais:
“Ficam a perder de vista as incorreções e descuidos, os prosaísmos de alguns versos, e as injustiças talvez cometidas com algum pobre de Cristo, que lhe terá fornecido alguma ideia, mas que não cita” (v. Francisco Adolfo de Varnhagen, “Correspondência Ativa“, org. Clado Ribeiro de Lessa, MEC/INL, 1961).
Por fim, o imperador pediu a Alexandre Herculano, o escritor português, que defendesse “A Confederação dos Tamoios”. Porém, Herculano (que, por sinal, era republicano) objetou uma questão de conteúdo moral e étnico: “Os que traíram os interesses de sua gente e a religião dos seus antepassados para se aliarem aos conquistadores são, poeticamente considerados, uma completa negação da generosidade e do heroísmo da epopeia“.
Como português, ele se sentia traído pelos tupinambás da Confederação dos Tamoios, que se aliaram aos franceses, 300 anos antes do pedido de D. Pedro II. Talvez Herculano estivesse no seu direito. Quer dizer, mais ou menos, pois não havia razão para achar que, para os índios, os portugueses fossem melhores que os franceses… Principalmente quando a Confederação dos Tamoios foi uma reação ao ataque de João Ramalho, e seus “cunhados” tupiniquins, a uma aldeia, com o objetivo de escravizar os tupinambás. Mas é provável que essa tenha sido a forma de Herculano salientar para o imperador que seu pedido era absurdo.
CAMINHO
Ao demolir (nesse caso não é um exagero o uso desse verbo) “A Confederação dos Tamoios“, de Gonçalves de Magalhães, o que Alencar afirmava é que uma literatura nacional não podia ser falsa. Alguns personagens supostamente indígenas não davam cunho nacional a um poema – ou a um romance.
Ao contrário de Varnhagen, ele não tinha preconceitos contra nossa herança indígena – pelo contrário, como se verá em “Iracema“, para ele os indígenas estavam na raiz da nacionalidade e o povo brasileiro não existiria sem essa herança.
Diz Alencar sobre “A Confederação dos Tamoios”:
“… a heroína do poema do Sr. Magalhães, é uma mulher como qualquer outra; as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe, chinês, ou europeu; se deixassem as penas de tucano que mal as cobrem, podiam vestir-se à moda em casa de Mme. Barat e Gudin, e ir dançar a valsa no Cassino e no Club com algum deputado” (cf. José de Alencar, “Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos por Ig.“, Empreza Typographica Nacional do Diário, Rio, 1856, p. 31).
E, também:
“A forma com que Homero cantou os Gregos não serve para cantar os índios; o verso que disse as desgraças de Troia, e os combates mitológicos não pode exprimir as tristes endechas do Guanabara, e as tradições selvagens da América” (obr. cit. p. 25).
Embora, Alencar estava longe de achar que Magalhães fosse aparentado com Homero:
“… o poeta no seu poema descuidou-se inteiramente da forma, o que aliás é natural, pois o estudo da poesia estrangeira provavelmente fez-lhe perder o gosto apurado e a suavidade e cadência do verso português” (p.10), o que, em sua opinião, era imperdoável, porque “um poeta brasileiro, um verdadeiro poeta, não tem licença para estropear as palavras, e fazer delas vocábulos ininteligíveis, enfileirados em linhas de onze sílabas” (obr. cit. p. 11).
As “Cartas sobre a Confederação dos Tamoios” foram publicadas, em jornal e em livro, no mesmo ano em que Alencar iniciou sua trajetória de romancista. São, do ponto de vista estético, uma espécie de ajuste de contas teórico com a literatura anterior.
Algo pouco mencionado, naquilo que já se escreveu sobre essa famosa polêmica, é que Alencar percebia com nitidez o caminho da poesia brasileira, ou seja, quem estava abrindo esse caminho:
“O Sr. Gonçalves Dias, nos seus cantos nacionais, mostrou quanta poesia havia nesses costumes índios, que nós ainda não apreciamos bem, porque os vemos de muito perto. A poesia é como a pintura, cujos quadros devem ser olhados a uma certa distancia para produzirem efeito” (obr. cit., p. 32).
E, mais adiante:
“O autor dos Últimos Cantos, de Yjucapirama, e dos Cantos guerreiros dos índios está criando os elementos de uma nova escola de poesia nacional, de que ele se tornará o fundador quando der à luz alguma obra de mais vasta composição“. (obr. cit., p. 80)
É interessante que, para Alencar, os problemas de forma estão sempre diretamente relacionados ao caráter nacional das obras de arte. Já demos acima um exemplo. Outro é quando ele, ao criticar o desleixo quanto à métrica nos poetas seus contemporâneos, diz que “no meio da tendência da época, um homem ao menos protesta hoje contra ela; e esse é um poeta: falo do Sr. Gonçalves Dias, metrificador perfeito, alma entusiasta e inspirada, que soube compreender os tesouros que a nossa pátria guarda no seu seio fecundo para aqueles de seus filhos que reclinar a cabeça sobre o regaço materno” (obr. cit. p. 45).
O futuro – até o nosso presente – confirmaria inteiramente o julgamento crítico de Alencar. O que também aconteceria, 12 anos depois, em relação a Castro Alves.
12
É hora de examinarmos o propalado anti-abolicionismo de Alencar, pois ele é muito peculiar.
Por que razão Castro Alves, ao chegar no Rio de Janeiro, iria visitar Alencar e ler para ele “Gonzaga ou a Revolução de Minas” – um drama abolicionista e republicano?
Como se explica que Alencar tenha ficado tão entusiasmado com Castro Alves, a ponto de escrever a Machado de Assis, em carta datada de 18 de fevereiro de 1868:
“Recebi ontem a visita de um poeta.
“O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, falo do Brasil que sente; do coração e não do resto.
“O Sr. Castro Alves é hóspede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a S. Paulo concluir o curso que encetou em Olinda.
“Nasceu na Bahia, a pátria de tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros.
(…)
“O Sr. Castro Alves lembrava-se, como o senhor e alguns poucos amigos, de uma antiguidade de minha vida; que eu outrora escrevera para o teatro. Avaliando sobre medida minha experiência neste ramo difícil da literatura, desejou ler-me um drama, primícia de seu talento.
““Essa produção já passou pelas provas públicas em cena competente para julgá-la. A Bahia aplaudiu com júbilos de mãe a ascensão da nova estrela de seu firmamento. Depois de tão brilhante manifestação, duvidar de si, não é modéstia unicamente, é respeito à santidade de sua missão de poeta.
“Gonzaga é o título do drama que lemos em breves horas. O assunto, colhido na tentativa revolucionária de Minas, grande manancial de poesia histórica ainda tão pouco explorado, foi enriquecido pelo autor com episódios de vivo interesse. O Sr. Castro Alves é um discípulo de Vítor Hugo, na arquitetura do drama, como no colorido da ideia. O poema pertence à mesma escola do ideal; o estilo tem os mesmos toques brilhantes.
“Imitar Vítor Hugo só é dado às inteligências de primor. O Ticiano da literatura possui uma palheta que em mão de colorista medíocre mal produz borrões. Os moldes ousados de sua frase são como os de Benvenuto Cellini; se o metal não for de superior afinação, em vez de estátuas saem pastichos.
“Não obstante, sob essa imitação de um modelo sublime desponta no drama a inspiração original, que mais tarde há de formar a individualidade literária do autor. Palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria, que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos.
“Não se admire de assimilar eu o cidadão e o poeta, duas entidades que no espírito de muitos andam inteiramente desencontradas. O cidadão é o poeta do direito e da justiça; o poeta é o cidadão do belo e da arte.
“Há no drama Gonzaga exuberância de poesia. Mas deste defeito a culpa não foi do escritor; foi da idade. Que poeta aos vinte anos não tem essa prodigalidade soberba de sua imaginação, que se derrama sobre a natureza e a inunda?
“A mocidade é uma sublime impaciência. Diante dela a vida se dilata, e parece-lhe que não tem para vivê-la mais que um instante. Põe os lábios na taça da vida, cheia a transbordar de amor, de poesia, de glória, e quisera estancá-la de um sorvo.
“A sobriedade vem com os anos; é virtude do talento viril. Mais entrado na vida, o homem aprende a poupar sua alma. Um dia, quando o Sr. Castro Alves reler o Gonzaga, estou convencido que ele há de achar um drama esboçado, em cada personagem desse drama. Olhos severos talvez enxerguem na obra pequenos senões.
“Maria, achando em si forças para enganar o governador em um transe de suprema angústia, parecerá a alguns menos amante, menos mulher, do que devera. A ação, dirigida uma ou outra vez pelo acidente material, antes do que pela revolução íntima do coração, não terá na opinião dos realistas, a naturalidade moderna.
“Mas são esses defeitos da obra, ou do espírito em que ela se reflete? Muitas vezes já não surpreendeu seu pensamento a fazer a crítica de uma flor, de uma estrela, de uma aurora? Se o deixasse, creia que ele se lançaria a corrigir o trabalho do supremo artista. Não somos homens debalde: Deus nos deu uma alma, uma individualidade.
“Depois da leitura do seu drama, o Sr. Castro Alves recitou-me algumas poesias. ‘A Cascata de Paulo Afonso’, ‘As Duas Ilhas’ e ‘A Visão dos Mortos’ não cedem às excelências da língua portuguesa neste gênero. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo desse metro natural, dessa rima suave e opulenta.
Nesta capital da Civilização brasileira, que o é também de nossa indiferença, pouco apreço tem o verdadeiro mérito quando se apresenta modestamente. Contudo, deixar que passasse por aqui ignorado e despercebido o jovem poeta baiano, fora mais que uma descortesia. Não lhe parece?
“Já um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a saudação; é preciso abrir-lhe o teatro, o jornalismo, a sociedade, para que a flor desse talento cheio de seiva se expanda nas auras da publicidade.
“Para Virgílio do jovem Dante nesse ínvio caminho da vida literária, lembrei-me do senhor. Sobram-lhe os títulos. Para apresentar ao público fluminense o poeta baiano, é necessário não só ter foro de cidade na imprensa da Corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda espera seu cantor.
“Seu melhor título, porém, é outro. O senhor foi o único de nossos modernos escritores, que se dedicou à cultura dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma porção do talento que recebeu da natureza, em vez de aproveitá-lo em criações próprias, não duvidou aplicá-lo a formar o gosto e desenvolver a literatura pátria.
“Do senhor, pois, do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou com tanto vigor.
“J. de Alencar”
Machado de Assis, por sinal, era alguém que não podia, graças aos céus, passar como branco, apesar da tentativa, feita por Nabuco, de “helenizá-lo” (somente deflagrada após a morte do nosso maior escritor – e em âmbito privado, numa carta a José Veríssimo que não foi incluída na correspondência, coligida, organizada e publicada por sua filha, Carolina Nabuco: cf. Joaquim Nabuco, Obras Completas, tomo 13 e tomo 14, Instituto Progresso Editorial, 1949).
TEATRO
Na carta de Alencar a Machado existe menção a algo importante:
“O Sr. Castro Alves lembrava-se, como o senhor e alguns poucos amigos, de uma antiguidade de minha vida; que eu outrora escrevera para o teatro.“
Esta é uma referência a um drama que Alencar, em 1860, oito anos antes da visita de Castro Alves, conseguira levar ao palco – a estreia foi em 24 de março daquele ano.
Cinco dias depois, no “Diário do Rio de Janeiro” de 29 de março de 1860, o crítico teatral Machado de Assis publicaria sua apreciação. É decisivo, para um juízo da vida e obra de Alencar – assim como da vida e obra de Machado, acusado injustamente de ignorar a luta abolicionista – a consideração desse artigo, escrito 28 anos antes da Lei Áurea, quando não era fácil, politicamente, sustentar tais opiniões:
“… desde que se levantou o pano o público começou a ver que o espírito dramático, entre nós, podia ser uma verdade. E, quando a frase final caiu esplêndida no meio da plateia, ela sentiu que a arte nacional entrou em um período mais avantajado de gosto e de aperfeiçoamento.
“Esta peça intitula-se Mãe.
(…)
“A ação é altamente dramática; as cenas sucedem-se sem esforço, com a natureza da verdade; os lances são preparados com essa lógica dramática a que não podem atingir as vistas curtas.
(…)
“Jorge é um estudante de Medicina, que mora em um segundo andar com uma escrava apenas – a quem trata carinhosamente e de quem recebe provas de um afeto inequívoco.
“No primeiro andar, moram Gomes, empregado público, e sua filha Elisa. A intimidade da casa trouxe a intimidade dos dois vizinhos, Jorge e Elisa, cujas almas, ao começar o drama, ligam-se já por um fenômeno de simpatia.
“Um dia, a doce paz, que fazia a ventura daquelas quatro existências, foi toldada por um corvo negro, por um Peixoto, usurário, que vem ameaçar a probidade de Gomes, com a maquinação de uma trama diabólica e muito comum, infelizmente, na humanidade.
“Ameaçado em sua honra, Gomes prepara um suicídio que não realiza; entretanto, envergonhado por pedir dinheiro, porque com dinheiro removia a tempestade iminente, deixa à sua filha o importante papel de salvá-lo e salvar-se.
“Elisa, confiada no afeto que a une a Jorge, vai expor-lhe a situação; este compreende a dificuldade, e, enquanto espera a quantia necessária do Dr. Lima, um caráter nobre da peça, trata de vender, e ao mesmo Peixoto, a mobília de sua casa.
“Joana, a escrava, compreende a situação, e, vendo que o usurário não dava a quantia precisa pela mobília de Jorge, propõe-se a uma hipoteca; Jorge repele ao princípio o desejo de sua escrava, mas a operação tem lugar, mudando unicamente a forma de hipoteca para a de venda, venda nulificada desde que o dinheiro emprestado voltasse a Peixoto.
“Volta a manhã serena depois de tempestade procelosa; a probidade e a vida de Gomes estão salvas.
“Joana, podendo escapar um minuto a seu senhor temporário, vem na manhã seguinte visitar Jorge.
“Entretanto o Dr. Lima tem tirado as suas malas da alfândega e traz o dinheiro a Jorge. Tudo vai, por conseguinte, voltar ao seu estado normal.
“Mas Peixoto, não encontrando Joana em casa, vem procurá-la à casa de Jorge, exigindo a escrava que havia comprado na véspera. O Dr. Lima não acreditou que se tratasse de Joana, mas Peixoto, forçado a declarar o nome, pronuncia-o. Aqui a peripécia é natural, rápida e bem conduzida; o Dr. Lima ouve o nome, dirige-se para a direita por onde acaba de entrar Jorge.
“– Desgraçado, vendeste tua mãe!
“Eu conheço poucas frases de igual efeito. Sente-se uma contração nervosa ao ouvir aquela revelação inesperada. O lance é calculado com maestria e revela pleno conhecimento da arte no autor.
“Ao conhecer sua mãe, Jorge não a repudia; aceita-a em face da sociedade, com esse orgulho sublime que só a natureza estabelece e que faz do sangue um título.
“Mas Joana, que forcejava sempre por deixar corrido o véu do nascimento de Jorge, na hora que este o sabe, aparece envenenada. A cena é dolorosa e tocante, a despedida para sempre de um filho, no momento em que acaba de conhecer sua mãe, é por si uma situação tormentosa e dramática.
(…)
“Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriet Stowe – fundado no mesmo teatro da escravidão.
“Os tipos acham-se ali bem definidos, e a ligação das frases não pode ser mais completa.
(…)
“O autor soube haver-se com a ação, sem entrar em análise. Descoberta a origem de Jorge, a sociedade dá o último arranco em face da natureza, pela boca de Gomes, que tenta recusar sua filha prometida a Jorge” (Machado de Assis, Obra Completa, vol. III, Nova Aguilar, 1994).
Aqui, é necessário apenas frisar a comparação que Machado estabelece entre a peça de Alencar e o romance de Harriet Beecher Stowe, “A Cabana do Pai Tomás” (“Uncle Tom’s Cabin”), de 1852: o ponto comum, evidentemente, é a repulsa à escravidão.
13
Machado, em seu estudo sobre a obra teatral de Alencar, seis anos após a crítica teatral sobre “Mãe“, reafirmará seu julgamento – e de forma até mais clara e enfática:
“Se ainda fosse preciso inspirar ao povo o horror pela instituição do cativeiro, cremos que a representação do novo drama do Sr. José de Alencar faria mais do que todos os discursos que se pudesse proferir no recinto do corpo legislativo, e isso sem que Mãe seja um drama demonstrativo e argumentador, mas pela simples impressão que produz no espírito do espectador, como convém a uma obra de arte” (Machado de Assis, “O teatro de José de Alencar”, Diário do Rio de Janeiro, 06, 13 e 27/03/1866, in Obra Completa, vol. III, Nova Aguilar, 1994).
O importante aqui é que em 1866, ao contrário de 1860, Alencar já deixara nítida, no parlamento, sua posição política quanto à abolição imediata da escravatura. O sutil Machado está, simplesmente, afirmando que os discursos parlamentares de Alencar sobre o abolicionismo não têm importância alguma diante do que o mesmo Alencar fez pela Abolição em sua obra teatral.
Não é surpreendente, portanto, que Alencar tenha sido o primeiro homem de letras brasileiro a escrever uma peça em que o personagem principal é negro – aliás, um escravo, o Pedro da comédia “O Demônio Familiar“. O desfecho dessa peça (Pedro é “punido”, pelas suas travessuras, com a alforria) tem sido interpretado como uma profissão de fé no escravismo. Mas é difícil achar que essa comédia é um quadro idílico do escravismo, mesmo sem considerar algumas falas (por exemplo: “EDUARDO – Ah!… Escutem-me, senhores; depois me julgarão… É a nossa sociedade brasileira a causa única de tudo quanto se acaba de passar“. Em seguida, o mesmo personagem diz que, concedendo a liberdade a Pedro, está “fazendo do autômato um homem“).
Outra vez Machado, no estudo que citamos, proferiu um juízo importante sobre essa peça:
“Não supomos que o Sr. Alencar dê às suas comédias um caráter de demonstração; outro é o destino da arte; mas a verdade é que as conclusões d’O Demônio Familiar, como as conclusões de Mãe, têm um caráter social que consolam a consciência; ambas, as peças, sem saírem das condições da arte, mas pela própria pintura dos sentimentos e dos fatos, são um protesto contra a instituição do cativeiro.”
PESOS
Resta saber como esse mesmo escritor foi, em sua obra política, e na mesma época em que se entusiasmou por Castro Alves, o autor das “Novas Cartas de Erasmo” (1867-1868), em que faz uma apologia da escravidão – e não apenas do ponto de vista histórico, mas do ponto de vista “atual”, ou seja, da sua manutenção no Brasil daquele momento.
É verdade que é uma apologia onde há trechos muito pouco apologéticos. P. ex.:
“A escravidão se apresenta hoje ao nosso espírito sob um aspecto repugnante. Esse fato do domínio do homem sobre o homem revolta a dignidade da criatura racional. Sente-se ela rebaixada com a humilhação de seu semelhante. O cativeiro não pesa unicamente sobre um certo número de indivíduos, mas sobre a humanidade, pois uma porção dela acha-se reduzida ao estado de coisa” (cf. José de Alencar, “Cartas de Erasmo“, ABL, 2009, p. 283-284).
Mas, o conjunto, apesar da defesa da miscigenação – porém, ao longo de “séculos e séculos”, e sempre considerando que a miscigenação é uma “absorção” da “raça negra” pela “raça branca” – e de Alencar apontar corretamente que o abolicionismo de D. Pedro II era para inglês ver (ele acusa o imperador de submissão à metrópole colonialista), esses textos são, para ser sucinto, uma fieira de besteiras.
Do ponto de vista social e histórico, Alencar condensa um país que já se tornara formalmente independente, mas ainda não conseguira incorporar toda a população em um povo único.
As contradições de Alencar são marcas tanto dos avanços quanto das resistências ao avanço nessa direção. Que ele haja contribuído muito mais para o avanço do que para a sua contenção, é um mérito que não lhe é possível negar.
Mas, qual a importância do político Alencar na história do segundo reinado? Não estaremos distantes da verdade ao dizer que essa importância é próxima de zero.
O mesmo não se pode dizer do romancista José de Alencar, como enfatizou, mais uma vez, o crítico brasileiro mais rigoroso do século XIX, Machado de Assis.
Em 1887, dez anos após a morte de Alencar, escreveu Machado, sobre “O Guarani“:
“Quaisquer que sejam as influências estranhas a que obedecer, este livro é essencialmente nacional. (…) a originalidade do autor estava na imaginação fecunda, – ridente ou possante, – e na magia do estilo. (…) Alencar trazia-os, com alguma coisa mais que despertava a atenção: o poder descritivo e a arte de interessar. (…) A língua, já numerosa, fez-se rica pelo tempo adiante. Censurado por deturpá-la, é certo que a estudava nos grandes mestres; mas persistiu em algumas formas e construções, a título de nacionalidade“.
Uma década depois – portanto, 20 anos após a morte do escritor cearense – Machado de Assis sublinharia ainda mais o que, em sua opinião, constituía a essência da contribuição de Alencar:
“Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas” (Machado de Assis, “Discurso no lançamento da estátua de José de Alencar“).
BESTIALÓGICO
Nos parece dispensável continuar a examinar as bobagens do livro do sr. Laurentino Gomes, muito mais graves, considerando a diferença de época, que as perpetradas por Alencar.
Não que tenhamos esgotado o assunto – quase infinito. Porém, filiar Marx a um suposto darwinismo social ou econômico (segundo o sr. Gomes, Marx acreditava “que as premissas da evolução pela seleção natural eram aplicáveis também às ciências sociais e econômicas“, o que é, provavelmente, uma novidade revolucionaríssima); ou dizer que Raskolnikov – o personagem central de “Crime e Castigo“, de Dostoiewsky – queria “testar a hipótese de que algumas pessoas seriam naturalmente capazes de praticar esse tipo de atrocidade sem sofrer grandes dilemas de consciência“; ou dizer que o golpe pró-imperialista de 1964, escandalosamente cavado por Washington, foi “um eco positivista tardio“; ou que o jogo do bicho “ainda hoje [é] dominado pelos seus descendentes [do barão de Drummond]”, são coisas tão estupidamente estúpidas (!) que merecem, no máximo (e já é muita coisa), registro em algum FEBEAPÁ – Festival da Besteira que Assola o País – dos tempos atuais (oremos para que haja algum novo Stanislaw Ponte Preta com disposição).
Porém, rapidamente, examinemos mais duas pérolas – apenas mais duas – do sr. Gomes.
A primeira:
“No Brasil não houve nada parecido com o Freedmen’s Bureau, instituição criada pelo governo americano para dar assistência aos escravos libertos após a Guerra da Secessão” (cf. Laurentino Gomes, “1889”, Ed. Globo, 2013, p. 228).
O servilismo é o que pode haver de mais repugnante em um sujeito, escreveu Marx, respondendo ao questionário de uma de suas filhas.
Como todo mundo sabe, a assistência que o governo dos EUA deu aos ex-escravos após a Guerra de Secessão foi fenomenal. Por isso é que, na década de 60 do século XX, cem anos após Lincoln proclamar a emancipação dos escravos, a maioria da população negra não tinha nem o direito de votar. Aliás, não tinha nem o direito de ir ao banheiro ou usar o mesmo bebedouro que os brancos, ou sentar livremente no banco de um ônibus, para não falar de, por exemplo, frequentar uma universidade no Alabama.
Segunda pérola:
“O governo se viu forçado a renegociar a suspensão de suas dívidas por onze anos, até 1911. Na prática, era um regime de moratória, que fechava o acesso do país a novos empréstimos no exterior. Em 1900, a situação econômica era tão alarmante que metade dos bancos foi à falência” (obr. cit., p. 378).
Aqui o sr. Laurentino dá como consequência de uma “situação econômica alarmante” o que é uma consequência direta da política de submissão escolhida por Campos Sales. E chama de “regime de moratória” o que foi um regime de extorsão e pilhagem sobre o país, imposto pelos Rothschild, de Londres, com a inaudita subserviência, só alcançada outra vez um século depois – por Collor, Fernando Henrique e Dilma – do então presidente da República.
É forçoso reconhecer que, do ponto de vista moral, Campos Sales era algo menos mentiroso que seus seguidores ou seguidoras atuais. Em seu programa eleitoral, dizia:
“… bastará que governo e câmaras assinem este pacto de patriotismo: não tomar a iniciativa de uma só despesa e votar todas as economias possíveis. (…) Não há, portanto, lugar para os vastos programas de administração, que, aliás, se incompatibilizam radicalmente com a situação do Tesouro, tal como ela se desenha. Considero por isso um dever de lealdade não abrir esperanças, nem contrair compromissos de outra ordem. Muito terá feito pela República o governo que não fizer outra coisa senão cuidar das suas finanças” (cf. Alcindo Guanabara, “A Presidência Campos Sales“, SF, Brasília, 2002, p. 40-41).
A mentira estava em outro lugar: o que ele não disse é que seu programa não era apenas não fazer, mas destruir o que já fora feito por outros. É inteiramente precisa a síntese, de um de nossos historiadores econômicos, de que a política de Campos Sales e seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, foi o “repúdio exacerbado e ostensivo à industrialização, negando sua função progressista e libertadora nos países atrasados, (…) a rejeição violenta do protecionismo industrial, a repulsa pelas aplicações em atividades manufatureiras, qualificando-as de ‘imobilização improdutiva’, as inverdades de a industrialização conduzir à extinção do comércio internacional e ao isolamento dos povos” (cf. Heitor Ferreira Lima, “História do Pensamento Econômico no Brasil“, CEN, 1976, pp. 138-139).
A quebradeira foi tão absurda que, além da indústria, atingiu também os bancos internos – e o café, principal produto do país, onde a política de Murtinho era eliminar os pequenos e médios cafeicultores.
Não admira que Campos Sales saísse da Presidência pela porta dos fundos, fugindo da multidão furiosa, voltando a São Paulo com seu trem debaixo de pedradas.
Apesar de alguns elementos apresentarem a devastação do país nessa época como “saneamento” financeiro, ela provocou um desequilíbrio nas finanças públicas que atravessou – é verdade que acrescido com outros fatores – toda a República Velha. Ao fim, “a execução orçamentária do quadriênio Campos Sales deixou um déficit de 84.079 contos de réis, significando que nem o equilíbrio orçamentário (a grande aspiração do ministro da Fazenda) foi alcançado, apesar dos esforços empregados e dos pesados sacrifícios impostos aos contribuintes” (Heitor Ferreira Lima, obr. cit., p. 140).
14
Campos Sales expôs a política que pretendia impor ao país na Mensagem ao Congresso Nacional de 3 de maio de 1899. Alguns trechos interessantes:
“Uma larga experiência tem demonstrado que não há vantagem real em manter empresas de estradas de ferro sob a administração do Estado. (…) Entregá-las, pois, à atividade fecunda da gestão estimulada pelo interesse particular (…) todas as estradas de propriedade nacional a cargo da administração publica (…) viveram sempre no regímen dos déficits (…). Verifica-se, entretanto, agora, que, quando entregues à administração particular, todas elas passam desde logo a assinalar saldos progressivos, prestando promissor concurso ao desenvolvimento das rendas nacionais” (cf. M. Ferraz de Campos Salles, “Mensagem apresentada ao Congresso Nacional na abertura da Terceira Sessão da Terceira Legislatura“, Rio, 1899, p. 21/22).
Campos Sales declarava que as estradas de ferro deveriam ser entregues, sob concessão, a uma suposta iniciativa privada – o que significava o capital “estrangeiro”, isto é, inglês. Esta foi uma decisão que atrasou em trinta anos – ou mais – a infraestrutura que o país carecia. Realmente, o capital inglês fez as ferrovias “lucrarem” – isto é, abocanhou colossais subsídios do governo. Em suma, passou-se a dar aos ingleses mais do que se negou às mesmas empresas quando eram públicas.
Porém, mais característico ainda era o trecho sobre finanças da “Mensagem” de Campos Sales. O que vem a seguir é apenas um pequeníssimo resumo:
“A mania das grandezas (…) determinou a criação de empresas industriais de todas as espécies imagináveis. (…) criou-se na tarifa aduaneira a taxa uItra-protecionista para manter indústrias completamente artificiais, elevando-se por essa forma o preço dos objetos com o sacrifício dos interesses de toda a população em proveito de alguns industriais (…) Isto quer dizer que nos achamos virtualmente desviados da boa direção econômica. É’ tempo de tomar a verdadeira orientação e para isso o que nos cumpre é tratar de exportar tudo quanto pudermos produzir em melhores condições que os outros povos, e procurar importar o que eles possam produzir em melhores condições que nós. (…) Valorizando o nosso meio circulante e dando um regímen de estabilidade à nossa moeda, teremos aberto franca entrada aos capitais estrangeiros, que aqui virão solicitar a colocação vantajosa que lhe proporcionam as nossas riquezas incomparáveis” (“Mensagem”, p.p. 28 e 29).
Comentando esse trecho da “Mensagem” na Câmara, disse o deputado Érico Coelho – republicano histórico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a atual Faculdade de Medicina da UFRJ – na sessão de 25 de maio de 1899:
“Nada importa, no conceito do Sr. Campos Sales, a ruína nacional da indústria fabril, contanto que o Presidente da República execute o seu compromisso de proteger a indústria fabril londrina. (…) O Sr. Campos Sales, na Presidência da Republica, não faz votos pela prosperidade das indústrias nacionais. A sua paixão obcecante é pela indústria de tecidos londrinos. (…) É’ o protecionismo pelo avesso. (…) o Sr. Campos Sales, na Presidência da República, é o protecionista da indústria exótica, quero dizer londrina.
“O Sr. Campos Sales, porém, tem o seu sistema de economia política, que não se compadece com as indústrias fabris no Brasil, reduzidas a esqueletos de fábricas… (…) bem orientado, o Sr. Campos Sales condena todo o produto fabril que não for melhor do que o londrino (…); mas, em compensação, devemos importar da Inglaterra, exclusivamente, tudo o que o estrangeiro fabricar, a alto preço do nosso papel-moeda desvalorizado. Exportemos cacau, borracha ou café… (Annaes da Camara, sessão de 25/05/1899, appendice, pp. 46/47).
FUNDING
Basicamente, a política de Sales e seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho – dono da notória “Mate Larangeira” – foi uma brutal contração monetária para “valorizar a moeda” (um original combate à inflação, que se resumia em favorecer, com a manipulação do câmbio, os bancos externos, sobretudo ingleses, e as manufaturas externas, sobretudo inglesas).
O meio circulante (dinheiro em poder do público + depósitos à vista) dentro do Brasil foi reduzido em -24% entre 1898 e 1902 (cf. tabela em Tamas Szmrecsányi, “Origens e consequências do funding loan de 1898“, Análise Econômica, v. 20, nº 38, Porto Alegre, 2000, p. 16).
Resumidamente, isso secou o crédito e aumentou os juros – há uma forma de ter uma ideia desse aumento de juros: pelas transferências do governo federal a título de pagamento de juros, que aumentaram em +284,18% no ano de 1899 em relação ao anterior e mantiveram-se no mesmo patamar até 1902. Observe-se que a falência dos bancos nacionais implicou no domínio do sistema financeiro interno pelos bancos estrangeiros – evidentemente, com os ingleses à frente – o que seria um bloqueio tão grande ao crescimento, mesmo nos termos da República Velha, que Rodrigues Alves, sucessor de Campos Sales, criaria um banco público – o novo (e atual) Banco do Brasil – para romper, em parte, esse bloqueio.
De resto, não é verdade que o “funding loan” de 1898, fechado (ou aceito) pelo próprio Campos Sales em viagem à Europa, tenha suspenso, além das amortizações, os juros à banca londrina.
Pelo contrário, o empréstimo de 8,6 milhões de libras esterlinas do “funding” ficou todo em Londres, a título de juros. Evidentemente, o país pagou esse empréstimo, que tinha por garantia “a renda da alfândega do Rio de Janeiro e subsidiariamente as das demais do país [NOTA C.L.: na época, 70% da arrecadação do governo federal provinha do imposto de importação]. (…) Incluía ademais a obrigação de não podermos contrair empréstimo no estrangeiro, dar garantia de qualquer transação de crédito até junho de 1901, comprometendo-nos, também, à proporção que se emitissem as letras, a retirar da circulação soma equivalente em papel-moeda, ao câmbio de 18 e a constituir em Londres um fundo de garantia, obrigação essa jamais estabelecida em empréstimos anteriores. Além disso, em resposta à carta de N. M. Rothschild & Sons, Campos Sales empenhava sua responsabilidade pessoal no acordo, assegurando sua execução plena, com a maior solicitude” (v. Heitor Ferreira Lima, obr. cit., p. 140).
A situação, com o “funding”, com a política de Campos Sales, ficou muito mais favorável aos credores externos – fundamentalmente, os Rothschild, de Londres. O esquema fora inventado por um gerente do London & River Plate Bank, Edward H. Tootal. Como demonstra outro de nossos economistas e historiadores econômicos, “… o principal propósito daquele acordo foi o de resolver não o problema do endividamento externo do Brasil, mas essencialmente o dos fluxos de recursos para os credores” (Szmrecsányi, art. cit., p. 14).
O aspecto que mais escandalizou o principal oposicionista no parlamento, Rui Barbosa, foi a queima de dinheiro brasileiro em Londres:
“Pelo acordo londrino, art. 1º, se obrigou o Governo Brasileiro a emitir, durante o triênio, títulos, que se denominarão United States of Brazil 5% Funding Bonds, até ao valor de £ 10.000.000, importe do serviço da sua dívida externa dentro nesse prazo: e, ao diante, na declaração complementar do contrato, estipulou que, pari passu com a emissão desses bonds, depositaria aqui o seu equivalente em papel-moeda corrente ao câmbio de 18 dinheiros. São essas as somas, que se estão incinerando” (Rui Barbosa, “A queima do papel”, 16/06/1899, in Obras Completas, Vol. XXVI, Tomo V, p. 255).
A ideia de que era inevitável o servilismo aos bancos ingleses, apresentada pelos governistas na época, não é uma ideia, mas um ato de genuflexão – ou coisa pior.
Poderíamos argumentar longamente, inclusive com intervenções da própria época, como aquelas de Rui Barbosa ou do deputado Érico Coelho, ou os artigos de Edmundo Bittencourt, fundador do “Correio da Manhã”, ou os textos de Vieira Souto, na época professor de economia política da Escola Politécnica do Rio de Janeiro (tanto a sua conferência “A situação econômica e os planos do sr. Murtinho“, quanto a série de artigos “O último relatório da Fazenda“, ambos publicados no segundo semestre de 1901 pelo “Correio da Manhã”, são demolidores para a política de Sales e Murtinho).
Entretanto (e até porque, se o tempo nos for favorável no futuro, pretendemos escrever algo especificamente sobre o assunto), por ora, basta o próprio conteúdo da política de Campos Sales para percebermos que, evidentemente, havia outra política possível – aquela é que não podia ser. No que, aliás, nada há de complicado, como a História mostraria em uma situação muito mais difícil: aquela em que o país saiu após o governo Washington Luís, em 1930.
Por agora, encerremos esta série com uma das tiradas humorísticas de Rui, a quem um governista da imprensa pretendeu colocar em defensiva com a trapaceira afirmação de que não havia alternativa, exceto se Rui achasse “preferível a bancarrota”.
Respondeu o grande baiano:
“… se o achássemos, não cometeríamos maior crime do que o do presidente atual, quando o achava. Não se esqueça que essa era, se não nos falha a memória, a opinião dele, antes de ir à Europa. Não se pode esquecer que o órgão de S. Exª em S. Paulo então, numa série de editoriais que tiveram grande eco, pregou abertamente a suspensão dos pagamentos, e que esse alvitre, defendido na tribuna por um dos membros mais respeitáveis a todos os títulos na Câmara dos Deputados, encontrou as maiores simpatias no chefe atual da nação.
“A viagem à Europa mudou-lhe as ideias. Toda a gente, neste mundo, tem o direito de mudá-las, quando as muda sinceramente, por motivos de cuja integridade nunca duvidamos, como os que o levaram a mudar. Mas não é certo que nessa mudança houvesse mutação essencial, como parece ao seu insigne defensor; não é certo que S. Exª houvesse optado entre a bancarrota e alguma coisa que o não seja” (Rui Barbosa, “O funding e a bancarrota”, 20/06/1899, in Obras Completas, Vol. XXVI, Tomo V, p. 271).