(HP 22/01/2014)
CARLOS LOPES
Em meio a uma pesquisa sobre a situação e o movimento dos negros, um grande amigo, o maestro Marcus Vinícius de Andrade, fez uma sugestão – ao enviar-nos um texto dos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant – que resultou num caminho especialmente, ainda que inesperadamente, fértil.
O “inesperadamente” da frase anterior vai por conta do seguinte: não sou um admirador dos acadêmicos franceses, devido a tipos como Deleuze, Derrida – e, claro, Foucault, que já era alucinadamente reacionário muito antes de exibir, em 1979, seu deslumbramento com o neoliberalismo (por falar nisso, eis uma pérola dessa época: “Não se trata de deduzir todo esse conjunto de práticas do que seria a essência do Estado em si mesma e por si mesma. É preciso renunciar a tal análise, primeiro, simplesmente porque a história não é uma ciência dedutiva, segundo, por outra razão mais importante, sem dúvida, e mais grave: é que o Estado não tem essência. (…) O Estado nada mais é que o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de perpétuas estatizações (…). O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas” [M. Foucault, aula de 31/01/1979 no College de France, in “Nascimento da Biopolítica“, trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, S. Paulo, 2008, p. 105 e p. 106]).
No entanto, o texto de Bourdieu e Wacquant nada tem a ver com esse estéril rococó mental. O leitor poderá comprová-lo, pois iremos publicá-lo – talvez de forma condensada – em uma de nossas próximas edições.
Só não o fazemos hoje pela necessidade, a nosso ver, de propiciar aos nossos leitores um quadro mais amplo que permita um melhor entendimento das questões abordadas por Bourdieu e Wacquant.
Assim, recorremos ao livro de um deles, Loïc Wacquant, “Punir os Pobres: o governo neoliberal da insegurança social” (por sugestão do próprio autor em seu site, usamos a edição norte-americana – “Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity“, Duke University Press Books, Durham and London, 2009 – porque Wacquant desautorizou a versão do livro publicada, “contra minha expressa vontade”, na França em 2004; existe uma tradução brasileira – aliás, existem duas, ambas publicadas pela Revan).
CHICAGO
Loïc Wacquant é um caso, talvez, raro. Em uma entrevista, conta ele como, depois de obter “uma bolsa de quatro anos para meu doutorado na Universidade de Chicago (…) ao chegar à cidade de Upton Sinclair (…) vi-me confrontado com o quotidiano da realidade do gueto de Chicago. Habitava nas imediações do bairro negro e pobre de Woodlawn e era um choque terrível ter sob a minha janela aquela paisagem urbana quase lunar, inverossímil de ruína, de miséria, de violência, com uma separação totalmente hermética entre o mundo branco, próspero e privilegiado da universidade e os bairros negros ao abandono em volta (o campus de Hyde Park está rodeado em três lados pelo gueto de South Side e, no quarto, pelo lago Michigan). Isso questionava-me profundamente no dia a dia” – v. Etnográfica vol. 12 (2) (2008), entrevista à Susana Durão.
Na procura por compreender o que acontecera na história dos negros norte-americanos após o movimento de direitos civis na década de 60, Wacquant, inevitavelmente, confrontou-se com “a expansão espantosa do Estado penal ao longo dos três últimos decênios do século. Entre 1975 e 2000, os Estados Unidos multiplicaram por cinco a sua população sob registro prisional para se tornarem o líder mundial da encarceração, com 2 milhões de detidos – coisa que eu ignorava então (…) como todos os sociólogos que trabalhavam com raça e classe na América.
“Como se explica esta hiperinflação carcerária? A primeira resposta, a da ideologia dominante e da investigação oficial, é dizer que ela está ligada ao crime. Mas a curva da criminalidade estagnou, entre 1973 e 1993, antes de cair fortemente, no preciso momento em que o aprisionamento levantava voo.
“Segundo mistério: enquanto a proporção de negros em cada ‘coorte’ de criminosos foi diminuindo durante vinte anos, a sua parte na população carcerária não cessou de aumentar. Para resolver estes dois enigmas, é necessário (…) repensar a prisão como uma instituição política, uma componente central do Estado. Descobre-se então que o surgimento do Estado penal é o resultado de uma política de penalização da miséria, que responde ao crescimento da insegurança salarial e ao afundamento do gueto como mecanismo de controle de uma população duplamente marginalizada, no duplo plano material e simbólico.
Nesse momento, aconteceu algo que foi crucial para ele, do ponto de vista político: “Clinton avalizava a ‘welfare reform’ de 1996, elaborada pela facção mais reacionária do Partido Republicano. A abolição do direito à assistência social para as mulheres sem recursos e a sua substituição pela obrigação ao assalariamento forçado (dito worfare) é um escândalo histórico, em todo o século XX, a medida mais regressiva tomada por um presidente que era suposto ser progressista. Por indignação política, escrevi um artigo no Le Monde Diplomatique, depois um artigo mais aprofundado para uma revista de geografia política, a revista Hérodote. (…) a atrofia organizada do setor social e a hipertrofia do setor penal do Estado americano eram não somente concomitantes e complementares, mas visavam a mesma população, estigmatizada à margem do salariato. Tornava-se claro que a ‘mão invisível’ do mercado desregulado apela para e necessita do reforço do ‘punho de ferro’ da Justiça criminal“.
INSEGURANÇA
Não precisamos aceitar todas as teorias de Wacquant ou de Bourdieu – conceitos ou expressões como “capital jurídico”, “campo burocrático”, “masculinização (ou feminilização) do Estado”, etc., são bastante problemáticos, porque desnecessários – para aprender alguma coisa com eles.
O que importa, principalmente, é o conjunto de dados sobre as relações raciais e de classe sob o neoliberalismo, especialmente nos EUA – embora a polêmica teórica não seja uma contribuição sem proveito (v. o último capítulo de “Punir os Pobres”).
Wacquant – além de sociólogo e professor em Berkeley, um boxeur que lutava nos ringues dos bairros negros de Chicago – frisa fortemente a sua conclusão: o colossal aumento da população penitenciária dos EUA (+689,14% entre 1970 e 2012, de acordo com os dados do Bureau of Justice Statistics, órgão do Departamento de Justiça do governo dos EUA) “não corresponde ao aumento do crime – que primeiro estagnou e depois declinou durante três décadas cruciais – mas aos deslocamentos sociais causados pela dessocialização do trabalho assalariado e pelos cortes de gastos do Estado caritativo“. Ou, sob outra forma: “a rápida e furiosa inclinação para a penalização observada no fim do século passado não é uma resposta à insegurança criminal, mas à insegurança social. Para ser mais preciso, as correntes de ansiedade social que invadem a sociedade avançada têm raízes na insegurança social objetiva da classe trabalhadora pós-industrial, cujas condições materiais se deterioraram com a difusão do trabalho instável e mal remunerado, podado de seus ‘benefícios’ sociais habituais, e na insegurança subjetiva entre as classes médias, cujas perspectivas de reprodução sem sobressaltos ou de subir na vida foram ofuscadas pela intensificação da competição por posições sociais de valor e pela redução da provisão de bens públicos pelo Estado” (op. cit., p. 68 e p. 299-300).
Se podemos resumir ainda mais a conclusão de Wacquant, esta consiste em que a política social do neoliberalismo, tal como levada à prática nos EUA, é a cadeia para os pobres. Mais detalhadamente: o “neoliberalismo implica na ampliação e exaltação do setor penal (…). O remake neoliberal do Estado também explica o tenaz viés de classe, etnorracial, e a polarização espacial que sela a simultânea retração de seu seio social e a expansão de seu punho penal: as populações mais direta e adversamente impactadas pela mudança convergente do mercado de trabalho e da assistência pública são também os privilegiados ‘beneficiários’ da amplitude penal das autoridades. (…) embora [o neoliberalismo] propugne o laisser-faire nos estratos superiores, aliviando assim as restrições ao capital (…), não faz nada parecido nos estratos inferiores”.
AS GALÉS
Atualizando os números para 2012 (na edição do livro de Wacquant que citamos, eles vão até 1995; ainda não foram divulgadas as estatísticas de 2013): de acordo com o Bureau of Justice Statistics do governo dos EUA, em 31 de dezembro de 2012, o número de pessoas “sob controle das autoridades penais” nos EUA estava em 7.037.304 (sete milhões, 37 mil e 304 pessoas). Essas pessoas eram assim distribuídas:
Na prisão: 2.256.004 pessoas;
Em liberdade vigiada: 3.942.800 pessoas;
Em liberdade condicional: 851.200 pessoas.
[Fonte: BJS, Bulletin, December 2013 – Lauren E. Glaze and Erinn J. Herberman, “Correctional Populations in the United States, 2012”; números conferidos com o banco de dados do BJS; o item “na prisão” inclui tanto as prisões federais e estaduais (prisons) quanto as municipais (jails).]
Em suma, quase 2,5% da população dos EUA estava (e está) na cadeia ou sob alguma restrição penal, algo que não existe em nenhum país do mundo.
A China, em 2012, tinha mais de quatro vezes a população dos EUA. No entanto, tinha 1.565.771 presos – portanto, 690 mil presos a menos.
A Índia tem 3,9 vezes a população dos EUA – mas tem 358.368 presos, ou seja, sete vezes menos.
Loïc Wacquant frisa a desproporção racial (ou étnica, se o leitor quiser) dessa população penal. Outra vez, atualizando os seus números: em 2012, os negros eram 36,46% dos presos, 30% dos condenados em liberdade vigiada (probation) e 40% dos réus em liberdade condicional (parole) quando, na população, eles são, segundo o último Censo norte-americano, apenas 12,8%.
Enquanto isso, os brancos (não latinos) que são 63,7% da população total dos EUA, eram 33,12% dos presos, 54% daqueles em liberdade vigiada e 40% dos que estavam em liberdade condicional.
Wacquant faz a constatação de que esse foi não apenas o resultado de uma política deliberada de cortes no atendimento ao povo, como também que essa é a própria política pela qual a anterior foi substituída, tanto no plano federal quanto nos Estados. Não se tratava apenas de colocar na prisão os delinquentes pobres e/ou negros, mas de inventar novos crimes e penas. Por exemplo:
“só na década de 80, adicionalmente a reduzir a assistência pública, a Califórnia aprovou quase mil leis para expandir o uso de condenações à prisão; e, na instância federal, a reforma de 1996 (…) era complementar ao extenso Crime Omnibus Act de 1993, reforçado pela Lei de encarceramento direto [No Frills Prison Act] de 1995”.
ESTADO
Nos EUA, nota Wacquant, jamais houve – ao contrário de vários países da Europa após a II Guerra – um “Estado do bem estar social” (welfare state), mas havia o que o autor chama de “Estado caritativo”, com dois ramos: um dedicado à assistência dos mais pobres, agrupando alguns programas sob o nome genérico de “welfare” – que pouco tem a ver com o sentido da mesma palavra na Europa – e outro destinado aos trabalhadores de maior renda e à classe média, designado, em geral, como “social insurance“.
“Os programas dirigidos aos pobres foram as primeiras vítimas do movimento de reação sociopolítica que levou Reagan ao poder em 1980, o que logo fez sucesso entre os “Novos Democratas” de Clinton. Embora o custo do programa AFDC [Aid to Families with Dependent Children] nunca tenha chegado a 1% do orçamento federal, todos os governos depois de Carter promoveram à prioridade máxima a sua redução. E foram amplamente bem sucedidos”.
Em termos reais, a subvenção do AFDC para uma família de quatro pessoas sem nenhuma outra fonte de renda sofreu um corte de 46,15% entre 1970 e 1995 (cf. op. cit., p. 49; fonte: Committee on Ways and Means, US House of Representatives, 1996 Green Book, 443-45, 449). Porém, isso está muito longe de ser tudo:
“A segunda técnica para encolher o Estado caritativo não é orçamentária, mas administrativa: ela consiste em acumular os obstáculos burocráticos e pré-requisitos impostos aos postulantes (…). Sob o pretexto de identificar abusos e dificultar a vida dos ‘fraudadores do welfare’, as agências de assistência pública multiplicaram os formulários a preencher, o número de documentos a fornecer, a frequência dos controles e os critérios de reavaliação periódica do cadastro. Entre 1972 e 1984 o número de ‘recusas administrativas’ por ‘questões processuais’ aumentou em quase um milhão, dois terços delas diretamente contra famílias que estavam plenamente dentro de seus direitos. Assim, enquanto, em 1973, 81% das crianças pobres estavam cobertas pelo AFDC, quinze anos depois mais de 40% delas não recebiam a assistência financeira a que tinham direito”.
Se a situação era assim no governo federal, ela se estendeu rapidamente aos Estados: “no começo dos anos 90, diversos Estados ex-industriais com alto desemprego e altas taxas de pobreza urbana, tais como Pennsylvania, Ohio, Illinois e Michigan, acabaram unilateralmente com o General Assistance (…), jogando um milhão de pessoas na mais absoluta miséria em todo o país”.
Wacquant sublinha o quanto essa política de apartheid, ou de campo de concentração nacional, nada tinha a ver com a pregação de Estado mínimo ou de eficiência econômica dos neoliberais. Mas, nada havia ou há de contraditório nisso: “o Estado penal invasivo, expansivo e caro – que implica uma grande drenagem dos cofres públicos e um tremendo freio à economia – não é um desvio do neoliberalismo, mas um de seus ingredientes”.
Um dos conselheiros de Clinton na “reforma” de 1996 – que, como veremos, vitimou crianças e mulheres, sobretudo negras e latinas – foi o republicano John Engler, que, em 1991, como governador do Michigan, promoveu um dos mais irracionais barbarismos da história dos EUA, cortando programas sociais supostamente para “equilibrar o orçamento”. A verba do General Assistance, que atendia principalmente pobres e indigentes negros de Detroit, foi reduzida de US$ 342 milhões para zero em 1993, quando foi extinto. Esse programa atendia 82 mil pessoas. No mesmo ano, Engler destinou U$ 1,32 bilhão para encarcerar 44 mil pessoas – com um custo por prisioneiro que era 11 vezes a média do que recebiam os beneficiários do programa extinto. E, certamente, acrescentamos nós, não porque as prisões de Michigan fossem – ou sejam – algum Ritz ou Copacabana Palace.
“Enquanto a parcela de despesas nacionais alocadas para a assistência pública diminuía abruptamente em relação às necessidades, os fundos federais para a Justiça criminal foram multiplicados por 5,4 entre 1972 e 1990, saltando de menos de US$ 2 bilhões para mais de UA$ 10 bilhões, enquanto as verbas para encarceramento eram multiplicadas por 11. A voracidade financeira do Estado penal é ainda mais desenfreada no nível dos Estados. Somados, os 50 Estados e o Distrito de Columbia, em 1990, gastaram U$ 28 bilhões na rubrica Justiça criminal, 8,4 vezes mais que em 1972; durante esse intervalo, seus orçamentos para encarceramento aumentaram 12 vezes, enquanto o custo da defesa criminal dos indigentes (que são uma parte crescente dos acusados em tribunal) crescia 24 vezes”.
Além de uma epidemia de construções de penitenciárias (só o Estado da Califórnia gastou US$ 15 bilhões em 16 novas prisões – sem contar as despesas de custeio -, enquanto a previsão federal é de despesas de US$ 351 bilhões em 10 anos apenas para a edificação de outras casas de detenção), proliferaram as penitenciárias privadas.
Essas penitenciárias privadas, já em 1995, “acumulavam uma população de presos igual à da França inteira (49.154). As empresas que abrigam esses detentos recebem verbas públicas contra a promessa de míseras economias da ordem de uns poucos centavos por dia; multiplicados por milhares de cabeças, essas economias são a justificativa para a parcial privatização de uma das funções mais básicas do Estado. No final dos anos 90, um comércio de importação e exportação de presos estava florescendo entre diferentes membros da União: a cada ano o Texas trazia vários milhares de condenados dos Estados vizinhos – mas também de jurisdições mais longínquas, como o Distrito de Columbia, Indiana e Havaí -, em desrespeito ao direito de visita das famílias, mais tarde enviando-os de volta ao seu município de origem, onde serão mantidos em liberdade condicional até o fim de suas sentenças”.
2
(HP 24/01/2014)
Pretendíamos reduzir bastante o nosso resumo das observações de Loïc Wacquant, para encerrar sua publicação neste número. Infelizmente, um apagão acometeu a região onde se localiza a nossa redação. Devido a isso, ficamos sem tempo de reduzir o texto (como dizia o padre Antônio Vieira em carta a um amigo, “desculpe-me, pois não tive tempo para ser breve”). Sua última parte será publicada na próxima edição. Em sua palestra na sede do Goldman Sachs, em Nova Iorque, a presidente Dilma afirmou que “a gestão privada é mais eficiente, mais ágil e de menor custo” – referia-se, evidentemente, à gestão privada estrangeira em relação à gestão pública nacional, estatal, pois estava falando para especuladores norte-americanos, oferecendo a eles a infraestrutura do nosso país. Aqui no Brasil, nós já temos grandes exemplos dessa eficiência, agilidade e modicidade da gestão privada estrangeira: a AES Eletropaulo e a Telefónica, por exemplo.
Continuemos, pois, com um exemplo do tratamento que a ditadura neoliberal dos EUA reserva ao povo de seu próprio país:
“O estabelecimento de toques de recolher, visando manter os menores fora das ruas depois do anoitecer, aplicados essencialmente nos hiperguetos e bairros pobres, é emblemático do aumento da propensão do Estado americano para atirar seu arrastão de polícia e punição mais amplo somente naquelas muitas regiões onde está retraindo a sua rede de segurança [social]. Apontando para o aumento de crimes violentos atribuíveis (ou reflexamente atribuídos) a gangs, 59 das 77 maiores cidades do país instituíram tais proibições, metade delas entre 1990 e 1994. Em Chicago, uma portaria municipal proíbe pessoas com menos de 16 anos de ficar na rua sem autorização entre as 22:30h (nos fins de semana, 23:30h) e 6:00. Desde a metade dos anos 90, numerosos estudos constataram que os toques de recolher não têm qualquer efeito supressivo sobre o crime nas ruas ou sobre os delitos juvenis, e, mesmo, tem sérias consequências criminogênicas. O certo é que esses toques de recolher aumentam de modo significativo as chances de encarceramento de jovens residentes nos bairros urbanos pobres. De acordo com dados do FBI, perto de 75.000 jovens foram presos com essa base em 1992, duas vezes mais do que por roubo (excluindo o roubo de carros) nesse ano. A taxa de prisões por atrasos e violações do toque de recolher mais do que dobrou entre 1992 e 1997, quando atingiu o pico de 700 por 100.000 jovens” (v. “Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity“, Duke University Press Books, Durham and London, 2009, p.68).
CAPITULAÇÃO
Agora, vejamos como o governo Clinton aderiu covardemente – abrindo o caminho, inclusive, para a gravíssima crise econômica que explodiu depois – a essa política de apartheid ou campo de concentração, fazendo o Partido Democrata arrastar na lama (Obama não é um acidente) todo o ideário desenvolvido a partir do governo Franklin Delano Roosevelt (1933–1945):
“A ‘reforma’ do welfare aprovada pelo Congresso dos EUA e sancionada como lei, no meio de fanfarras, por William Jefferson Clinton em agosto de 1996, causou uma grande comoção nos dois lados do Atlântico. Nos Estados Unidos, a decisão do presidente de endossar uma série de medidas preparadas pelo setor mais reacionário do Partido Republicano, jogando na beira da estrada alguns dos avanços sociais mais preciosos do New Deal e da guerra à pobreza dos anos 60, não poderia deixar de perturbar o establishment democrata e abalar os seus tradicionais aliados. Numerosas vozes se levantaram, mesmo dentro do governo, para denunciar essa inversão política e a renegação que ela implicava” (v. L. Wacquant, “Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity“, Duke University Press Books, Durham and London, 2009, p. 77).
FALSA REFORMA
“Vários altos funcionários do Departamento de Saúde e Serviços Sociais, entre eles o diretor de seu ramo de pesquisas, pediram demissão em protesto ao que, segundo as projeções de sua equipe, a dita ‘reforma’ causaria: um crescimento significante das dificuldades para a maior parte dos pobres dos EUA, especialmente as crianças (Clinton recusou-se, aliás, a transmitir ao Congresso os resultados de tais estudos, temendo publicidade negativa).
“A presidente do Children’s Defense Fund, uma íntima amiga pessoal dos Clinton, rompeu publicamente com o casal presidencial, chamando a decisão do líder dos ‘Novos Democratas’ de ‘um ultraje’ (v. “Edelman Decries President’s Betrayal of Promise ‘Not to Hurt Children’“, New York Times, 31/07/1996).
“Organizações religiosas, sindicatos, políticos, acadêmicos e ativistas dos direitos sociais, condenaram unanimemente a ‘reforma’. Mesmo o senador centrista Daniel Patrick Moynihan, ponta-de-lança da onda anterior de alteração do welfare, que resultou na aprovação do Family Support Act de 1988, denunciou-a como uma segura fórmula para ‘aumentar a pobreza e o descaso’. E seu colega Paul Simon, de longa data um apoiador de Clinton, tocou o sino de alarme de que a assinatura do pacote do welfare mancharia para sempre o legado do presidente.
“Hugh Price, presidente da Urban League, embora conhecido por sua moderação, resumia o ponto de vista das organizações progressistas nos seguintes termos: “Esta lei é uma execração para as mães e as crianças mais vulneráveis da América. Parece que o Congresso cansou-se da guerra contra a pobreza e decidiu fazer em seu lugar uma guerra contra os pobres” (“Welfare hysteria”, The New York Times, 5/08/1996, p. A 11).
ASFIXIA
“Mas o debate foi rapidamente abafado por imperativos eleitorais: tinha-se que tomar cuidado para não interferir com a campanha de reeleição do presidente. Clinton não hesitou em usar esta lei como último recurso para chantagear a ala esquerda de seu próprio partido, argumentando essencialmente o seguinte: “calem-se e reconduzam-me à Casa Branca, pois eu sou o único capaz de suavizar os efeitos mais nefastos desta ‘reforma’”. Quanto às forças conservadoras do país, elas só podiam comemorar, ao ver o presidente aderir às suas posições e ratificar um texto de lei em todos os pontos similar àquele que ele mesmo havia vetado duas vezes alguns meses antes (antes da abertura da temporada eleitoral). Assim, a United States Chamber of Commerce, principal organização patronal do país, regozijou-se com o fato de o presidente ter reafirmado ‘a ética do trabalho da América’, enquanto Newt Gingrich, líder dos republicanos no Congresso, evocava com lirismo um ‘momento histórico em que trabalhamos juntos para fazer algo de muito bom para a América’.
“Na Europa, e singularmente na França, não faltaram comentaristas, tão apressados quanto mal informados (a coroa ficaria, sem dúvida, com Claude Imbert, por seus editoriais asininos no Le Point), para apresentar tal medida como um avanço corajoso de um presidente ‘de esquerda’, visando a ‘adaptação’ necessária dos sistemas de proteção às novas realidades econômicas. Segundo esta visão, na qual a ignorância das realidades americanas concorre com a má-fé ideológica, Clinton traçaria o caminho a ser seguido pelas sociedades esclerosadas do Velho Mundo. Este seria o preço da eficiência e do sucesso na impiedosa competição econômica mundial” (v. “Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity“, Duke University Press Books, Durham and London, 2009).
CONTEÚDO
A dita “reforma” dos serviços sociais de Clinton consistia “em abolir o direito à assistência para as crianças mais desfavorecidas e substituí-lo pela obrigatoriedade do salariado desqualificado e subpago para seus pais. Ela afeta apenas um setor menor dos gastos sociais do Estado americano – aqueles voltados para as famílias pobres, os enfermos e os indigentes -, excluindo os programas que beneficiam as classes médias, habitualmente reagrupados sob a denominação social insurance, por oposição ao termo maldito welfare (N.A: Temos aí um caso particular de “allodoxia” [tomar um conceito por outro] favorecido pela reinterpretação descontrolada – pois, na maior parte dos casos, inconsciente – que um termo do debate sociopolítico sofre ao passar de um quadro nacional a outro. Assim, os observadores europeus traduzem welfare por Estado do bem estar social, o que remete ao conjunto de sistemas de proteção e de transferência social universalista, enquanto os americanos abrigam sob esta denominação apenas os programas categoriais reservados às populações dependentes da caridade de Estado).
“Longe de inovar, essa ‘reforma’ só fez reciclar remédios vindos diretamente da era colonial e que, no passado, já deram provas de sua ineficácia (v. Michael Katz, ‘In the Shadow of the Poorhouse: A Social History of Welfare in America“’ Basic Books, NY, 1996): estabelecer uma demarcação categórica entre pobres ‘merecedores’ e pobres indolentes, empurrar estes últimos, através da coação, para os segmentos inferiores do mercado de trabalho e ‘corrigir’ os comportamentos supostamente desviantes e desviados que seriam a causa da miséria de uns e outros.
“Sob o manto da ‘reforma’, a ‘lei sobre a responsabilidade individual e o trabalho’, de 1996, instaura o dispositivo social mais retrógrado promulgado por um governo democrático no século XX. Sua aprovação confirma e acelera a substituição progressiva de um (semi) Estado do bem estar para um Estado carcerário e policial, no seio do qual a criminalização da marginalidade e a contenção punitiva das categorias deserdadas fazem as vezes de política social” (op. cit.).
CONTA
“O objetivo declarado dessa lei é combater não a pobreza, mas a pretensa dependência das famílias assistidas em relação aos programas sociais, ou seja enxugar os efetivos e os orçamentos dos programas consagrados aos membros mais vulneráveis da sociedade americana: as mulheres e as crianças do proletariado e do subproletariado e secundariamente os velhos sem recursos e os imigrantes recentes.
“De fato, a reforma de 1996 não toca no Medicare, a assistência médica dos assalariados aposentados, nem nas caixas de aposentadoria Social Security, que, no entanto, são as principais fontes de gastos sociais do Estado americano, com 143 e 419 bilhões de dólares respectivamente, em 1994 [N. HP: O Medicare e a Social Security são, precisamente, o objetivo dos cortes – isto é, da infame “reforma” – de Obama].
“[A “reforma” de Clinton] atingiu exclusivamente os programas reservados aos mais pobres, o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), o Supplemental Security Income (SSI, que atende idosos indigentes e enfermos) e os tíquetes de alimentação (food stamps). Estes programas cobriam apenas uma fração da população oficialmente classificada como pobre: 39 milhões de americanos viviam abaixo do “limiar federal de pobreza”, mas menos de 14 milhões (dos quais 9 milhões são crianças) recebiam a verba AFDC (US$ 15 mil por ano – ou US$ 1.250 por mês – para uma família de quatro pessoas). Em 1992, 43% das famílias pobres recebiam alguma ajuda pecuniária, 51% cupons alimentares e apenas 18% se beneficiavam de um auxílio-moradia.
“São os beneficiários da AFDC e dos food stamps que pagaram a conta da “reforma”, embora estes programas sejam dez vezes menos custosos que aqueles reservados às classes médias, com 22 bilhões anuais para a AFDC (contabilizando gastos federais e locais juntos) e 23 bilhões para a assistência alimentar. Pois a “lei sobre a responsabilidade individual e o trabalho” prevê a economia de 56 bilhões de dólares em cinco anos, reduzindo o montante das verbas, colocando um teto para sua distribuição e excluindo de seu campo milhões de pessoas com direito a elas – das quais uma maioria de crianças e de pessoas idosas sem recursos.
“Estas medidas draconianas são populares junto ao eleitorado – das classes médias brancas – porque o setor do welfare é percebido essencialmente como beneficiador dos negros. Não importa se a maioria desses beneficiários AFDC são de origem europeia (39% dos beneficiários AFDC são brancos, 37% são afro-americanos e 18% latinos), a ideia fixa continua a ser que a assistência aos pobres só serve para manter na ociosidade e no vício os habitantes do gueto, nos quais encorajaria os “comportamentos antissociais” que o termo meio erudito, meio jornalístico underclass denota ou denuncia. A associação estreita entre assistência social e cor da pele torna os programas particularmente vulneráveis no plano político. Ela permite mobilizar contra este setor do Estado caritativo a força dos estereótipos raciais e dos preconceitos de classe que, ao se combinarem, fazem do pobre do gueto um parasita social, quiçá um verdadeiro “inimigo” da sociedade americana (N.A.: A dimensão racial da “reforma” dos auxílios sociais, fortemente eufemizada, mas onipresente no debate político americano, passou completamente despercebida dos comentaristas europeus).
ABERRAÇÕES
“A justificativa para os cortes brutais é que a assistência social é excessivamente generosa, que ela solapava a vontade de trabalhar de seus beneficiários e que ela sustenta uma ‘cultura de dependência’ tão nociva para os interessados quanto para o país e que essa cultura, por sua vez, explica o aumento dos nascimentos fora do casamento e a sequência de caracteres patológicos que supostamente vêm com eles.
“No debate da ‘reforma’ de 1996, quatro figuras racializadas foram juntadas para oferecer encarnações vivas da dependência e de suas consequências corrosivas: 1) a “rainha do welfare“, uma astuta e fecunda matriarca negra que foge do emprego, trapaceia a burocracia da assistência pública e gasta seu alto cheque da assistência em drogas e bebidas, deixando seus muitos filhos em terrível negligência; 2) a mãe adolescente afro-americana, um “bebê tendo bebês”, cuja imaturidade só é igualada por sua depravação moral e sexualidade devassa; 3) o “pai ausente” de classe baixa, geralmente negro e desempregado, que engravida mulheres a torto e a direito para levianamente abandoná-las, e a seus filhos, aos cuidados dos contribuintes; 4) e o idoso imigrante do Terceiro Mundo que se esgueira para dentro dos EUA com o objetivo de manipular o welfare e obter, gratuitamente, uma aposentadoria de alta classe.
“Esse quarteto caricatural, orquestrado por um fluxo interminável de informes jornalísticos, políticos e acadêmicos, foi apresentado como a prova viva da natureza fundamentalmente corruptora da assistência pública. O obsessivo foco sobre essas quatro figuras, lideradas pela escandalosa ‘rainha do welfare’, era tão manipulatório que ofuscava o fato de que os beneficiários do AFDC eram, na maioria esmagadora, crianças e não adultos (8,8 milhões contra 3,9 milhões em 1996). Isto significava que as consequências negativas da reforma do welfare seriam suportadas, não por estroinas que esquivavam-se de seus deveres morais, mas principalmente por menores que não podiam ser responsáveis diante das normas de trabalho, sexualidade e matrimônio (ou pagar pelo suposto erro de conduta dos seus pais)”.
3
(HP 29/01/2014)
A razão principal nossa para apresentar este resumo algo alentado de alguns livros e artigos do sociólogo francês Loïc Wacquant está em que, em geral, a visão que as pessoas – mesmo aquelas que já conquistaram uma consciência decididamente anti-imperialista – têm da sociedade dos EUA, frequentemente é contaminada pela propaganda imperialista, ou seja, pela mídia.
Há um aspecto, já frisado em outros termos, que é evidente: uma sociedade totalmente privatizada é uma sociedade hostil para a maioria da população – pois esta não tem, em geral, nada além do que é público. Aliás, uma sociedade assim é hostil até para os setores empresariais privados que não são monopolistas. Não há melhor demonstração prática dessa verdade do que os EUA, quando as conquistas do New Deal – e posteriores – foram (e estão sendo) quase totalmente aniquiladas.
“Um único exemplo é suficiente para indicar os efeitos devastadores desse retrocesso: enquanto os custos e lucros da medicina ‘de mercado’ decolavam, em Chicago o número de hospitais comunitários (isto é, aqueles acessíveis às pessoas sem cobertura médica privada) diminuíam de 90 em 1972, para 67 em 1981, e 42 em 1991. Nesse ano, exceto o sucateado e superlotado Cook County Hospital, nenhum centro de saúde, na cidade inteira, fazia exame pré-natal em mães sem seguro-saúde privado”.
Chicago é a terceira maior cidade dos EUA – logo após Nova Iorque e Los Angeles.
DESEMPREGO
Clinton apresentou o corte de investimentos sociais como a substituição da assistência social (welfare) pelo trabalho (literalmente: “welfare to work“). Mas não havia qualquer política de emprego. Assim, empurrou boa parte dos que antes recebiam alguma assistência estatal para atividades ilegais.
As contas sobre gastos citadas durante a tramitação no Congresso dessa lei – um calhamaço de “mais de 251 páginas, composto por 913 seções (…), baseado em colocar fora da lei a pobreza persistente” – eram manifestamente falsas.
“… o valor real das subvenções do programa AFDC baixara para metade em 25 anos, passando da média de 676 dólares por mês, em 1970, para 342 dólares em 1995 (em dólares constantes de 1995), o que é menos da metade da linha de pobreza (House of Representatives, 1994, p. 324).
“Isto significa que as famílias que conseguiam recebê-la não podiam, de modo algum, ‘depender’ dessa verba e tinham, obrigatoriamente, de encontrar outras rendas para garantir a própria sobrevivência. Além disso, metade dos beneficiários deixava o programa no ano seguinte à inscrição; dois anos depois, esse contingente subia para dois terços. Em outras palavras, a verba AFDC estava longe de ter se tornado um way of life transmitido através de gerações, ao modo de uma doença genética, como alegavam os ideólogos neoconservadores e seus epígonos entre os Novos Democratas.
“No papel, a ‘reforma’ preconizada por Clinton visava ‘fazer as pessoas passarem da assistência ao emprego’. Mas, por um lado, a maioria das mães assistidas já exerciam uma atividade remunerada, embora nas margens da força de trabalho. Além disso – o que é revelador das intenções dos legisladores – a lei não tinha componente algum de emprego no seu texto. Não havia uma única medida na lei que tivesse como objetivo a melhora das opções e condições de emprego enfrentadas pelos beneficiários do welfare. (…) As ‘oportunidades de emprego’ às quais os legisladores fizeram copiosas referências, consagradas no nome da lei, foram deixadas inteiramente à benevolência dos empregadores. Na fase final da campanha presidencial de 1996, Clinton fez um retumbante apelo à consciência cívica das corporações, igrejas e organizações filantrópicas para que elas criassem ‘os empregos necessários para que a reforma tenha sucesso’, argumentando que os patrões que se queixam incessantemente do welfare têm a obrigação moral de empregar os (ex)beneficiários das verbas públicas. Era uma maneira de se desobrigar com antecedência do previsível fracasso sobre o emprego da dita ‘reforma’.
“Mas é difícil ver como e por que as empresas começariam subitamente a empregar em massa uma população cruelmente subqualificada (a metade dos beneficiários AFDC não terminou o secundário e apenas 1% possui diploma universitário) e fortemente estigmatizada, num momento em que o mercado já estava inundado de mão de obra barata” (grifo nosso).
POBREZA
“A nova lei foi cuidadosa para evitar o confronto com as causas econômicas da pobreza: a estagnação na mediana renda familiar e o declínio ininterrupto do valor real do salário mínimo nas duas décadas anteriores (de US$ 6,50 em 1978 para US$ 4,25 em 1996, em dólares constantes de 1996); o crescimento explosivo dos chamados postos de trabalho precários, que compõem mais de um quarto da força de trabalho do país no fim do século passado; a erosão da cobertura social e médica para trabalhadores menos qualificados; a persistência de taxas de desemprego astronômicas nos bairros da periferia das grandes cidades, bem como em remotos condados rurais; e a relutância pronunciada dos empregadores em contratar moradores do gueto e beneficiários desqualificados do welfare. É mais conveniente, e mais rentável eleitoralmente, lançar um injurioso retrato dos pobres, ou, ao invés, alimentar o ressentimento do eleitorado para com aqueles que recebem ‘esmolas’ do Estado”.
CÁRCERES
Porém, “enquanto Bill Clinton proclamava aos quatro cantos do país seu orgulho por ter posto fim à era do ‘big government’, sob o comando de seu sucessor esperado, Albert Gore Junior, a Comissão de Reforma do Estado Federal dedicou-se a suprimir programas e empregos públicos, 213 novas prisões foram construídas – número que exclui os estabelecimentos privados que proliferaram com a abertura de um lucrativo mercado privado de carceragem. Ao mesmo tempo, o número de empregados apenas nas prisões federais e estaduais passava de 264.000 para 347.000, dos quais 221.000 guardas carcerários. No total, a ‘penitenciária’ contava mais de 600.000 empregados em 1993, o que fazia dela o terceiro empregador do país, atrás apenas da General Motors, primeira firma no mundo por sua magnitude de negócios, e a cadeia de supermercados internacional Wal-Mart. De fato, segundo o Bureau do Censo, a formação e contratação de guardas de prisão é, de todas as atividades do governo, a que cresceu mais rápido durante aquela década.
“O orçamento da administração penitenciária da Califórnia subiu de menos de 200 milhões de dólares em 1975 para mais de 4,3 bilhões em 1999 (isso não é um erro de imprensa, é efetivamente 22 vezes mais) e supera desde 1994 aquele destinado às universidades públicas, por muito tempo tidas como a joia do estado. Os guardas californianos eram menos de seis mil quando Ronald Reagan entrou na Casa Branca; hoje são mais de 40 mil a trabalhar nas penitenciárias do Golden State. Efetivos aos quais se acrescentam 2.700 parole officers encarregados de supervisionar os 107.000 em liberdade condicional, contratados por 131 escritórios em 71 localidades. Seu salário médio era de 14.400 dólares por ano em 1980; eleva-se atualmente a 55.000 dólares, ou seja, 30% a mais que um professor assistente na Universidade da Califórnia. Em uma década, a Califórnia engoliu 5,3 bilhões de dólares construindo e renovando celas, e contratou mais de 10 bilhões de dólares de dívidas obrigatórias para fazê-lo. Cada novo estabelecimento custa em média a bagatela de 200 milhões de dólares para 4.000 detentos e requer a contratação de mil guardas. Nesse período, as autoridades não conseguiram verbas necessárias para inaugurar um novo campus universitário, promessa de longa data, a fim de dar vazão ao aumento contínuo da quantidade de estudantes” (v. Wacquant, “As Prisões da Miséria“, trad. André Telles, 2004 – este livro, publicado pela primeira vez em 1999, contém um conjunto impressionante de informações sobre o Estado policial norte-americano antes dos dois “atos patrióticos” que suspenderam as garantias constitucionais. Infelizmente, só é possível reproduzi-las numa pequena e pálida medida).
SÍNTESE
É quase impossível resumir a regressão racista e a guerra civil contínua contra os pobres, sobretudo quando negros, que o neoliberalismo desencadeou nos EUA – e, como nota Wacquant, a partir dos EUA, especialmente de Manhattan, exportou para outros países.
“Em 1950, 70% dos que entravam na prisão eram brancos (anglo-saxões). (…) Contrariamente à percepção comum, a predominância de negros atrás das grades não é um padrão de longa data, mas um novo e recente fenômeno, com o ano de 1988 como ponto de virada: o ano em que o então vice-presidente George Bush (o pai) fez, durante a campanha presidencial, o seu infame anúncio sobre Willie Horton, com a inclusão de sinistras imagens do estuprador negro de uma mulher branca como emblemáticas do ‘problema do crime’ contemporâneo”.
[N.HP: Willie Horton era um detento negro de Massachussets que, incluído em um programa de licenças da prisão, cometeu roubo de armas, assalto a mão armada e estupro. O objetivo de Bush com esse anúncio era atingir seu adversário democrata na campanha eleitoral, o governador de Massachussets, Michael Dukakis – o que, aliás, conseguiu. Talvez seja uma questão de justiça acrescentar que o primeiro a usar o caso Horton contra Dukakis foi seu colega de partido Al Gore, quando disputava a indicação democrata, nas eleições primárias de Nova Iorque.]
Em “Prisões da Miséria” (1999), Wacquant sintetiza o problema geral do seguinte modo:
“A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. (…) à atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro” (grifo do autor).
BOLSAS
Houve, inclusive antes da lei de Clinton, outros requintes de perversidade. Com uma população carcerária composta por uma maioria de condenados a penas desproporcionais aos seus delitos, e centenas de milhares de jovens entre eles, em 1994 todos os presos dos EUA, sem exceção, foram, por lei, proibidos de se candidatar às Bolsas Pell (Pell Grants) – o sistema federal de financiamento do ensino universitário, mais semelhante ao crédito educativo do que ao Prouni, porque os estudantes têm de pagar, depois de formados.
“Nos debates parlamentares e nos meios de comunicação, os opositores ao financiamento federal do ensino superior nos estabelecimentos prisionais exageraram desmesuradamente o seu alcance e peso financeiro, alegando que as bolsas atribuídas aos reclusos tinham sofrido um ‘aumento exponencial’ para US$ 200 milhões e que em breve ultrapassariam a marca de US$ 1 bilhão. (…) O senador Kay Bailey Hutchison, do Texas, caiu no ridículo de afirmar que condenados astutos estavam cometendo crimes com o objetivo expresso de conseguirem um curso superior grátis atrás das grades (v. Ata do Congresso, Senado dos EUA, 103º Congresso, vol. 139, nº 157, novembro 1993, sessão de terça-feira 02/11/1993).
“Na realidade, à época em que foram excluídos, os criminosos que recebiam bolsas federais para estudar não totalizavam 200 mil (como disseram seus detratores), mas apenas 27 mil, representando uma despesa total de US$ 35 milhões, isto é, apenas 0,5% do total do programa Pell, que tinha verbas de US$ 6,3 bilhões” (Loïc Wacquant, “La race comme crime civique“, Revue Internationale des Sciences Sociales , 2005/1, n° 183, p. 138-139).
SEGURO-DESEMPREGO
“A miséria dos programas assistenciais e o esplendor dos cárceres e penitenciárias dos Estados Unidos são os dois lados de uma mesma moeda política”, escreve Wacquant. “A potência social da denegada forma de etnicidade chamada raça e a ativação do estigma da negritude são chaves para explicar a atrofia inicial e a decadência acelerada do Estado social norte-americano na era posterior ao movimento dos direitos civis, por um lado, e, por outro, a surpreendente facilidade e celeridade com que o Estado penal surgiu sobre suas ruínas (…) no mesmo momento em que o Estado declara sua incapacidade para controlar os fluxos de capitais”.
Assim, se atiraram contra uma das principais conquistas do New Deal, do presidente Franklin Delano Roosevelt:
“Em 1975, o seguro-desemprego, instaurado pelo Social Security Act de 1935, cobria 76% dos assalariados que perdiam o emprego; em 1980, este número havia caído para um em cada dois, devido a restrições administrativas aprovadas pelos Estados e da multiplicação de empregos ditos ‘eventuais’; e, em 1995, se aproximava de um trabalhador em cada três. Enquanto a cobertura encolhia, a média do valor real dos benefícios estagnou por 20 anos em US$ 185 por semana (em dólares constantes de 1995), desembolsados por míseras 15 semanas, dando à maioria das pessoas sem emprego uma ‘esmola” que as colocava abaixo da linha da pobreza.
“O mesmo para a invalidez – cuja taxa de cobertura caiu de 7,1 assalariados em mil em 1975 para 4,5 mil em 1991 – e para a moradia. Em 1991, segundo as estatísticas oficiais, uma família americana em cada três era “housing poor“, isto é, incapaz de garantir ao mesmo tempo suas necessidades básicas e a própria moradia, enquanto contava-se entre 600 mil e 4 milhões o número dos sem-teto. Paralelamente, o orçamento federal destinado à moradia passava de 32 bilhões de dólares em 1978 a menos de 10, em dólares correntes, um decênio depois, acumulando um corte de 80% em termos reais (…). quando o programa Comprehensive Education and Training Act (CETA) terminou em 1984, desapareceram mais de 400 mil empregos públicos acessíveis para as pessoas sem qualificação.
CENSO
“No fim de 1994, apesar de dois anos de crescimento econômico sólido, o US Census Bureau anunciou que o número oficial de pobres nos EUA tinha ultrapassado 40 milhões, ou 15% da população do país – a mais alta taxa em uma década. No total, uma família branca em 10 e um lar afro-americano em três vivia abaixo da ‘linha de pobreza’ federal. Este número escondia a profundidade e intensidade de sua negligência, na medida em que esse limite, calculado de acordo com uma fórmula arbitrária e burocrática que data de 1963 (baseada no consumo familiar de 1955), não leva em conta o verdadeiro custo de vida e a mudança na composição da cesta dos gêneros de primeira necessidade, e tem sido estabelecido cada vez mais baixo ao longo dos anos: em 1965 a linha de pobreza estava em cerca de metade da mediana da renda nacional familiar; trinta anos depois, ela estava em um terço.
“Em 1991, 14% das famílias americanas recebiam menos que 40% da mediana da renda nacional, contra 6% na França e 3% na Alemanha. Estas diferenças eram consideravelmente mais pronunciadas entre famílias com filhos (18% nos EUA versus 5% na França e 3% para seus vizinhos além do Reno), sem mencionar as famílias monoparentais (45% nos EUA, 11% na França, e 13% na Alemanha). Dificilmente isto seria surpreendente quando o salário mínimo por hora é estabelecido tão baixo que um empregado trabalhando em tempo integral todo o ano ganhava em torno de U$ 700 por mês em 1995, colocando-os 20% abaixo da linha de pobreza para uma família de três pessoas, e quando a assistência social é calculada para estar bem abaixo desse salário com o objetivo de evitar a criação de ‘desincentivos’ ao trabalho”.
E por aqui ficamos, leitores, temerosos de transcrever tantas coisas que, embora verdadeiras, não são agradáveis. Mas, no momento em que há sujeitos tão submissos que ficam maravilhados pela ditadura neoliberal dos EUA – tão maravilhados que até querem presenteá-la com o nosso país – talvez não seja excessivo.