“A economia dos Estados Unidos desindustrializou-se e depende de compras multimilionárias no exterior, o que aumentou incessantemente a sua dívida interna e externa. E a economia da China está a caminho de ultrapassá-la, se é que já não o fez, em avanços tecnológicos e desenvolvimento industrial”
O professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Sevilha, Juan Torres López, faz, neste artigo, que ora publicamos no HP, uma análise detida da atual situação do mundo e dos EUA e aponta que Trump está interessado em jogar a Europa numa guerra contra a Rússia para seguir vendendo armas e também enfraquecendo um grande aliado da China. O autor revela que a pressa do atual ocupante da Casa Branca em obter dólares de outros países está relacionado ao agravamento de seu declínio econômico e á dificuldade de seguir bancando seu poderio militar.
“Para financiar a astronômica quantidade de despesas militares de que necessita (gastou 997 bilhões de dólares em 2024), os Estados Unidos têm recorrido até agora à procura de dólares por parte de outros países. Só isso lhe permitiu financiar a imensa dívida gerada pela sua estrutura militar e também uma economia cada vez mais fraca, por mais superior que continue a ser em relação aos outros países”, apontou o economista.
“Dito de outra forma mais fácil de compreender”, prossegue o autor, “para poder financiar o seu aparelho militar, os Estados Unidos precisam que as outras economias precisem da sua moeda”. Mas ele mostra que, pela primeira vez em 30 anos, o ouro havia superado os títulos do Tesouro dos Estados Unidos nos balanços dos bancos centrais.
López registra que a superação do ouro sobre o dólar é fruto do aprofundamento da crise dos EUA. “Se o dólar foi (e continua a ser) a principal moeda de reserva nos mercados internacionais, foi graças ao poder econômico do país que o emite, os Estados Unidos. E se os seus títulos eram o ativo mais desejado, era porque eram considerados os mais seguros. Se agora estão a deixar de ser desejados, é porque isso já não acontece na mesma medida”, afirmou o professor.
O economista adverte que, dos três pilares que sustentaram o domínio imperial dos EUA – poder econômico, a existência do dólar como moeda de reserva e referência de toda a economia mundial e a hegemonia militar -, apenas a última ainda se mantém, mas, mesmo assim, questionada cada vez mais pelo poderio da China.“Poder-se-ia acrescentar o seu poder cultural e mediático, não menos importante, mas do qual não me ocuparei aqui”. A incapacidade de seguir obtendo os dólares para financiar o poderio militar é, segundo o autor, o que acirra as tensões mundiais. Confira o artigo na íntegra!
O ouro está destronando os títulos dos Estados Unidos
JUAN TORRES LÓPEZ [*]
Há alguns dias, um conhecido analista de mercados, Octavio Costa, publicou um gráfico que mostrava que, pela primeira vez em 30 anos, o ouro havia superado os títulos do Tesouro dos Estados Unidos nos balanços dos bancos centrais.

Num artigo do Financial Times, afirmava-se que essa observação ainda não era precisa, porque o fenômeno se devia mais ao aumento dos preços do ouro do que ao aumento das suas compras; e, além disso, porque os cálculos das reservas são muito complexos e talvez isso implique que, na realidade, não haja tanto ouro nos balanços como se diz. No entanto, a Bloomberg assegurava, pelo contrário, que os bancos centrais têm comprado muito mais ouro do que declaram.
De qualquer forma, todas as análises coincidem no essencial: os títulos americanos e o dólar são cada vez menos desejados como ativos de reserva e a sua procura cai em benefício do ouro, que os ultrapassa, como já aconteceu com o euro há algum tempo. Tudo indica que o volume de compras de ouro que os bancos centrais terão feito no final de 2025 será o mais elevado desde 1967 e, em poucos meses, será um fato que efetivamente ultrapassa os títulos.
Este fenômeno é muito relevante e significativo, tem causas muito claras e uma consequência que pode ser dramática, sobretudo para a Europa, se não for evitada.
Por que razão se está a acumular cada vez mais ouro em detrimento do dólar e dos títulos dos Estados Unidos?
Se o dólar foi (e continua a ser) a principal moeda de reserva nos mercados internacionais, foi graças ao poder econômico do país que o emite, os Estados Unidos. E se os seus títulos eram o ativo mais desejado, era porque eram considerados os mais seguros.
Se agora estão a deixar de ser desejados, é porque isso já não acontece na mesma medida, devido às seguintes razões, entre outras de menor importância:
1 – A economia dos Estados Unidos já não é a potência industrial e comercial indiscutível e mais poderosa do mundo e, por isso, a sua moeda sofre, por mais longe que Trump queira ir com as tarifas.
2 – Os Estados Unidos aplicaram sanções financeiras em vários momentos e a diferentes países, o que foi possível porque estes dispunham de ativos denominados em dólares. Poderiam evitá-las mais facilmente se as suas reservas estivessem noutros valores seguros, como o ouro. Muitos países ameaçados pelos Estados Unidos fogem do dólar por essa razão.
3 – Os títulos dos Estados Unidos são emitidos para financiar a sua dívida, mas esta já ultrapassou os 37,5 trilhões de dólares e a cada dia há mais risco de se tornar insustentável. Talvez não tanto pelo risco de incumprimento, mas pela probabilidade de um volume tão impressionante de dívida provocar uma forte inflação e a perda de valor do dólar e dos títulos.
4 – Como é sabido e apesar das ameaças de Trump, o grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), além de alguns outros países, está a afastar-se rapidamente do dólar, tentando criar o seu próprio sistema monetário e até mesmo uma nova moeda. Por mais lento que seja o processo, a desdolarização é uma opção estratégica de primeira ordem que cada vez mais países estão a seguir.
5 – As novas formas de funcionamento do sistema financeiro estão a permitir que o ouro se torne um ativo facilmente negociável e liquidável, o que facilita a sua utilização.
6 – Em particular, está em curso um processo de mudança monetária a nível internacional que trará consigo o aparecimento de novos tipos de moedas, digitais, baseadas em matérias-primas ou emitidas por empresas privadas. E os bancos centrais tentam evitar que essa transição os apanhe com a reserva errada, que talvez fique marginalizada nos mercados quando essas mudanças ocorrerem.
7 – O processo de substituição do dólar e dos títulos pelo ouro é tão evidente, é considerado tão fundamental e urgente, que muitos bancos centrais estão até a repatriar o que tinham nos cofres de outras instituições. E a Bloomberg informou há alguns dias que a China não só está a realizar compras massivas de ouro, desfazendo-se de dólares e títulos, mas também está a usar a Bolsa de Ouro de Xangai para fazer com que os bancos centrais de países amigos que compram lingotes os armazenem dentro de suas fronteiras.
8 – A vulnerabilidade do sistema bancário privado não só não diminuiu como aumentou (fundamentalmente porque os bancos centrais não quiseram impor aos bancos condições que a limitassem). A possibilidade de uma nova e grave crise financeira é vista como algo muito real, o que também leva a um aumento da acumulação de ouro. É sabido que este é um valor de maior rendimento em momentos de perturbação econômica e crise.
UMA CONSEQUÊNCIA TREMENDA
A perda de peso do dólar e dos títulos como ativos de reserva tem efeitos diversos sobre o comércio, as taxas de juro, os preços e outras variáveis econômicas que não vou analisar aqui. Quero deter-me numa consequência de que se fala muito menos na análise dos economistas.
Os Estados Unidos são uma potência imperial. Não digo isso com qualquer conotação negativa ou positiva. É um fato. Durante décadas, foi a nação mais poderosa do mundo e, desde o desaparecimento da antiga União Soviética, exerceu esse poder sem rivais e em seu próprio benefício. Sem esquecer que dizer que algo é benéfico para os Estados Unidos equivale a dizer que é benéfico para as grandes corporações: «O que é bom para o nosso país é bom para a General Motors e vice-versa», disse Charles Erwin Wilson, presidente dessa multinacional e depois secretário de Defesa dos Estados Unidos com o presidente Dwight D. Eisenhower.
Bem, esse poder imperial americano baseou-se em três pilares fundamentais. O primeiro, a força sem igual em todo o mundo da sua economia, indústria, serviços, comércio, finanças e tecnologia. O segundo, a existência do dólar como moeda de reserva e referência de toda a economia mundial. O terceiro, a sua hegemonia militar. Poder-se-ia acrescentar o seu poder cultural e mediático, não menos importante, mas do qual não me ocuparei aqui.
O que tem acontecido nos últimos anos está bem estudado. A economia dos Estados Unidos desindustrializou-se e depende de compras multimilionárias no exterior, o que aumentou incessantemente a sua dívida interna e externa. E a economia da China está a caminho de ultrapassá-la, se é que já não o fez, em avanços tecnológicos e desenvolvimento industrial. O primeiro pilar da sua hegemonia imperial continua certamente de pé, mas está a enfraquecer a passos largos.
O segundo pilar, a supremacia do dólar, também não desapareceu completamente, mas, como acabamos de ver, também está a desmoronar-se rapidamente. Ou, pelo menos, não será capaz de se manter com a força necessária para que um país domine o mundo com a sua moeda, como os Estados Unidos têm feito até agora.
Isso significa que aos Estados Unidos resta apenas um pilar para impor a sua hegemonia imperial: o poder militar.
Mas esse pilar só pode ser efetivamente uma base do seu poder, em primeiro lugar, se não for apenas aparente. É preciso torná-lo efetivo, mostrá-lo como tal e manifestá-lo de forma clara e expressa. Em segundo lugar, precisa financiá-lo suficientemente. As armas são muito caras (sobretudo porque são vendidas por monopólios que podem corromper e impor as suas condições aos governos).
Para financiar a astronômica quantidade de despesas militares de que necessita (gastou 997 bilhões de dólares em 2024), os Estados Unidos têm recorrido até agora à procura de dólares por parte de outros países. Só isso lhe permitiu financiar a imensa dívida gerada pela sua estrutura militar e também uma economia, como acabei de referir, cada vez mais fraca, por mais superior que continue a ser em relação aos outros países.
Dito de outra forma mais fácil de compreender: para poder financiar o seu aparelho militar, os Estados Unidos precisam que as outras economias precisem da sua moeda.
Quando começa a acontecer o que analisamos, a menor procura dos seus dólares e títulos do Tesouro, os Estados Unidos enfrentam um problema existencial: obtêm menos financiamento justamente quando mais precisam dele para manter o único pilar que lhes permite continuar a dominar o mundo.
Precisa que lhe peçam dólares e isso não vai acontecer pelos meios atuais. Além disso, precisa urgentemente de recursos, porque a cada dia que passa perde vantagem sobre a China. Embora continue a ter supremacia militar, falta muito pouco tempo para que a potência oriental emergente lhe fale de igual para igual, também em capacidade armamentística. Tudo isto que acabei de expor é o que, na minha opinião, explica a pressa dos Estados Unidos (não só de Trump, mas de toda a sua classe dirigente empresarial, tecnológica e financeira) em obter recursos de outros países, mesmo que seja à base de ameaças, chantagens e rompendo com os seus antigos aliados e até humilhando-os.
Trump acaba de arrancar do Japão 550 bilhões de dólares e poderá conseguir concretizá-los porque esse país dispõe de um fundo de pensões de 1,6 trilhão de dólares que o governo pode gerir. À União Europeia, ele exigiu 600 bilhões, além de outras quantias também milionárias, mas, neste caso, não é possível garantir a contribuição, uma vez que ela deveria ser feita por empresas que nem sempre podem ser obrigadas a investir onde lhes é dito.
E é aqui, então, que surge a consequência de tudo o que foi dito acima, que é tremenda e que me atrevo a apresentar como hipótese. Os Estados Unidos precisam que a Europa precise de dólares e isso só pode ser conseguido hoje de uma forma: fazendo com que a Europa se envolva na guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Só isso permitirá que chegue aos Estados Unidos o fluxo de dezenas de milhares de milhões de dólares de que necessita para manter a sua hegemonia militar. Além disso, por outro lado, ajudaria a enfraquecer a Rússia e talvez a envolver a China mais diretamente no conflito, quem sabe se para antecipar o que convém aos Estados Unidos que aconteça o mais rápido possível: o choque com o gigante asiático antes que se torne completamente impossível superá-lo em qualquer área.
Se eu estiver certo, a Europa estará em guerra, de uma forma ou de outra, com maior ou menor intensidade, com a participação de mais ou menos países, muito em breve. Talvez ao longo dos próximos seis meses.
Isso poderia ser evitado se os líderes europeus acordassem e parassem de cair irresponsavelmente nas provocações que, há muito tempo e com o objetivo que acabei de apontar, lhes vêm sendo preparadas pelos Estados Unidos, que supostamente são seus principais aliados.
Eu sei, não me digam. A mudança de estratégia de von der Leyen, Kallas, Mertz e companhia é muito improvável. Dependemos de um milagre.
[*] Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Sevilha.
Publicado originalmente no blog do autor