O Papai Noel Existe! Mas só pros “escolhidos”


DAVI MOLINARI

O Fale Mais Sobre Isso estava estranho naquela noite. Silencioso demais para um boteco. Parecia sala de espera de consultório em véspera de férias coletivas.

O Doutor me observava com aquele olhar clínico que mistura ceticismo com curiosidade, como quem tenta encontrar vida inteligente num planeta abandonado. Um arqueólogo da alma, pincelando meu rosto à espera de um fóssil emocional.

Eu estava meio desligado da tomada. Final de ano tem disso. A gente faz um balanço da vida como se o calendário tivesse poderes mágicos, como se a Terra desse uma volta completa ao redor do Sol e — plim! — resetasse boletos, frustrações e decisões mal tomadas.

Na TV, Simone perguntava, incansável: “Então é Natal…”

E eu pensava: “De novo?”

O bar era preenchido pelo zumbido da geladeira, pelos ventiladores cansados e por um certo cansaço coletivo de existir.

Juvenal surgiu do nada usando uma touca de Papai Noel torta, que insistia em cair sobre os olhos. Equilibrava dois chopes cremosos e uma porção generosa de manjubinhas, como quem carregasse o espírito natalino empanado.

O Doutor beliscou um peixe, não anotou nada. Nem uma linha. Como se minha melancolia de dezembro fosse apenas um item fora de época.

— Tá longe, hein, parceiro? — disse Juvenal, puxando a cadeira. — Cara de quem não entrou na lista do Papai Noel. Aprontou muito esse ano?

— Se Papai Noel existisse, Juvenal, não resolvia isso aqui — respondi, apontando pra cabeça. — Fantasia nenhuma cura ressaca existencial.

O Doutor levantou uma sobrancelha. Juvenal não perdoou:

— Como não existe? Existe sim. Mas só aparece em cobertura duplex. Só desce por chaminés de milhão. Só para gente escolhida pelos lobbies. Olha o Sóstenes… quase meio milhão em dinheiro vivo. Ele e Jordy com quase R$ 29 milhões em contas de laranjas. E aquela quadrilha do Banco Master? Ali o saco de presente é sem fundo.

Dei uma gargalhada, daquelas que desengasgam a alma.

— Meritocracia natalina, né?

— Meritocracia é o nome do esquema! — Juvenal rebateu, limpando a mesa com fervor. — Aquilo ali é gente que nunca saiu da fase do “eu mereço”. Bebês gigantes. Acham que o Estado é mãe e o orçamento público é mamilo materno livre. Sugam tudo, não dividem nada e ainda fazem birra quando alguém fala em limite.

O Doutor ajeitou a postura. O olhar mudou. Era oficial: Freud baixou na sessão.

— E tem mais — continuei, já embalado. — Essa turma da anistia, que tentou o golpe, tropeçou na própria bagunça institucional e agora tenta boicotar o chinelo Havaianas, que apontou a direita como um péssimo exemplo. Isso é psicologia pura. Eles realmente acreditam que lei é coisa pros outros. Que o mundo lhes deve poder, mesmo depois de fazerem tudo errado.

Juvenal serviu outra rodada, sem pressa.

— Isso aí já passou de falta de noção — decretou. — É delírio mesmo. Gente que acredita tanto na própria grandeza que perde contato com a realidade. Confiança infinita, empatia zero. A fome dos outros vira ruído. Mania em estado bruto. Criticam quem governa o Estado em nome dos necessitados e cancelam até mesmo quem distribui comida aos pobres.

O Doutor fechou o bloquinho com um estalo seco, como se fosse um carimbo de sentença. Olhou pra TV, onde Simone ainda perguntava o que a gente tinha feito, e falou, finalmente:

— Papai Noel é isso: um mito que recompensa quem já se acha especial e manda a conta pra quem ainda acredita na realidade.

Juvenal colocou a última manjubinha no prato do Doutor, levantou o copo como quem ergue um cálice sagrado e concluiu:

— Pois é. Aqui no Brasil, o trenó ainda é blindado, a rena ainda é de ouro… mas no Fale Mais Sobre Isso ainda dá pra dividir o peixe, rir do absurdo, lembrar que ninguém precisa ser especial pra merecer um pouco de paz e lutar pelo fim da Jornada 6 X 1 – porque eu também quero meu presente de Natal. 

— Vou deixar um par de Havaianas para o Papai Noel, quem sabe dá certo? Brinquei.

Brindamos.

Sem promessas exageradas. Só com aquela esperança discreta — teimosa, meio irônica — de quem sabe que, apesar de tudo, ainda dá pra atravessar o ano melhor do que entrou. Nem que seja de chinelo, mas sempre com os dois pés no chão.

Boas Festas a todos, desejou Juvenal.

Publicado originalmente em Divã no Boteco – LXII. Enviado pelo autor.

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