O Plano Infalível de Bolsonaro


DAVI MOLINARI

O Fale Mais Sobre Isso parecia ter tomado um choque de alegria coletiva. Juro que senti a madeira velha do balcão vibrar como se fosse uma caixa de ressonância da história. Os estudantes, principalmente, estavam em estado de catarse olímpica: Bolsonaro preso, finalmente, e por um motivo tão prosaico que faria até o Napoleão reconsiderar sua vida inteira.

Tive dificuldade para me esgueirar pelas mesas. A roda de pagode puxava o hino da noite, um samba que ecoava pelas janelas abertas: “Todo mundo vai sair, só não vai Jair…”

O Doutor me olhava chegar com aquela expressão de quem pensava: “Hoje ele não precisa de sessão, precisa de um Rivotril social”. Mas isso ele nunca fala. Apenas ergueu as sobrancelhas, ajeitou os óculos e abriu espaço para eu sentar.

Mal sentei e Juvenal apareceu como um servidor público de outra dimensão:

— Dois chopes cremosos e manjubinha crocante… mágico, como sempre.

Eu perguntei:

— Tá corrido hoje, Juvenal?

Ele riu:

— Se eu te contar que hoje tá quase como uma micareta constitucional, você acredita?

O Doutor anotou algo no bloquinho como quem escreve “euforia: fenômeno social, risco de recaída”.

Eu não conseguia disfarçar meu contentamento. Meu rosto devia estar brilhando como quem tinha acabado de vencer uma ação no STF contra todas as probabilidades. O Doutor, claro, já tinha captado meu estado emocional desde quando eu ainda tropeçava nas cadeiras do lado de fora. Ele apenas cruzou as pernas, inclinou a cabeça e respirou fundo. Análise iniciada.

Juvenal voltou com uma bandeja de mais chopes e disse:

— Só deu trabalho pra segurar o pessoal do Laranja, viu? Tive que botar a tropa deles lá no fundo. Turma meio… ressabiada.

Eu dei risada. Porque agora vinha a melhor parte da história.

— Doutor, Juvenal — comecei —, o motivo. É PRECISO falar sobre o motivo.

O Doutor fechou o bloquinho como quem pensa “lá vem ele”.

— Gente… Bolsonaro tentou tirar a tornozeleira com um ferro de solda. Um ferro de solda, cara! E Flávio, o Cebolin… digo, senador, tentou fazer uma cortina de fumaça com oração na casa do pai, como se Deus fosse cúmplice desse roteiro de sitcom. É… o plano infalível do Cebolinha versão clã Bolsonaro.

Juvenal gargalhou:

— É tão infantil que parece ideia de gibi. E disse numa voz engraçada: “Nessa edição, Cebolinha tenta destruir a tornozeleira do Amijadinho! Mas não contava com a astúcia da Justiça Federal!

— E a desculpa, meu Deus… — continuei. — “Curiosidade”. O sujeito pega um ferro de solda para atingir o módulo eletrônico sem romper a pulseira e a desculpa é CURIOSIDADE. Psicologia chama isso de racionalização. Psicanálise chama de narcisismo ferido. Psiquiatria chama de sexta-feira.

Juvenal derrubou a bandeja de tanto rir.

Eu me inclinei para o Doutor, que mantinha a mesma calma de um monge tibetano em estado de meditação.

— Sabe o que isso mostra, Doutor? Autossabotagem. O mesmo final de Napoleão na Rússia, Nixon no Watergate e Hitler depois de abrir duas frentes de guerra. Todos vítimas de suas próprias decisões erradas. Digamos, históricas.

Juvenal completou:

— Sim, autossabotagem histórica, meu amigo. Uns caem por ambição, outros por paranoia, e Bolsonaro por ferro de soldar.

Nesse momento, uma jovem bonita se aproximou:

— Moço, posso ligar a televisão? A gente quer ver como tá a prisão.

Juvenal liberou o controle. A caixa de som abafada anunciou o repórter:

“— O ex-presidente Jair Bolsonaro encontra-se em cela especial da Polícia Federal, com televisão e banheiro privado.”

A menina riu:

— Até na prisão ele tem mais conforto que estudante em república.

Eu virei para o Doutor, perplexo:

— Como alguém que já foi presidente da República faz um troço tão infantil… e ainda dá uma desculpa mais rasa ainda?

Juvenal já tava indo atender outra mesa, mas ficou parado esperando. Ele sabia. Todos sabiam. É sempre assim. A noite só termina quando o Doutor decide abençoar o caos.

O Doutor ergueu o olhar, tirou o bloquinho do bolso, abriu devagar, girou a caneta, fez um gesto de quem fecha uma tese… e soltou a frase:

— “Quando o ego não suporta a queda, o sujeito tenta salvar a fantasia — mesmo que seja com fogo.”

Juvenal, ao fundo, completou triunfante, como assistente de Lacan doutorado no Fale Mais Sobre Isso:

— Nesse caso, Doutor… a curiosidade não matou o gato. Matou foi um burro.

Publicado originalmente em Divã no Boteco – LVIII. Enviado pelo autor.

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