ERNESTO HERRERA*
“Mujica não é somente o ‘herói da mais exitosa operação midiático-ética que se tenha registro nessas terras’; mas o ‘presidente com que a direita uruguaia nunca se atreveu a sonhar’. É o que a professora Alma Bolon já havia apontado, lucidamente”, assinala Ernesto Herrera em artigo intitulado Uruguai: o progressismo fecha os olhos, realizando uma radiografia político-econômico-social do país vizinho, do qual publicamos os melhores trechos.
“Tempos depois destas lapidares afirmações, um índice do Instituto Fraser com apoio do Centro de Estudos para o Desenvolvimento, um think tank de corte liberal, certificava que a aceitação do antigo guerrilheiro às ‘regras do mercado’ é absolutamente sincera: durante sua presidência (2010-2015), o país conseguiu o ‘maior grau de liberdade econômica’.
“As consequências desta espantosa metamorfose da ‘esquerda histórica’ são marcantes. Enterram princípios. Borram antagonismos entre pobres e ricos. Domesticam consciências. Não há classes irreconciliáveis. A ‘cultura operária’ cede lugar ao ‘status de classe média’. A luta de classes se torna um jogo de intercâmbios negociados ou de ‘contrapartidas combinadas’. As percepções socioculturais se confundem. Até as mais elementares.
“Durante a presidência de Mujica foi aprofundado o ‘Estado punitivo’. Aumentaram os tempos de ‘privação da liberdade’ para adolescentes. A maioria de mortos e feridos neste ‘combate ao crime’ tem menos de 35 anos. A taxa proporcional de população encarcerada mais alta da América Latina, 62% dos 12 mil presos e presas, têm menos de 29 anos. A quantidade de ‘população feminina reclusa’ aumentou 583% em uma década.
“A pobreza já não tem raízes socioeconômicas, mas é tratada como um problema ‘pessoal e privado’ quando não em consequência de um processo de ‘lumpenização’ e ‘favelização’.
“Os governos da Frente Ampla aceleraram a contrarrevolução agrária. Os proprietários do agronegócio a definem como uma ‘revolução surpreendente’. Editores liberais são mais pujantes em seu juízo. O governo de Mujica ‘será lembrado por não haver concretizado os desastres que os tupamaros propunham há quatro décadas (…) Não há reforma agrária (salvo a que foi desenvolvida com inquestionável êxito por empresários brasileiros no campo uruguaio), a banca privada é toda estrangeira, as relações com o FMI são excelentes, as multinacionais e o capital estrangeiro não só são bem-vindos, mas convocados com desespero pela liderança tupamara (…) e a ‘estrangeirização da terra’ se expandiu como poucas vezes na história do Uruguai durante os governos da Frente Ampla”**.
“Memória: Mujica exerceu o cargo de Ministro de Agricultura, Pecuária e Pesca (2010-2014) durante o primeiro mandato de Vázquez.
“Mais de uma década depois daquela ‘reviravolta política’ que prometia, segundo Tabaré Vázquez, um ‘caminho de transformações’ que faria ‘tremer as raízes das árvores’ o resultado é, quando muito, avaro. Inclusive a partir de uma perspectiva ‘reformista’.
“As pautas do programa econômico, certificado pelas Instituições Financeiras Internacionais em junho de 2015, na cidade de Washington, estão vigentes. As ataduras às condições que impõem a ‘mundialização’ capitalista, também. A fraudulenta dívida externa é paga pontualmente. Ao final, o progressismo resultou um ‘caminho possível’… na mesma direção.
“Portanto, é um exagero falar de dois ‘ciclos’ ou de duas ‘eras’. Neoliberalismo e ‘pós-neoliberalismo’ convergem na mesma lógica. A ‘matriz’ foi projetada pelos governos de coalizão entre colorados e blancos na ‘década perdida de 90’ e assim continua. Os pilares são os mesmos. Lei Florestal; Lei de Investimentos; Lei de Zonas Francas; Sistema de Administradoras de Fundos de Pensão (Afap); Lei de Portos.
“O ‘ciclo progressista’ consistiu, justamente, em mais continuidade. Desregulação financeira; desnacionalização da produção e do comércio de produtos exportáveis: soja, carne, arroz, trigo, lácteos; concentração e estrangeirização da terra; multiplicação do regime de zonas francas; exonerações tributárias às multinacionais de celulose e mineradoras; privatizações e sobcontratações. Os sucessivos governos da Frente Ampla ainda agregaram: Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), primeiro mandato de Vázquez; lei de Participação Público-Privada(PPP) e Lei de Inclusão Financeira, mandato de Mujica; privatização-terceirização de áreas e serviços do Banco da República, 2° mandato de Vázquez.
“A agenda econômica não contemplou, em nenhum momento, uma real distribuição da riqueza. Em todo caso, o progressismo se beneficiou do parêntesis que abriu a ‘bonança’ das commodities (entre 2004 e 2010), para ‘ocultar o conflito distributivo’ e gerar recursos de investimento público e financiamento do processo assistencialista das políticas sociais. Ainda que o montante destinado a essas políticas nunca tenha alcançado 0,4% do PIB nacional.
“A crise de 2001-2003 foi um ponto de inflexão. As demandas baixaram ao chão. O desastroso quadro socioeconômico se rebaixou para a ‘expectativa de inflação’. Era preciso ‘recuperar’ condições de vida suportáveis. Mais de 150 mil trabalhadores haviam perdido o emprego no setor privado; o salário sofreu uma queda de 20%; a pobreza e a indigência somavam 39%.
“Em tal sentido, o progressismo se encarregou da ‘herança maldita’ semeada pela ‘crise do neoliberalismo’; recompôs em parte o ‘tecido social’, reduziu índices de ‘pobreza recente’ e, fundamentalmente, restaurou a ‘normalização’ sistêmica.
“As conclusões que resultam destes 13 anos de progressismo no Uruguai coincidem com as realizadas por Decio Machado e Raul Zibechi em torno dos chamados ‘governos nacionais e populares’ ou ‘pós-neoliberais’ do ‘ciclo progressista’ que a América do Sul viveu. “O que entrou em crise foi um projeto que buscou administrar o capitalismo realmente existente, ou seja, extrativo – mas com bons modelos”***. Por isso, em nenhum desses governos houve algo nem remotamente parecido com um ‘processo revolucionário’. Adequa-se melhor ao contrário.
“São os milhares de ‘quadros políticos’ e sindicalistas que se reciclaram como ‘gestores/administradores’ do aparato de Estado. Para empurrar ‘mais à esquerda’. Seguem com os rabos presos em seus ‘cargos de confiança política’. Faz tempo que abandonaram as teses de disputa. Seus principais instigadores, o Movimento de Participação Popular (MPP) e o PC, as tiraram do dicionário. Defendem sua cota de poder na ‘nova elite governante’. Exercendo o clientelismo, comprando ONGs, traficando influências, usando dinheiro público.”
*Ernesto Herrera é jornalista uruguaio, editor e correspondente internacional do noticiário francês L’Encontre – onde o texto foi publicado em espanhol, traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.
** “Agro. La revolución sorprendente”, Rosanna Dellazoppa, Fin de Siglo, Montevideo, 2014.
***“Cambiar el mundo desde arriba. Los límites del progresismo”. Decio Machado y Raúl Zibechi, Ediciones desde abajo, Bogotá, 2016.