O artigo a seguir foi publicado originalmente no site The Intercept Brasil
JOÃO FILHO (*)
As eleições de 2022 já começaram. Ainda é cedo, mas os ataques mútuos entre Doria e Bolsonaro marcam o início da disputa para atrair o eleitorado identificado com a direita. Enquanto isso, a esquerda segue dividida, desarticulada e paralisada diante da violência do bolsonarismo no poder.
Na última segunda-feira, foi lançado na PUC, em São Paulo, um manifesto que busca reorganizar a oposição. Batizado de “Direitos Já! – Fórum pela Democracia”, o movimento é uma tentativa de formar uma frente ampla em defesa da democracia contra os ataques do governo Bolsonaro. O nome do movimento é uma referência às Diretas Já, criado no início dos anos 1980, quando o campo democrático, ainda sob a ditadura, se uniu para reivindicar eleições presidenciais diretas.
Representantes de 16 partidos e integrantes de diversos segmentos sociais estiveram presentes na PUC. Nomes importantes como Flávio Dino, do PCdoB, o pedetista Ciro Gomes, Márcio França, do PSB, Marta Suplicy, hoje sem partido, deixaram as rusgas de lado em nome da defesa da democracia. Nomes como Kassab (PSD) e os tucanos FHC, Alckmin e Anastasia mandaram mensagens de apoio. É…eu sei, mas uma frente ampla contra a barbárie não pode ser encarada como um clubinho de amigos, mas como um movimento heterogêneo, que reúne amplo espectro da sociedade em torno da defesa de valores democráticos.
Engolir alguns nomes de centro-direita me parece um preço razoável a se pagar pela defesa da civilização. O avanço da extrema direita não é uma exclusividade brasileira. A formação de frentes amplas desse tipo tem sido a saída que os democratas de vários países encontraram para combater governos autoritários. Não se trata mais de esquerda x direita, mas de civilização x barbárie.
A missão do movimento é complicada. Há muitos traumas decorrentes do impeachment, e juntar opositores tradicionais não é fácil. Mas me parece evidente que a ampliação do arco em apoio à defesa dos valores democráticos é o único caminho possível para o enfrentamento à escalada do autoritarismo. Infelizmente nem todos no campo progressista pensam assim.
Petistas também participaram do evento, alguns até ajudaram na organização. Mas nenhum dirigente compareceu, o que indica que o partido não irá entrar de cabeça no movimento. Fernando Haddad, que chegou a participar da gestação do grupo em maio, confirmou presença no evento, mas simplesmente não apareceu. Não mandou um recado para ser lido no evento como fizeram outros ausentes, nem mandou um representante. Assim como Haddad, o psolista Guilherme Boulos também participou das primeiras reuniões, mas decidiu não comparecer. Também não havia nenhuma liderança do PSOL presente.
A assessoria de Haddad informou que ele teve que receber uma pessoa em casa em um compromisso pessoal. Segundo a jornalista do Estadão, Sonia Racy, “fontes petistas admitiram que o partido fez forte pressão para que Haddad não fosse. Motivo: à sigla não interessa dividir o protagonismo na oposição. E ela não abre mão da bandeira ‘Lula Livre’ na linha de frente do movimento”. O partido decidiu não se envolver institucionalmente com o movimento por não poder controlar suas pautas.
Nas redes sociais, parte da militância petista colocou em dúvida a informação do Estadão, dizendo que o PT não participou porque o evento foi organizado pelo PSDB. Não é verdade. O principal idealizador do movimento é o sociólogo Fernando Guimarães, um tucano que lidera uma corrente de esquerda dentro do PSDB. A criação do Direitos Já enfureceu a cúpula do PSDB em São Paulo, que pediu a sua expulsão.
O PT segue tendo Lula Livre como a sua principal bandeira, para não dizer a única. É uma pauta justa, legítima e importante. A Vaza Jato trouxe provas definitivas de que o ex-presidente foi acusado por procuradores comprometidos com causas políticas e condenado sem provas por um juiz parcial e igualmente alinhado a causas políticas. A condenação de Lula é fruto de um processo de deterioração das instituições democráticas, que culminou com a eleição de Bolsonaro e se intensificou brutalmente com seu governo. Na minha opinião, a defesa de um ex-presidente que foi vítima de um julgamento político deveria ser uma bandeira fundamental de todos que estão dispostos a defender a democracia, mas não é essa a realidade.
Há muita gente no campo democrático que discorda de que essa seja uma boa estratégia no combate ao bolsonarismo. Não há como fugir disso. Infelizmente, o cacoete da hegemonia fala mais alto, e o PT se recusa a participar de qualquer movimento que não tenha a liberdade de Lula como bandeira principal. É incrível notar que o partido, que teve seus governos marcados pelo pragmatismo e que se aliou no ano passado a partidos que derrubaram Dilma, se recuse a dar esse passo atrás em nome da luta contra a selvageria bolsonarista.
As lições da última eleição foram ignoradas. As pesquisas indicavam que apenas Lula venceria Bolsonaro em um segundo turno. Com a confirmação de que o ex-presidente não poderia disputar, o partido escolheu Haddad de última hora, apostando que a transferência de votos de Lula para o candidato do PT aconteceria de forma natural. Àquela altura, já estava claro que o antipetismo era mais forte que Haddad. Era a hora de recuar e compor com Ciro Gomes na cabeça de chapa para tentar evitar a tragédia Bolsonaro. O nome do pedetista aparecia nas pesquisas como o único com chances de derrotar Bolsonaro no segundo turno. Mesmo assim, Ciro não seria garantia de vitória, pelo contrário. As chances de perder também eram grandes. Mas ali poderia ser o início da construção de uma oposição sólida ao bolsonarismo.
Mas o PT preferiu perder como protagonista do que tentar ganhar como coadjuvante. A estratégia foi boa para o partido, que perdeu a eleição, mas manteve a hegemonia no campo oposicionista ao formar a maior bancada na Câmara. Mas foi ruim para o país, que, após oito meses, está com uma oposição enfraquecida e desarticulada para enfrentar o desmonte avassalador do estado brasileiro.
O PT é o maior partido do Brasil. Tem uma forte base social, alcance no país inteiro e, mesmo com a devassa sofrida pelo conluio lavajatista, conseguiu eleger a maior bancada da Câmara. Difícil imaginar um movimento de oposição efetiva ao bolsonarismo sem a participação do partido. Infelizmente, até aqui tudo indica que os seus dirigentes não irão se engajar nessa frente ampla por temer a perda da hegemonia.
O partido crê que o protagonismo é um direito natural devido ao seu tamanho, à sua força. Isso faria todo sentido se a democracia estivesse sob condições normais de pressão e temperatura, o que definitivamente não é o caso. O antipetismo hoje é maior força política do país. É tão forte que elegeu um homem que disse “vamos fuzilar a petralhada” durante a campanha. Esse é um dado da realidade que não pode ser mais ignorado. O bolsonarismo não é uma força política convencional. É liderado por um ex-militar rancoroso, autoritário, imbuído da missão de desmontar o estado, agradar a horda de seguidores fanáticos e passar o trator em cima de quem pensa diferente.
O PT calcula que o melhor a se fazer é deixar Bolsonaro sangrando até 2022, perdendo popularidade e, assim, derrotar a direita nas urnas. É um erro. É subestimar mais uma vez a força avassaladora do antipetismo, que não vai sumir do dia para noite. Corre-se o risco de não se ter nem democracia nem Lula livre. Como disse o linguista americano Noam Chomsky, presente no evento do movimento Direitos Já, “o componente central da esquerda é o PT e o partido ficou desacreditado, parte por motivos certos, parte por má propaganda e campanhas ultrajantes nas redes sociais das quais não se recuperou”.
É urgente juntar as forças democráticas, criar um diálogo plural, formular propostas comuns e criar condições para uma oposição efetiva. Não há mais espaço para disputa de hegemonias e imposições. Ou os democratas se unem agora contra o governo fascistoide, criando uma narrativa única em torno da defesa dos valores democráticos, ou na próxima eleição — se houver eleição! — elegeremos um presidente para administrar os escombros.
(*) Cientista social e jornalista. Autor do Jornalismo Wando.