CARLOS LOPES
Não havia, antigamente, estudante que não ouvira falar no visconde de Cairu. Menos por sua figura real, histórica, e mais pelas questões das provas de “admissão”, obrigatórias para entrar no ginásio (o primeiro ciclo do ensino secundário, estabelecido pela reforma do ministro Capanema em 1942, no governo Getúlio Vargas).
Cairu – de nome José da Silva Lisboa – era, segundo a historiografia que líamos então, o homem que aconselhara D. João (depois D. João VI) a “abrir os portos para as nações amigas”, quando da chegada do príncipe português a Salvador, em 1808.
Ainda que essa “abertura” favorecesse a Inglaterra e seus comerciantes, foi um rompimento com o estatuto colonial – até então, o Brasil somente mantinha relações econômicas diretas com um só país: a metrópole, Portugal. As próprias mercadorias inglesas – exceto, evidentemente, o contrabando – somente chegavam ao Brasil através de Portugal.
Não é preciso detalhar o que isso significava, como dupla exploração sobre o país.
Por isso, lá pela virada do século, escrevemos, em um texto sobre a História do Brasil, até hoje não publicado inteiramente:
“Desde 1808, com a chegada de D. João – depois D. João VI -, a situação do Brasil mudara. Mesmo antes de aportar no Rio de Janeiro, sem consultar os ingleses que faziam a sua escolta, D. João, à conselho do visconde de Cairu, brasileiro formado na economia política clássica de Adam Smith, havia decretado a ‘abertura dos portos às nações amigas’.
“Ao contrário do que habitualmente se propala, a medida não agradou aos ingleses: seu representante no Rio, um certo Hill, dirigiu ao chefe em Londres, George Canning, ministro dos Negócios Estrangeiros da Inglaterra, um relatório onde se queixava de que a medida poderia favorecer outras nações, concorrentes da Inglaterra, e que melhor teria sido a decretação direta do privilégio – ou seja, do monopólio – da Inglaterra sobre o mercado brasileiro. Logo, chegaria ao Brasil outro agente inglês, o visconde de Strangford, designado para ser ‘conselheiro’ econômico de D. João, e cuja função inicial consistia em tirá-lo da influência de Cairu.
“A abertura dos portos removeu um entrave ao progresso do Brasil, com a quebra do monopólio dos atravessadores da metrópole portuguesa, cujos lucros provinham da intermediação – até então obrigatória por lei – de mercadorias inglesas para a colônia, revendendo-as a preços extorsivos, espoliando-a comercialmente, ao mesmo tempo que também intermediavam o fornecimento de produtos brasileiros para outros países, sobretudo, como é óbvio, à Inglaterra, a preços vis.
“Em seguida, Cairu convenceu D. João a revogar o alvará de 1785, que proibia a existência de manufaturas no Brasil – assinado por sua mãe, Dª Maria, que, já imersa na loucura, também veio ao Brasil, e aqui faleceu.
“Chegava ao fim, dessa forma, outro obstáculo ao desenvolvimento do país – a luta de Tiradentes, que se chocara frontalmente contra o bloqueio à industrialização, começava a frutificar. Ainda logo após a sua chegada, D. João fundou o primeiro Banco do Brasil, dotando a colônia de um embrião de sistema financeiro.”
DECRETO E TRATADO
Não há nada, no trecho que citamos, que não seja verdade.
Mas ele é incompleto, ou pouco claro, em aspectos importantes – a começar pela intenção.
Esta consiste em separar o Decreto de Abertura dos Portos, de 1808, do Tratado de Comércio e Navegação com a Inglaterra, assinado por D. João em 1810 – e que infernizou a vida do país até 1844, depois, portanto, da Independência.
Essa separação é justa – sobretudo porque a confusão entre um e outro é muito frequente.
Qual a diferença entre o Decreto de 1808 e o Tratado de 1810?
O Decreto de Abertura dos Portos, assinado a 29 de janeiro de 1808, quando o então príncipe-regente D. João chegou à Bahia, consistia em dois pontos:
1) “… que sejam admissíveis nas Alfândegas do Brasil todos e quaisquer Gêneros, Fazendas, e Mercadorias transportadas, ou em Navios Estrangeiros das Potências que se conservam em Paz e Harmonia com a Minha Real Coroa, ou em Navios dos Meus Vassalos, pagando por entrada vinte e quatro por cento, a saber: vinte de Direitos grossos e quatro de Donativo já estabelecido, regulando-se a cobrança destes Direitos pelas Pautas, ou Aforamentos por que até o presente se regulam cada uma das ditas Alfândegas, ficando os Vinhos, Aguardentes, e Azeites doces, que se denominam molhados, pagando o dobro dos Direitos que até agora nelas satisfaziam” (grifo nosso).
2) “Que não só os Meus Vassalos, mas também os sobreditos Estrangeiros possam exportar para os Portos que bem lhes parecer a benefício do Comércio, e Agricultura, que tanto desejo promover, todos, e quaisquer Gêneros, e Produções Coloniais, à exceção do Pau Brasil, ou outros notoriamente estancados, pagando por saída os mesmos Direitos já estabelecidos nas respectivas Capitanias, ficando entretanto como em suspenso, e sem vigor todas as Leis, Cartas Régias, ou outras Ordens que até aqui proibiam neste Estado do Brasil o recíproco Comércio, e Navegação entre os Meus Vassalos, e Estrangeiros”.
Realmente, essas decisões não agradaram aos ingleses.
Daí a pressão por um tratado exclusivo com a Inglaterra – e mais favorecido – por parte do governo de Londres.
Dois anos depois, esse objetivo foi atingido pelos ingleses, com a preciosa ajuda – como frisou Hipólito José da Costa em seu Correio Braziliense – do negociador português, Rodrigo de Souza Coutinho, o futuro conde de Linhares.
A diferença em relação ao Decreto é nítida na descrição de Calógeras, historiador que não pode ser acusado de excessivo nacionalismo, sobre o Tratado de 1810:
“… as alfândegas cobrariam, não mais 24%, como mandava a carta régia de Abertura dos portos, de 29 de Janeiro de 1808, mas 15%, quando as próprias importações de Portugal eram oneradas com 16%. A base das cobranças era ad-valorem, provado o preço pelas faturas. Óbvia, a facilidade do contrabando por meio de declarações inexatas. Para julgar os pleitos entre ingleses e nacionais, continuava instituído um juiz conservador dos ingleses. Duraria eternamente o tratado comercial, só podendo ser revisto e modificado por aprazimento mútuo, e decorridos quinze anos de sua vigência. As demais cláusulas sobre reciprocidade e sobre regimes de exceção só tinham valor e alcance para os mercadores de Londres, e deixavam praticamente aos portugueses sem proteção” (cf. J. Pandiá Calógeras, “A Política Exterior do Império”, Vol. 1, RIHGB, 1927, p. 344, grifos nossos).
Um historiador português é ainda mais claro sobre o significado desse tratado:
“Era na essência a manutenção dos [tratados] de 1654 e 1703 com aplicação ao Brasil, adicionados de novas vantagens: direito a um porto franco, na ilha de Santa Catarina, de singular conveniência para o contrabando de Buenos Aires, e redução a 15 por cento dos direitos das mercadorias inglesas. As de procedência nacional pagavam mais um por cento; 24 por cento as de outras nações, em todos os domínios portugueses. Em compensação concedia-se a Portugal nas alfândegas inglesas igualdade à nação mais favorecida.
“Pela diferença de pauta ficava na prática derrogada a abertura dos portos a todas as nações, e o Brasil pertencia de fato aos ingleses, como sempre tinham ambicionado” (cf. J. Lucio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico, Liv. Clássica Editora, Lisboa, 1929, p. 472, grifos nossos).
Em Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil fizemos um resumo da historiografia sobre esse tema e da polêmica da época, especialmente os artigos de Hipólito José da Costa no seu Correio Braziliense.
Porém, aqui, o nosso tema é a posição política – o adjetivo é para evitar duplos sentidos desagradáveis – do visconde de Cairu.
LIMITES
Cairu era um áulico, um bajulador da corte – qualquer uma, contanto que não fosse a de Napoleão, em quem enxergava um continuador da Revolução Francesa -, um cortesão.
Há uma unanimidade sobre isso – e nem é possível que fosse diferente. Imagine o leitor alguém que consegue escrever um texto como o seguinte, sobre D. João VI:
“Sua Majestade, desde que entrou na Administração da Monarquia , Manifestou seu Entendimento Compreensivo, e Magnânimo Coração; e que Se comprazia do Timbre Real do sobredito D. Henrique , Glorioso Filho do Senhor Rei D. João I, que trazia nas Suas Armas a Letra — Talent de Bien Faire —. Todos os Atos Reais mostram, haver-se proposto por Modelo a piedade e doçura do Governo de Sua Augusta Mãe. Os seus Benefícios consecutivo, do caráter definido, lhe dão direito à que do Distrito diamantino venham as Joias com que se levante e adorne a oferecida Pirâmide, mais digna e perpétua que o da Coluna de Trajano, em cujo beatíssimo império ele soube bem fazer, harmoniando, como diz o imortal Tácito, o Principado e a Liberdade, merecendo a sua sublime inscrição — o Bem de Todos” (cf. José da Silva Lisboa, Memoria dos Beneficios Politicos do Governo de El-Rey Nosso Senhor D. João VI, Impressão Regia, Rio de Janeiro, 1818, p. 7 – a ortografia foi atualizada; as maiúsculas e itálicos estão no original).
Deveria ser revoltante, para nós, depois do que aconteceu a Tiradentes, a referência à “piedade e doçura do Governo de Sua Augusta Mãe” – não menos que Maria I, a Louca.
No entanto, é apenas ridículo.
José da Silva Lisboa era, realmente, um conhecedor da economia política inglesa, em especial, de Adam Smith, mas isso era mais um problema, na medida em que significou, para ele, ver a economia política (e, mais, a política econômica do Brasil) pela ótica dos ingleses.
Quando Adam Smith publicou, em 1776, “A Riqueza das Nações”, a Inglaterra já realizara, de Cromwell a Guilherme de Orange, sua revolução burguesa.
Mas isso não era verdade em Portugal – e, muito menos, em sua maior colônia, o Brasil – sobretudo depois da destituição e banimento do marquês de Pombal, em 1777 (uma decisão posterior, de Maria I, em agosto de 1781, condenou Pombal, “ordenando-lhe se conserve fora da corte na distância de vinte léguas em quanto por mim não for determinado o contrário”; Pombal faleceu quase exatamente um ano depois dessa condenação, em agosto de 1782).
A tentativa de Cairu, mais em fantasia que na prática, foi a de desenvolver relações mercantis sem se chocar com o feudalismo – ou seja, aceitando os limites impostos pelo feudalismo.
Era, mais ou menos, como se fosse possível uma “revolução gloriosa” (o desembarque de Guilherme de Orange na Inglaterra, em 1688, que completou a revolução burguesa naquele país, com a queda de Jaime II), sem que, quase 40 anos antes, houvesse um Oliver Cromwell para limpar o terreno, inclusive com a decapitação do rei Carlos I (1649).
Essa é a base do aulicismo, da bajulação de Cairu, primeiro a João VI, depois a Pedro I.
Ele torna-se, por isso mesmo, um inimigo de qualquer revolução – a começar pela francesa – esquecendo ou omitindo que a Inglaterra de sua época era, também, o produto de uma revolução (mais exatamente, de duas).
Assim, o servilismo de Cairu não é um elemento externo à sua política – como, dizem alguns, era o servilismo de Bacon, em relação à sua filosofia.
O servilismo é a própria política de Cairu.
Vejamos este trecho, do mesmo livro, sobre a Revolução Francesa:
“A Rainha Nossa Senhora [Dª Maria I] tinha visto em cordial mágoa a desenfreada Libertinagem, e sanguinária carreira da Nação Francesa, até então distinta por devoto Cristianismo, amor de seus Reis, e sentimentos cavaleiros. Contudo o seu espírito de paz permaneceu imóvel no ordinário sistema defensivo do Reino, não obstante a Liga das Potências do Continente, que em 1791 se uniram em Pilnitz para dissiparem a Cáfila Revolucionária, que se propunha o roubo e assassinato, como os Salteadores da Arábia. Mas impossibilitada do governo por súbita teofobia (NOTA DE CAIRU: Assim foi qualificada pelos Médicos a fatal doença) o seu religioso Filho [D. João] não pôde ser indiferente Espectador do Parricídio que os novos Canibais, e bárbaros Druidas em 22 de Janeiro de 1793 perpetraram contra o seu benéfico Soberano Luiz XVI, Mártir da Religião, e Honra da Coroa. Horrorizou-se da traição e apostasia, com que até o Clero da Capital, tendo por cabeça o seu Arcebispo, com frenético delírio, entregue à réprobo senso, levantou Altar ao ídolo de abominação nos Lugares Santos; e, sem medo de Deus, nem respeito aos homens publicamente declarou a sua Renúncia à Religião Cristã, aliás fonte da Civilização da Europa, causa de todo o bem da vida e a base da esperança da imortalidade, pela celeste doutrina da paz, geral benevolência, e imitação da Divina Bondade. Protestaram os Apóstatas, que não reconheciam outro Evangelho que a Constituição Republicana; outro culto que o da Liberdade Regicida; outro Santuário, que o Arquivo de suas necromânticas Leis. Assim impuseram a si próprios anátema, para serem os Caims vitandos da Grei social.
“Nestas circunstâncias, Espanha e Inglaterra declararam Guerra, não à França (que se fez lacuna no Mapa da Europa) mas aos infiéis perturbadores da Sociedade – que até provocaram a todos os Governos regulares com a serpentina disseminação de seus dogmas nefandos”.
MÁXIMO BENEFÍCIO
Porém, não é apenas ao feudalismo português que Cairu quer adaptar as relações mercantis no Brasil.
Também quer adaptá-las ao monopólio comercial inglês – ou seja, nossa economia teria limites “naturais” nos interesses ingleses, como se existisse sobre um leitor de Procusto, onde é necessário cortar as pernas, ou a cabeça, para que o corpo nele caiba.
Assim, ele não é apenas o ideólogo da abertura dos portos.
É, também, o principal defensor do Tratado de 1810, com todo o seu servilismo.
Esse aspecto é a principal omissão, ainda que involuntária, de nosso texto, citado na abertura deste artigo.
A defesa feita por Cairu desse Tratado tem importância por duas razões: a primeira é que mostra como, desde o primeiro momento, no Brasil, houve uma oposição geral a ele. Diz Cairu:
“O Tratado de 19 de Fevereiro de 1810 com a Coroa Britânica, para se regular o Comércio, é, no meu humilde entender, Máximo Benefício do Senhor D. João VI; por evidentemente contribuir à segurança , riqueza , e crédito da Monarquia. Pareceria até indecoroso e impertinente demonstrá-lo, se, por fatalidade, ainda agora não se desfigurasse como Malefício Nacional, por incendiários escritos, com que se tem porfiado em desparzir cizânia, comprometendo-se a mútua confidência de que aliás tanto se há mister para constante harmonia dos Governos e povos naturais aliados, e amigos certos , como se tem visto nas adversidades do Estado” (cf. José da Silva Lisboa, op. cit., p. 138).
Depois da análise minuciosa de Hipólito José da Costa, foram muitos os brasileiros que denunciaram as cláusulas do Tratado de 1810 – inclusive entre políticos no governo, depois da Independência.
A segunda razão para essa importância é que demonstra como certos supostos argumentos entreguistas são velhos e inamovíveis, não importam as mudanças no país e na sua economia.
Assim, em 1818, escreveu Cairu:
- “O ponto capital pois era dar no Brasil todo o racionável favor aos Ingleses, que, pela sua energia mercantil, e vasta correspondência estabelecida nos Empórios da Europa , eram os únicos Negociantes que tinham cabedais e meios de introduzir os nossos Gêneros em todos os Empórios. Só assim se podia suster com vigor e progresso a agricultura de todas as partes da Monarquia Lusitana. Seria impolítico desgostar, e perder um tão grande freguês, generoso amigo, e forte companheiro d’armas. Esse era o evidente e principal Interesse do Estado, que ficou seguro com o Tratado, tanto pela franqueza da importação, como pela diminuição dos Direitos.”
- “… no Sistema de esclarecida Finança, dous e dous em vez de somar quatro, frequentemente, dão menos de um. Os que ainda ora se lastimam de se não ter sobrecarregado de Direitos as mercadorias e Embarcações Inglesas, não atendem aos verdadeiros interesses do Estado. Se por fatalidade eles influíssem na marcha do governo, triunfaria o contrabando, e se impossibilitaria o recrescente valor e vasto mercado dos Gêneros Nacionais, impedindo-se o fácil e geral suprimento do povo; que são os infalíveis resultados da prudência, e moderação da tarifa nas mercadorias necessárias, e cômodas à vida. É incontestável que nestas eminentemente se distinguem as da Indústria Inglesa.”
- “… a minoração nos Direitos na Alfândega, não é tanto favor ao importador como benefício ao Consumidor , isto é, do corpo principal do povo. O Estado nada perde , mas, ganha, recobrando na saída o que gratificou na entrada e pela animação que dá ao geral trabalho produtivo do país, e à atividade e circulação pública: o contrário é querer fins por meios diametralmente opostos.”
- “Vai além de todo o cálculo a vantagem de se pôr qualquer Nação em mais íntimo contato com outra Nação superiormente avantajada em riqueza, indústria, e atividade mercantil. A sua imitação é de maior consequência para o progresso do Estado. Esta tem feito as experiências que poupam àquela tempo e trabalho na carreira da opulência: basta que navegue na sua esteira, para ir a bom rumo, e salvamento.”
- “Muito se declamou sobre a falta de igualdade e reciprocidade, como se esta jamais fosse, ou pudesse ser, de ápice matemático. Adam Smith, o insigne Economista da Europa, reconhece que, para avançarem os negócios da Sociedade, é usual, e suficiente, o que ele chama igualdade áspera, que, mais ou menos, se aproxima ao equilíbrio de interesses do comprador e vendedor.”
- “… nas Sociedades mercantis não é exigível igual, mas só proporcional, partilha no dividendo dos lucros, pela disparidade dos fundos, e diferença da indústria dos Cointeressados. Sendo maiores os Capitais Ingleses, não é maravilha que a vantagem prepondere da sua parte.”
- “É fato notório, que a maior exportação dos gêneros do Brasil, desde o estabelecimento da nova Corte, antes e depois do Tratado, se deve à atividade do comércio e Navegação dos Ingleses.”
- “Os Negociantes Portugueses queixam-se de lhes ser intolerável a concorrência Inglesa, e tentam persuadir o paradoxo, que é do Interesse Nacional que o povo compre o pior e mais caro , para eles terem maior ganho.”
- “Não se pode seriamente falar na ruína das nossas Fábricas; visto que só vacilam as que não têm naturais proporções para prosperarem , à despeito de tantas Leis favoráveis que as animaram desde a Pragmática do Senhor D. João V, de 1749.”
- “Quanto ao Brasil, seria lúdrico e irrisório tentar repelir o contrabando estrangeiro em imensas Costas, coincidindo aliás o interesse do importador e consumidor. Os favores concedidos pelas Novas Leis e Ordens, para isenção de Direitos das matérias primeiras das Fábricas, e na exportação das obras; e, além disto, a determinada preferência das manufaturas Nacionais para a Tropa e Casa Real, são fortes escoras para suster os Estabelecimentos industriosos que convierem ao Estado. As mais, por impróprias, prematuras, e de mímica imitação estrangeira, tendo o prejudicial influxo de desviar fundos de seus mais oportunos canais, não se podem sustentar por humana potência.”
- “É sem fundamento a imputação de monopólio à Nação mais favorecida, que não faz o comércio por feitorias incorporadas, ou companhias exclusivas, seguindo os indivíduos o curso natural das cousas, e fazendo as suas operações de tão distantes e diferentes portos de saída e entrada , onde é impossível conluio, e identidade de interesses, fundos e caracteres. Os Ingleses, são, por via de regra, os Negociantes que mais se contentam com regular, mediano, e (o que dizem,) racionável lucro.”
ESCRAVIDÃO
O tempo mostrou que Hipólito da Costa e todos os que criticaram o Tratado de 1810 estavam certos. Na década de 40 do século XIX, após a Regência, a revogação desse tratado tornou-se, mesmo, a principal pauta econômica do governo brasileiro. Sem essa revogação era impossível o fortalecimento do Estado Nacional – cuja principal fonte de recursos era o imposto de importação – e o desenvolvimento de uma economia própria, que não fosse um mero mercado para os produtos industriais ingleses versus a exportação de produtos agrícolas.
É verdade que a escravidão era o principal obstáculo interno ao desenvolvimento. Aliás, era também o principal freio para o aumento das vendas de mercadorias inglesas – esse era um dos motivos porque, desde 1807, a Inglaterra tornou-se adversária da escravidão nos países da América, ainda que sua indústria têxtil fosse abastecida pelo algodão produzido no sul escravagista dos EUA.
Cairu é adversário da escravidão e do tráfico de escravos – e, para ser justo para com ele, não apenas porque os ingleses têm a mesma posição.
Ele percebe o atraso e a tendência à paralisia econômica, que a escravidão impõe ao Brasil, muito antes que o escravagismo tenha entrado em sua crise final:
“… tentam subtrair-se à Lei do trabalho, querendo só viver à custa do suor alheio, sugerindo o vulgar prolóquio dos ambiciosos e inertes, que o calor da Zona tórrida é hostil à constituição dos Europeus, e que, sem Africanos, não pode florescer o Brasil. Contradiz à Ordem Cosmológica quem seriamente afirma, que o Criador, dando tão fecundo solo, continuamente refrescando a atmosfera com virações periódicas, e orvalhos celestes, onde por isso a terra-mãe tão benignamente ajuda o braço do lavrador, contudo os nele nascidos, sendo condignamente criados, não possam colher seus frutos, e enriquecer-se com a franqueada indústria rural e fabril. O mal do tráfico Africano tem sido a maior causa da arguida inércia, que até não aguça os engenhos para se empregarem mais animais e máquinas nas duras tarefas.”
Entretanto, seu anti-escravagismo é tingido ou permeado pelo racismo:
“Convém , ou não, que a melhor região d’América se converta em Negrícia, e que a Terra da Santa Cruz passe à metamorfose de Guiné Ocidental (…)?”
E, mais adiante:
“O receio é que antes mui rapidamente cresça a progênie de Africanos, e que prepondere em força física, e desproporcionado superior número, à raça dos Colonizadores.”
DECLAMAÇÕES
Em outro livro, publicado em 1811, o futuro visconde de Cairu manifesta sua oposição figadal à substituição de importações.
Note-se que a revogação do alvará de Maria I, de 1785, que proibia a instalação de fábricas no Brasil, datava apenas de três anos antes. Escreve, então, José da Silva Lisboa:
“Se porém intentarmos introduzir as fábricas da Europa, só por espírito de rivalidade, e abarcamento, e por mera imitação dos estrangeiros, no desígnio de diminuir a importação dos artigos manufaturados de que precisamos, distraindo os nossos fundos de empregos mais úteis, e já bem arraigados ramos de indústria do país, a consequência será vermos diminuída a nossa agricultura, exportação, e navegação. Assim como os inconsiderados projetos de nos fazermos independentes de supridores estranhos, as novas introduções de Fábricas prematuras, ou impróprias, e só sustentadas à força de privilégios, não terão outro efeito senão o diminuírem os estabelecimentos permanentes, e mais proveitosos que já possuímos, ocasionando desvio e estrago dos capitais, dignos de melhores usos” (cf. José da Silva Lisboa, Observações sobre a Franqueza da Indústria e Estabelecimento de Fábricas no Brazil, Typog. de Manoel Antônio da Silva Serva, Bahia, 1811, pp. 50-51).
Em 1818, portanto, sete anos depois, ele escreveu:
“É de presumir da Sabedoria Política do Senhor D. João que proceda com a prudência de Ulysses, que tapou os ouvidos, para se não deixar encantar pelas vozes das Sereias, que tentam retê-lo na carreira de felicidade e glória que destina à Nação, posto bradem e rebradem, requerendo proibições de importação estrangeira, com transgressão da Fé Publica, consagrada na Imortal Carta Régia. Não é menos indeferível o astuto expediente (que é espécie de jesuitismo) para iludir o Manifesto à Europa, requerendo-se o sobrecarrego de Direitos equivalente à Interdito dos Gêneros estrangeiros que tem competência com os nacionais” (cf. José da Silva Lisboa, Memoria dos Beneficios Politicos do Governo de El-Rey Nosso Senhor D. João VI, Impressão Regia, Rio de Janeiro, 1818, pp. 101-102).
Mais adiante:
“Os vociferadores não se contentam com o favor racionável, e tão considerável, de que já gozam pela Nova Legislação, e Tarifa; reclamam que o Sistema de Violência suplante o Sistema de Justiça; e que o Pai da Pátria [D. João] beneficie aos produtores em prejuízo dos consumidores, que aliás formam o corpo principal do povo. A experiência bem mostra, que tal violência só tem o efeito de afligir os espíritos; fazer descontentes; predispor o contrabando; e provocar represália mercantil dos Governos, para igual e maior gravame do comércio nacional” (idem, 102-103).
Toda a repetição posterior de slogans – de Joaquim Murtinho, Eugênio Gudin e outros – sobre as “indústrias artificiais”, contra qualquer incentivo ou proteção às indústrias nacionais para que não sejam destruídas pelas mercadorias produzidas no que hoje chamamos de países centrais, já se encontra em Cairu.
Haveria, sob esse ângulo, outro livro que valeria a pena citar, a “Refutação das Declamações contra o Comércio Inglês”, que José da Silva Lisboa publicou em 1810.
Trata-se de uma obra de polêmica, contra os escritores – sobretudo franceses – que acusavam a Inglaterra de exercer um monopólio comercial e de inibir a industrialização de outros países.
Pensamos em empreender também essa análise – mas ela não acrescentaria nada de essencial ao que já dissemos.
UMA EXPLICAÇÃO
Há tempos queríamos escrever este artigo, pois Cairu, em alguns meios, aparentemente, é considerado, hoje, mais importante – ou, pelo menos, em pé de igualdade – com José Bonifácio.
É necessário um registro: Cairu não era, evidentemente, o único áulico e bajulador do reinado de D. João VI ou do governo de Pedro I. Havia, mesmo, na época, o que foi chamado por alguns de “partido áulico”, que teria sido em boa parte responsável, depois da renúncia do primeiro imperador, pela destituição de José Bonifácio da função de tutor de Pedro II.
Mas quase todos esses áulicos estão justamente esquecidos, pela sua nenhuma importância – ou, melhor seria dizer, pela sua completa insignificância.
Não é o caso de Cairu, até porque poucos homens públicos da época escreveram tanto quanto ele, que se colocava sempre na posição de ideólogo, apesar dessa palavra ainda não existir na língua portuguesa.
Assim, ele tornou-se um precursor do entreguismo e da manutenção do país dentro de limites que apenas significavam a conservação do atraso e da miséria – talvez um pouco mitigados, mas jamais redimidos.