Com a obtenção do DNA neandertal, pudemos compará-lo com o nosso DNA e assim entender melhor as diferenças entre essas espécies
GABRIEL ROCHA¹,²
WALTER NEVES²
Todas as pessoas vivas hoje fazem parte da espécie Homo sapiens que atualmente é a única espécie humana presente no planeta. No entanto, o cenário nem sempre foi esse. Num passado distante diversas espécies humanas caminharam contemporaneamente sobre a Terra. Os mais famosos, e não por acaso os mais parecidos conosco, foram os neandertais.
Os neandertais foram indivíduos que habitaram a Europa e a Ásia durante o período glacial, a famosa “Era do Gelo”. Viveram entre 200 e 45 mil anos atrás, quando se extinguiram por razões ainda pouco conhecidas. Nós conhecemos essa espécie principalmente através de seus fósseis, os ossos petrificados desses sujeitos, além das ferramentas de pedra que eles produziram. Desse modo, sabemos um pouco de como e onde eles viviam, o que comiam e até como se pareciam. Os neandertais eram indivíduos muito parecidos conosco, tinham um cérebro tão grande quanto o nosso (às vezes até maior), provavelmente fabricavam vestimentas para sobreviver ao frio congelante e caçavam grandes animais da era do gelo. Comparados a nós eles eram mais baixos e mais parrudos, tinham entre 1,50 e 1,60 metro de altura e viviam em sociedades bastante sofisticadas, é possível até que estivessem pintando paredes de cavernas e usando colares como nós também fazíamos.
Até pouco tempo atrás, o que sabíamos dos neandertais se baseava principalmente nos fósseis e nas ferramentas, mas nos últimos anos nosso conhecimento dessa espécie deu um grande salto quando conseguimos recuperar seu DNA. O DNA basicamente é uma receita molecular que carrega as informações biológicas de um indivíduo. Assim, tivemos acesso a novos dados sobre essa espécie, para além daquelas disponíveis nos ossos e nas pedras. A partir desse material podemos investigar, por exemplo, quando essa espécie surgiu, seu modo de vida, e até questões como a cor dos cabelos e dos olhos. Ainda estamos muito longe de aprender a ler essa receita, mas temos um pote de ouro nas mãos.
Com a obtenção do DNA neandertal, pudemos compará-lo com o nosso DNA e assim entender melhor as diferenças entre essas espécies. A grande surpresa quando comparamos o material genético desses dois grupos foi que acabamos encontrando fragmentos de DNA neandertal no nosso próprio genoma. Em outras palavras, descobrimos que nós e você temos DNA de neandertais. Isso significa que, em algum momento do passado, nossa espécie se encontrou com os neandertais e, mais surpreendente ainda, se relacionou sexualmente com eles.
De maneira geral, cerca de 2% do genoma de todos os humanos que vivem fora da África é composto por DNA dos neandertais. No caso dos africanos isso não acontece porque o contato entre as duas espécies ocorreu apenas na Europa e na Ásia. Resumidamente, nossa espécie surgiu na África por volta de 200 mil anos atrás, alguns grupos saíram e se espalharam pelo mundo e outros permaneceram no continente africano. Como os neandertais habitavam a Eurásia, somente os grupos que saíram da África tiveram contato com eles, por isso os africanos atuais não possuem DNA neandertal.
Mas tem um ponto solto nessa história: se nós e os neandertais em algum momento chegamos a ter filhos juntos, será que de fato somos espécies diferentes?
As diferenças no esqueleto e agora no genoma apontam que sim. Se encararmos o crânio, podemos observar que a região que engloba o cérebro, o neurocrânio, na nossa espécie apresenta o formato arredondado de uma bola de futebol, ao passo que no caso dos neandertais o neurocrânio apresenta um formato mais alongado, semelhante a uma bola de futebol americano. Ainda podemos olhar para o rosto, nossa espécie apresenta duas características que os neandertais não tinham, o queixo e a testa.
O formato geral do corpo também é bastante característico das duas espécies, enquanto nós temos em média um corpo mais alto e mais alongado, nossos primos extintos tinham um corpo mais largo e compacto.
Essas são algumas diferenças importantes entre nós e eles. Além disso, conhecemos também casos na natureza de espécies diferentes que também podem cruzar entre si e produzir filhotes saudáveis, é o caso, por exemplo, dos híbridos entre tartarugas-de-pente e tartarugas-cabeçuda. Dessa forma, os pesquisadores concordam que, mesmo cruzando, nós e os neandertais temos diferenças suficientes para sermos classificados como espécies distintas.
Com a descoberta de DNA neandertal em nós, e com o conhecimento de que nossos ancestrais Homo sapiens tiveram filhos com eles, passamos a encarar esse grupo de uma maneira diferente. Não mais como os brutamontes que habitavam o imaginário popular, mas sim como uma espécie sofisticada e em muitos aspectos semelhante a nós. Os neandertais se extinguiram há cerca de 45 mil anos e não entendemos muito bem o que os levou a isso. Mas agora, o que de fato sabemos é que, ao menos 2% deles ainda vivem em nós.
¹ Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, Departamento de Genética e Evolução, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo.
² Núcleo de Popularização dos Conhecimentos sobre Evolução Humana, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo.