Tentar apaziguar um bando de crocodilos, oferecendo carne a eles, não parece um método razoável. Em geral, o efeito desse método somente pode ser o de açular a voracidade dos répteis.
Foi mais ou menos o que tentou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com o pacote de cortes anunciado na última semana, em relação aos bancos de Wall Street e suas filiais no Brasil.
No entanto, é mais eficaz apaziguar crocodilos (qual será o coletivo de crocodilos?) com carne, que aplacar agiotas, banqueiros, rentistas, com dinheiro.
Nas Estatísticas Fiscais do Banco Central, divulgadas no último dia 29, sexta-feira, está registrado que o governo pagou aos bancos, nos últimos 12 meses, até outubro, R$ 869,3 bilhões em juros da dívida.
Entretanto, são esses bancos que pressionam por cortes nos gastos públicos, especialmente nos gastos sociais – isto é, nos gastos com os mais pobres, aliás, nos miseráveis gastos com os miseráveis, aqueles que, hoje, superam os personagens de Vitor Hugo, em seu romance de 1862.
Por quê?
Porque querem ganhar mais, mais e mais dinheiro – e garantir que seus ganhos estratosféricos e parasitários continuem intocados, enquanto o país, do ponto de vista produtivo, permanece paralisado ou crescendo muito aquém de seu potencial.
A forma de aumentar esses ganhos é, exatamente, diminuir os gastos com o povo.
Por isso eles consideram que esses gastos são “primários”, não-financeiros, por isso podem ser cortados, ao contrário dos gastos financeiros – isto é, dos gastos com juros – que não podem ser nem ao menos tocados, embora o governo tenha meios para tal.
Foi a isso que Haddad cedeu. Sobre as poucas (na verdade, uma: o aumento da alíquota do Imposto de Renda para quem ganha mais de R$ 50 mil) medidas que atingem os mais ricos, David Deccache tem razão ao comentar que “é aberração taxar ricos para legitimar ataque aos mais pobres”.
A observação de Deccache é, aliás, inteiramente pertinente: “O discurso sempre foi: vamos taxar os mais ricos para dar aos mais pobres. Pela primeira vez na história uma medida propõe taxar os mais ricos para legitimar a redução de direito dos mais pobres. Eu nunca vi isso na minha vida, é uma aberração você falar que vai taxar os mais ricos para poder tirar dos mais pobres”.
Como ele conclui, uma coisa não compensa, em absoluto, a outra. A essência do pacote de Haddad é, realmente, o corte em cima dos mais pobres, dos companheiros atuais de Jean Valjean – isto é, da população brasileira.
Como Haddad justificou o pacote com a maravilhosa situação em que sua política colocou o Brasil (então, para que o pacote?) e chamou os cortes de “medidas de fortalecimento da regra fiscal”, vamos, aqui, rever seus próprios números.
É verdade, antes, caberia perguntar por que o país, que tem uma situação fiscal sólida, exceto pelas sangrias dos juros e das desonerações, precisaria de “medidas de fortalecimento da regra fiscal” às custas dos mais pobres, ou seja, do povo.
Aliás, por que um país como o Brasil necessita de alguma regra fiscal?
Para não mexer nos ganhos dos bancos com juros?
Mas essa é exatamente a questão que Haddad ignorou, tanto em seu pronunciamento na TV, quanto na entrevista coletiva, quanto na publicação do Ministério da Fazenda que divulgou.
Os números a seguir são, todos, retirados desse documento, divulgado pelo próprio Ministério da Fazenda, intitulado “Brasil Mais Forte. Governo Eficiente. País Justo”.
Haddad propõe um corte – chamar isso de “contenção de gastos” é um eufemismo cínico – de R$ 71,9 bilhões entre 2025 e 2026; e de R$ 327 bilhões entre 2025 e 2030 (v. página 21 do documento citado).
Vamos desagregar esses dados, também de acordo com o documento do Ministério da Fazenda (as pequenas discrepâncias são consequência de arredondamento nos números).
a) entre 2025 e 2026:
– Abono salarial: R$ 0,7 bilhão (1%);
– Fundeb (tempo integral): R$ 10,3 bilhões (14%);
– DRU (prorrogação): R$ 7,4 bilhões (10%);
– Subsídios e subvenções: R$ 3,7 bilhões (5%);
– Fundo do Distrito Federal: R$ 2,3 bilhões (3%);
– Salário mínimo: R$ 11,9 bilhões (16,5%);
– Bolsa Família: R$ 5 bilhões (7%);
– BPC: R$ 4 bilhões (5,6%);
– Lei Aldir Blanc: R$ 3 bilhões (4%);
– Biometria: R$ 5 bilhões (7%);
– Militares: R$ 2 bilhões (2,8%);
– Provimentos e criação de cargos: R$ 2 bilhões (2,8%);
– Emendas: R$ 14,4 bilhões (20%).
É evidente, fora as emendas, quais são as áreas mais atingidas: o salário mínimo e a verba para ensino integral do Fundeb. Como nenhum banqueiro ganha salário mínimo ou tem filho no ensino público integral, é forçoso concluir que são os mais pobres que são os afetados.
Como disse o jornalista Beto Almeida, conselheiro da ABI, diretor da Telesur e fundador do PT, “o resultado do pacote fiscal é a manutenção dos juros altos, dos privilégios fiscais e a redução dos benefícios sociais, incluindo o salário mínimo. O aumento da isenção do IR pode ser feito pela Receita por via administrativa, como no ano passado se fez”.
Mas, vejamos mais alguns números, também retirados do mesmo documento do Ministério da Fazenda:
b) entre 2025 e 2030:
– Abono salarial: R$ 18,1 bilhões (5,5%);
– Fundeb (tempo integral): R$ 42,3 bilhões (13%);
– DRU (prorrogação): R$ 25,6 bilhões (7,8%);
– Subsídios e subvenções: R$ 12,8 bilhões (4%);
– Fundo do DF: R$ 16 bilhões (4,8%);
– Salário mínimo: R$ 109,8 bilhões (33,5%);
– Bolsa Família: R$ 17 bilhões (5%);
– BPC: R$ 12 bilhões (3,6%);
– Lei Aldir Blanc: R$ 7 bilhões (2%);
– Biometria: R$ 15 bilhões (4,5%);
– Militares: R$ 6 bilhões (1,8%);
– Provimentos e criação de cargos: R$ 6 bilhões (1,8%);
– Emendas: R$ 39,3 bilhões (12%).
Aqui está mais claro em que constituem os cortes – perdão, o “esforço fiscal” – do sr. Haddad: um terço, nada menos que um terço, recai sobre a mudança de regra no reajuste do salário mínimo.
No entanto, todas as “justificativas” de Haddad são o contrário da realidade. Por exemplo, sua justificativa para cortar o salário mínimo, mudando a regra do reajuste, é “garantir ganhos reais ao salário-mínimo de forma consistente com o orçamento da União. Hoje, muito das despesas primárias da União são indexadas ao salário-mínimo” (v. página 6 do documento citado).
Além da hipocrisia dessa justificativa, por que a União precisa diminuir as “despesas primárias”, cortando o salário mínimo, quando o desequilíbrio é causado, principalmente, pelas transferências de dinheiro público aos bancos, sob a forma de juros – R$ 869,3 bilhões nos últimos 12 meses?
A resposta, que Haddad não deu, é evidente: para transferir mais dinheiro aos bancos, sob a forma de juros.
O problema é que depois de ceder de uma maneira tão mesquinha, e tão covarde, os crocodilos do “mercado” vão querer mais.
Aliás, já estão querendo.
CARLOS LOPES