CARLOS LOPES
Izaak Brodsky faleceu em agosto de 1939, portanto, antes da II Guerra Mundial, que seria o tema mais relevante dos pintores soviéticos na década seguinte.
Apesar disso, foi uma figura exponencial do realismo socialista na pintura. Há muito poucos outros artistas que tiveram tanta influência entre os pintores soviéticos. Significativamente, ninguém jamais negou, inclusive nos tempos atuais, a sua condição de grande pintor, apesar de seu papel no estabelecimento da “Leniniana” (a série de obras de arte em torno da figura de Lenin) e até da “Staliniana”, como veremos pelas imagens abaixo.
[Uma anotação necessária nos tempos atuais: não é possível alegar, como a direita mais troglodita, que retratos de Lenin ou de Stalin não constituem arte, mas apenas propaganda – e apenas por serem retratos de Lenin ou de Stalin. Para que tal alegação fosse válida, seria preciso excluir “Retrato de Napoleão Bonaparte, primeiro cônsul”, de Ingres, ou “Retrato do Duque de Wellington”, de Goya, da história da arte. Como, até hoje, ninguém, com um mínimo grau de seriedade, propôs tal coisa…]
A importância da obra de Brodsky não está, também, em que ela esteja na origem do que se chamou – aliás, se chama, atualmente – “escola de Leningrado”.
A rigor, não conseguimos encontrar fundamentos – isto é, fundamentos estéticos – para separar os pintores soviéticos do realismo socialista em uma “escola de Leningrado” e uma “escola de Moscou” (esta tendência, na crítica, adquiriu um fôlego extra após a publicação do livro de Sergei V. Ivanov, “Unknown Socialist Realism. The Leningrad School”, em 2007).
Menos ainda conseguimos fazer essa distinção, quando seus postuladores estendem a “escola de Leningrado” do início dos anos 30 até o início dos anos 90 do século passado, isto é, por sessenta anos (cf. Ivanov, na obra que citamos; o livro, por sinal, independente dessa questão, é bastante importante para o conhecimento do realismo socialista; mas também contém frases como: “Tendo emergido no tempo das discussões mais acaloradas sobre o desenvolvimento da arte e da educação artística na URSS, [a escola de Leningrado] tornou-se o elo perdido que permitiu a preservação da pintura realista nacional e proporcionou seu maior avanço na época do socialismo”; resta saber o que quer dizer “elo perdido” nesta frase, além de uma expressão de efeito para impressionar alguns leitores; a ideia, obviamente, é que a “escola de Leningrado” foi a ponte entre o realismo anterior à Revolução e o realismo socialista; a consequência dessa tese é que toda a pintura do realismo socialista seria tributária da “escola de Leningrado”).
Porém, ainda que não exista uma “escola de Leningrado” do ponto de vista estético (pelo menos, é uma discussão), verdade é que os pintores de Leningrado aglutinaram-se, sobretudo, em torno de Izaak Brodsky, que ancorava-se numa sólida tradição realista anterior ao socialismo, a tradição que tinha em Ilya Repin (1844-1930) o seu principal representante.
Repin foi professor de Brodsky durante cinco anos, na Escola Metropolitana Superior de Arte, que pertencia à Academia Imperial de Artes, na antiga S. Petersburgo.
Abaixo, nós colocamos a amostra dos trabalhos de Brodsky por ordem de realização – ou seja, por ano, tal como os pintores que abordamos anteriormente – para facilitar o entendimento da evolução do artista.
Entretanto, isso também facilita a percepção do que há de extraordinário – digamos assim, “não normal” – nessa evolução.
Por exemplo, é sabido que, após 1917, Brodsky apoiou a Revolução e, na década de 30, foi um esteio do realismo socialista. Mas a tela “Funeral de um operário” (ou, depois, “Funeral Vermelho”) é de 1906, isto é, da época da primeira revolução russa. A obra estava destinada à exposição da Academia Imperial de Artes daquele ano, mas foi censurada. Nas palavras de Brodsky: “De 1906 a 1917, ela ficou enrolada em um canudo, e somente após a Revolução de Outubro eu a encontrei e a entreguei ao Museu da Revolução”.
Essa tela, já naquela época, prenunciava quadros posteriores de Brodsky, por exemplo, “O discurso de Lenin na fábrica Putilov em maio de 1917” (1929).
TURBULÊNCIA
Muito se falou – e se fala – sobre “dirigismo estatal” ou “dirigismo do partido” sobre a arte e os artistas soviéticos, sempre com uma conotação negativa.
Entretanto, falta dizer que esse “dirigismo”, sempre visto como uma restrição à liberdade, era exercido, não poucas vezes, para garantir a liberdade.
Não vamos, aqui, abordar em geral o problema da direção em arte – por exemplo, os monopólios da indústria “cultural” de hoje impõem uma direção, precisamente, no sentido de acabar com qualquer coisa que possa ser chamada de arte.
Ao invés de examinar a questão em geral, vejamos como se colocou, concretamente, na URSS das décadas de 20 e 30 do século passado.
Em 1929, o Soviet de Leningrado nomeou Fyodor Maslov como diretor da Escola de Ensino Superior de Artes e Ofícios (chamada VKHUTEMAS de Petrogrado, por analogia com a instituição semelhante que existia em Moscou).
Maslov, com sua pretensão de “proletarizar” a arte em Leningrado, parecia um adepto tardio da “Cultura Proletária” (Proletkult), de Bogdanov.
A Proletkult, que tinha como programa a construção de uma “cultura proletária” inteiramente nova, já fora condenada, por Lenin, 10 anos antes. Por exemplo:
“É preciso tomar toda a cultura que deixou o capitalismo e construir o socialismo com ela. É preciso tomar toda a ciência, a técnica, todo o saber, a arte. Sem isso não podemos edificar a vida da sociedade comunista” (cf. V.I. Lenin, “Êxitos e dificuldades do Poder Soviético”, 1919, Obras Completas, Tomo 38, Editorial Progreso, Moscou, 1986, p. 60).
Ou, mais explicitamente ainda, referindo-se aos problemas educacionais enfrentados pela Revolução:
“A primeira deficiência foi a abundância de indivíduos procedentes dos setores intelectuais burgueses que tinham, a cada passo, os estabelecimentos de ensino dos camponeses e dos operários, criados de nova maneira, como campo mais propício para suas invenções pessoais em matéria de filosofia ou de cultura, quando as mais absurdas contorções eram apresentadas, a cada passo, como algo novo e se fazia passar algo sobrenatural e absurdo por arte puramente proletária e cultura puramente proletária” (cf. V.I. Lenin, “Discurso de abertura do I Congresso Nacional de Instrução Extraescolar”, 06/05/1919, Obras Completas, T. 38, ed. cit., p. 352).
No início de outubro de 1920, falando no III Congresso da União das Juventudes Comunistas, Lenin entrou, outra vez, diretamente no assunto:
“Sem compreender claramente que essa cultura proletária só pode ser criada conhecendo com precisão a cultura que a humanidade criou ao longo de todo o seu desenvolvimento e transformando-a, sem compreender isso, não podemos realizar essa tarefa. A cultura proletária não surge do nada, não é uma invenção dos que se chamam especialistas em cultura proletária. Isso é pura tolice. A cultura proletária tem que ser o desenvolvimento lógico do acervo de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade de latifundiários e da sociedade burocrática. Todos esses caminhos e estradas levaram, e levam, à cultura proletária, do mesmo modo que a economia política, transformada por Marx, nos mostrou onde deve chegar a sociedade humana, pois indicou a passagem à luta de classes, o começo da revolução proletária” (cf. V.I. Lenin, “Tarefas das Uniões de Juventudes”, 02/10/1920, Obras Completas, Tomo 41, ed. cit., p. 310).
No mesmo mês, apenas três dias depois desse discurso, começou, em Moscou, o Congresso da Proletkult. O principal discurso do governo – e do Partido – foi do Comissário do Povo para a Educação, Anatóli Lunatcharski, no dia 7 de outubro.
No dia seguinte, ao ler a notícia, no Izvestia, sobre o discurso do Comissário, Lenin redigiu uma resolução, para ser apresentada nesse congresso, pois, nas suas palavras, Lunatcharsky havia falado “exatamente o contrário do que nós tínhamos acertado”.
Na resolução, Lenin afirmava:
“O marxismo adquiriu a importância histórica universal como ideologia do proletariado revolucionário em virtude de que, longe de rejeitar as maiores realizações da época burguesa, ele – bem ao contrário – assimilou e reelaborou tudo o que havia de valioso no desenvolvimento do pensamento e da cultura humanas ao longo de mais de dois milênios. Só o trabalho que se realize sobre esta base e neste sentido, inspirada pela experiência prática da ditadura do proletariado, que é a última etapa da luta deste contra toda a exploração, pode ser considerada como o desenvolvimento de uma cultura verdadeiramente proletária” (cf. V.I. Lenin, “Sobre a cultura proletária”, Obras Completas, Tomo 41, ed. cit., p. 343).
Porém, se, após a intervenção de Lenin, a Proletkult terminou do ponto de vista orgânico, como organização à parte (definharia inelutavelmente, até 1932, quando foi extinta), não se pode dizer a mesma coisa da ideologia, que contava com alguns adeptos, declarados ou envergonhados, na direção do partido (por exemplo, além de Lunatcharsky, Bukharin).
Em Leningrado, após 1929, Maslov fechou o museu da Academia de Artes e anunciou um programa de liquidação do acervo. Em 1930, a própria VKHUTEMAS deixou de existir, substituída pelo Instituto de Arte Visual Proletária, também com Maslov como diretor. O departamento de pintura de cavalete foi extinto, pois “a pintura de cavalete deixou de ser uma forma progressista de arte visual”.
Em seguida, Izaak Brodsky, Mikhail Avilov e Gavryl Gorelov foram expulsos da Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AkhRR) como “elementos burgueses”.
Nessa altura dos acontecimentos, a polêmica tornou-se pública, inclusive pela imprensa.
Ivanov localiza (a nosso ver, corretamente) o conflito entre os pintores de Leningrado dentro da guerra entre os abstracionistas – aliás, “formalistas” – e os realistas. Ele lembra que, nos primeiros momentos após a Revolução, a política cultural do Comissariado do Povo para a Educação foi determinada por um grupo de artistas que incluía Kandinsky, Malevich, Sternberg, Drevin, Tatlin, Rozanova, Matyushin e Altman – o estado-maior do “formalismo” na pintura russa.
“A severa oposição entre esses dois campos”, escreve Ivanov, “influenciou bastante o desenvolvimento da arte e da educação artística na década de 20. A escola de arte soviética estava se formando em uma situação de incessantes debates e lutas entre diferentes movimentos artísticos.
“As primeiras reformas pós-revolucionárias colocaram representantes da arte esquerdista no comando da Academia de Artes. No entanto, rapidamente a qualidade da educação se deteriorou drasticamente. Apareciam pessoas que iam e vinham entre os professores e o trabalho acadêmico sério era frequentemente substituído pelo uso de frases pseudorrevolucionárias. Os próprios princípios da escola de arte implodiam sob a pressão de demagogos e diletantes. A negligência em relação ao profissionalismo e ao treinamento sistemático foi encorajada abertamente. Não foi dada atenção ao estudo de história da arte.
“Os melhores professores, que resistiram a essas inovações pseudorrevolucionárias, foram banidos da Academia. Não foi apenas a arte acadêmica antiga, mas a arte realista em geral que foi exposta à desonra pública. A arte formalista, em toda a sua variedade, recebeu o máximo de incentivo” (grifo nosso).
(…)
“Em compensação, a oposição a essas políticas destrutivas formou-se, tanto no meio artístico quanto na Academia de Leningrado. O renascimento da educação artística e o retorno ao realismo estavam na ordem do dia”.
Houve, então, depois da expulsão de Brodsky, Avilov e Gorelov da AkhRR – agravada pela saída, em protesto, de Abram Arkhipov, Rudolf Frentz, Piotr Buchkin, Dmitry Kardovsky, Nikolay Dormidontov, todos artistas na primeira linha da pintura soviética – um inquérito do Comissariado do Povo para a Educação (parece, também, que outro inquérito foi aberto pelo Soviet de Leningrado, sob quem estava o Instituto de Arte Visual Proletária: cf. Veronica Bogdan, The Academy of Fine Arts in the 1920s and early 1930s, The Tretyakov Gallery Magazine, nº 2, 2013 (39)).
O resultado foi a demissão de Maslov em 1932, o fim do Instituto de Arte Visual Proletária e sua substituição pelo Instituto de Pintura, Escultura e Arquitetura.
Uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista decidiu pela dissolução das entidades de artistas de Leningrado (havia dezenas, além de 40 subsidiárias da AkhRR), unificando-as na União dos Artistas de Leningrado.
A fundação dessa entidade, em agosto de 1932, e a eleição para a sua presidência do respeitado pintor e professor Kuzma Sergeyvich Petrov-Vodkin, é considerada, pelos que propugnam a existência de uma “escola de Leningrado”, o seu marco inicial.
Em outubro do mesmo ano, o Conselho dos Comissários do Povo e o Comitê Executivo Central dos Soviets de Toda a Rússia decidiram fundar a Academia de Artes da URSS.
Em 1934, com a nomeação de Izaak Brodsky para diretor do Instituto de Pintura, Escultura e Arquitetura e da Academia de Artes, chegou ao fim, definitivamente, esse conturbado período.
NOVO SENTIDO
Sergey V. Ivanov apresenta, como característica da “escola de Leningrado”, o laço com a pintura realista russa anterior à Revolução.
Na verdade, não conseguimos, por esse traço, distinguir os pintores de Leningrado daqueles de qualquer outra parte da URSS, especialmente daqueles que formariam uma suposta “escola de Moscou”.
Porém, é verdadeiro que a nomeação de Izaak Brodsky – o principal discípulo de Ilya Repin – para a principal instituição de ensino artístico de Leningrado, era uma opção nesse sentido, seguindo as indicações de Lenin que acima transcrevemos.
Brodsky trabalhou incansavelmente, até sua morte, para unir os artistas de Leningrado, e, inclusive, para localizar talentos em outras partes da URSS que fossem alunos promissores.
Mas, unir os artistas em torno de quê? Qual a concepção de Brodsky sobre o lugar do artista na sociedade da URSS?
Em discurso para recém-formados pelo Instituto – e pela Academia, da qual o Instituto era parte – disse ele:
“Saindo dos muros da academia, não esqueçam que nosso país e nosso grande povo estão esperando, de vocês, criações plenas, nas quais, cada um com a sua personalidade individual, expressem as grandes ideias de nosso tempo, as ideias de Lenin, que deram um novo sentido às nossas vidas e ao nosso país. Lembrem-se: para se tornar um artista soviético, apenas o desejo não é suficiente; precisamos de entusiasmo, paciência, diligência, amor pelo trabalho e patriotismo, sem os quais não há grandes coisas. Amem calorosamente a arte, nunca sejam vaidosos, façam progressos contínuos e tenham sempre uma atitude crítica e rigorosa a cada toque, a cada trabalho.”
Brodsky – Isaak Izrailevitch Brodsky – nasceu uma pequena localidade da Ucrânia, Sofiyivka, em 1884, filho de um comerciante judeu. A família não era de judeus pobres, alvos dos pogroms czaristas. Mesmo assim, não era fácil ser judeu na Rússia do czar. Por exemplo, pelas leis do Império Russo, as instituições de ensino superior somente podiam ter 3% de alunos com origem judaica.
Depois de estudar na Escola Municipal de Berdyansk, também na Ucrânia, ele entrou para a Escola de Arte de Odessa em 1899.
O passo seguinte seria mais difícil: entrar para a escola da Academia Imperial de Artes, em S. Petersburgo. Mas ele conseguiu, em 1902, e ficou lá por cinco anos, quando conheceu e foi aluno de Ilya Repin.
Houve outro conhecimento decisivo em sua vida e obra: de 1909 até 1911, viajou pela França, Itália, Alemanha e Espanha.
Na ilha de Capri, na Itália, encontrou Máximo Gorky e tornou-se amigo do grande escritor que seria o principal teórico e representante do realismo socialista.
A Revolução de 1905 tivera, para Brodsky, como para os demais artistas russos, um impacto de uma magnitude difícil de descrever. Até o mestre de Brodsky, o veterano Repin, protestou contra os enforcamentos do czarismo e saiu, em protesto, da Academia Imperial de Artes.
A Revolução de 1917 encontrou em Brodsky, portanto, um apoiador.
Resta dizer que Brodsky foi, também, um grande colecionador de obras de arte, que foram depois entregues ao Estado. O Museu Brodsky, em S. Petersburgo, é composto por essas obras, expostas no apartamento em que o pintor morou.
Brodsky faleceu, aos 55 anos, em Leningrado.
Foi o primeiro pintor, na história da URSS, a ser condecorado com a Ordem de Lenin, a mais alta condecoração do país, em 1934.
Abaixo, uma pequena amostra da pintura de Izaak Brodsky:
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