CARLOS LOPES
Uma das dificuldades de apresentar a obra de um pintor é que nem sempre a frequência relativa dos temas serve de critério para a importância de sua obra. Sobretudo quando se trata de artistas longevos. Vimos, em outra parte desta série, o caso de Igor Grabar.
O mesmo acontece em relação a Yuri Kugach.
Na amostra abaixo, com certeza, as suas paisagens, algumas excelentes – ou até mais que isso, magníficas – estão sub-representadas, isto é, não estão com a mesma participação que elas têm no conjunto de sua obra.
Mas nosso objetivo não é apresentar uma espécie de microcosmo da obra dos artistas do realismo socialista, e, sim, o que existe neles, a nosso ver, de mais importante, sobretudo considerando a sua contribuição para a arte soviética.
Vejamos Primeiro de Maio, de 1952, que abre esta página, ou Feriado, de 1949 (portanto, apenas quatro anos após o fim de uma guerra que devastou o país).
São obras que expressam uma confiança muito grande dos soviéticos naquilo que estavam edificando.
Porém, tomemos “A mudança dos tempos”, de 1950, uma reminiscência da época da coletivização da agricultura – e da expropriação da burguesia rural, o kulak – , na década de 30 do século passado.
Sabe-se que, politicamente, Kugach estava a favor – e não pouco – da coletivização. Sua tela não é uma lamentação pela família que nela aparece. Pelo contrário, é um registro de que a situação na URSS mudou – e das dores do parto desta mudança. O homem que aparece reclamando ou implorando não é uma figura simpática – aliás, os homens do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD), que aparecem na tela, são bem mais simpáticos.
Mas Kugach não ignorou os problemas da família – e, considerando que a tela foi exposta com Stalin vivo e atuante – ninguém achou que o pintor estivesse cometendo alguma infração contrarrevolucionária ao expor a aflição da família “kulak”.
Tomemos, também, Orfãos: 22 de junho de 1941, que, abaixo, dispomos fora da ordem cronológica. É uma representação do primeiro dia da invasão nazista. O horror, no rosto do menino que acaba de perder a mãe, praticamente organiza os outros elementos da imagem, inclusive o rosto cadavérico da avó que segura o outro neto.
Tem importância o fato de que Kugach, mesmo quando a “arte do degelo” era predominante, com seu individualismo e suposta felicidade – uma felicidade boba – tenha voltado à II Guerra Mundial como tema.
MERCADO
Não há dúvida, hoje, sobre a importância da obra de Kugach. Ou sobre a sua maestria. Embora o “mercado” não seja um critério preciso em questões estéticas, Kugach é, hoje, dos pintores do realismo socialista, um dos que têm mais telas em leilões e coleções particulares – talvez seja, mesmo, o pintor soviético com obras mais presentes nessas vendas e compras.
A questão de até que ponto o mercado de arte é capaz de ser um termômetro para a importância de um artista é interessante.
Há muito tempo, faz quase 30 anos, publiquei um pequeno ensaio, com foco no realismo socialista na literatura, Notas Sobre o Herói na Literatura (I) (ed. CPC-UMES).
Usei, como epígrafe, uma frase de Marx, nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”: “O ser humano rico é aquele que tem necessidade de uma totalidade de manifestações humanas da vida, para quem a sua própria realização existe como uma necessidade interior, como uma carência”.
Pretendia, em seguida, escrever a segunda (e, esperava, final) parte desse ensaio.
Estava tudo muito certo e bem planejado. Foi, então, que as minhas boas intenções (e, devo dizer, ambições, no plano cultural) desabaram, ao ler, nas Teorias Sobre a Mais Valia, a seguinte frase:
“[a] produção capitalista é inimiga de certos ramos da produção, como, por exemplo, a arte e a poesia” (cf. Karl Marx, “Teorias Sobre la Plusvalia”, vol. 1, trad. Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Económica, México, 1980, p. 262).
Marx estava afirmando que, em relação à arte, a burguesia era hostil, de um modo que não existia nas classes dominantes do feudalismo e do escravagismo.
A questão era: por quê?
Como classes economicamente mais atrasadas não apresentavam tal hostilidade à arte, mas a burguesia, sim?
Levei uns 20 anos para descobrir e me certificar de que a chave do problema estava na predominância do mercado – e, portanto, da lei do valor – nas sociedades capitalistas.
Ainda que o mercado tenha existido em sociedades anteriores, ele somente se torna predominante, regulando toda a economia, no capitalismo, vale dizer, na sociedade e no modo de produção capitalista (daí a afirmação de Marx, no primeiro tomo de “O Capital”, de que “povos propriamente comerciantes só existiram, tal como os deuses de Epicuro, nos intermúndios do mundo antigo”).
A consequência desse predomínio do mercado é que a obra de arte torna-se, também ela, mercadoria – e, portanto, seus negociantes (vendedores e compradores) vêm nela, antes de tudo, um valor, e não uma expressão da essência humana ou uma condensação da beleza.
Daí, a hostilidade, no capitalismo, à arte, à poesia.
Alguns leitores podem achar que levei muito tempo para chegar a essa conclusão. Infelizmente, cada um com a sua capacidade. Um dia desses ainda vou escrever a segunda parte daquele ensaio…
Mas é verdade que essa ideia – essa descoberta – de Marx já estava implícita nos Manuscritos, escritos entre abril e agosto de 1844, de onde retirei a epígrafe de meu ensaio.
Por exemplo:
“… O sentido musical do homem só é despertado pela música. A mais bela música nada significa para o ouvido completamente amusical, não constitui nenhum objeto, porque o meu objeto só pode ser a confirmação de uma das minhas faculdades. (…) porque para mim o significado de um objeto só vai até onde chega o meu sentido (só tem significado para um sentido que lhe corresponde).
“Por consequência, os sentidos do homem social são diferentes dos do homem associal. Só através da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano é que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em suma, os sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como faculdades humanas).
“De fato, não são apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que vêm à existência mediante a existência do seu objeto, através da natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é a obra de toda a história mundial anterior.
“O sentido aprisionado sob a grosseira necessidade prática possui unicamente um significado restrito. Para o homem que morre de fome, não existe a forma humana do alimento, mas só o seu caráter abstrato como alimento; poderia igualmente existir na sua forma mais crua e é impossível dizer em que medida esta atividade alimentar se distinguiria da atividade alimentar animal.
“O homem esmagado pelas preocupações, necessitado, não tem qualquer sentido para o mais belo espetáculo; o negociante de minerais vê apenas o seu valor comercial, e não a beleza e a natureza característica do mineral (…).
“A objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico como prático, é necessária para humanizar os sentidos do homem, criar a sensibilidade humana correspondente a toda a riqueza do ser humano e natural” (cf. K. Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, trad. Artur Mourão, Edições 70, 1993, Lisboa, pp. 199-200; o parágrafo foi redividido, para facilitar a compreensão dos leitores; os itálicos estão no original).
No mesmo texto, Marx frisa o significado, para o ser humano, de sua submissão à lei do valor:
“Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (p. 159).
Daí:
“… tudo aquilo que tu não podes, pode o teu dinheiro: ele pode comer, beber, ir ao baile, ao teatro, sabe de arte, de erudição, de raridades históricas, de poder político, pode viajar, pode apropriar-se disso tudo para ti; pode comprar tudo isso; ele é a verdadeira capacidade.
“Mas ele, que é tudo isso, não deseja senão criar-se a si próprio, comprar a si próprio, pois tudo o mais é, sim, seu servo, e se eu tenho o senhor, tenho o servo e não necessito do seu servo. Todas as paixões e toda atividade têm, portanto, de naufragar na cobiça” (K. Marx, op. cit.; aqui, usamos outra tradução, a de Jesus Ranieri, publicada pela Boitempo).
Por fim, poderíamos, sobre o assunto, considerar o trecho seguinte como síntese:
“A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós é diretamente possuído, comido, bebido, vestido, habitado, etc., em uma palavra, quando é utilizado. Embora a propriedade privada conceba todas essas várias formas diretas de propriedade como simples meios de vida, a vida à qual servem de meios é a vida da propriedade privada – o trabalho e a criação de capital” (K. Marx, op. cit., Edições 70, p. 197).
Imaginemos o que isso significa quando aplicado à arte e à poesia.
Aliás, em 2019, não precisamos mais imaginar.
KUGACH
Colocada a questão, resta uma pergunta: é possível ao comerciante, por exemplo, de quadros (“marchand de tableaux”), ignorar o caráter artístico de sua mercadoria?
Evidentemente, não. Por mais que lhe interesse o valor – isto é, o dinheiro – e por mais que interesse ao comprador colocar na parede uma obra que vale dinheiro, a transação só existe com a premissa de que se trate de uma obra de arte.
A relação, aqui, é semelhante (aliás, é a mesma) entre “valor de uso” e “valor de troca”, analisada por Marx na Contribuição para a Crítica da Economia Política. Uma mercadoria que não tem “valor de uso”, também não tem “valor de troca”, ou seja, deixa de ser uma mercadoria – pois o valor de troca tem por base o valor de uso.
Mesmo quando o “mercado” oferece algo inútil para o comprador, é preciso que o último leve em consideração o “valor de uso”, real ou imaginário. Senão, por que compraria a mercadoria?
Na arte, a melhor demonstração disso são aquelas obras que somente são vendáveis porque algumas dezenas de “críticos” ou “teóricos” disseram que se trata de uma obra de arte importante (em seu livro The Painted Word, de 1975, Tom Wolfe roçou essa questão; infelizmente, como tudo em Wolfe, sua vontade de aparecer mais que o assunto de que está tratando, acaba tornando a abordagem muito superficial).
No caso dos pintores do realismo socialista, não existe essa última opção. Nem é ela necessária.
O sucesso atual de Kugach no “mercado” é, portanto, um indicador importante.
Yuri Petrovitch Kugach – ao contrário de Brodsky, Grabar, etc. – não pintou no período pré-revolucionário, pois nasceu no mesmo ano da Revolução, 1917, em Suzdal, cidade do ex-grão ducado de Vladímir.
Toda a sua formação, iniciada aos 14 anos, em 1931, na Escola de Arte 1905, em Moscou, foi posterior à Revolução.
Teve, então, a sorte de ter como professores os artistas da geração anterior, como Nikolay Krymov, Igor Grabar e Sergei Gerasimov.
Em 1937, Kugach casou com uma colega, Olga Grigoryevna Svetlichnaya.
Durante a II Guerra Mundial, quando os nazistas se aproximaram de Moscou, ele e Olga estavam entre os artistas que foram evacuados para Samarcanda, no Uzbekistão (v. O realismo socialista na pintura (V): Sergei Gerasimov e O realismo socialista na pintura (VII): Igor Grabar).
Depois da guerra, Kugach tornou-se professor da Casa de Artistas (Academicheskaya Dacha). O princípio geral, que ele e Olga enunciaram, foi: “somente é forte a arte que é nacional”; assim, mudaram para o campo, com a ideia de que sua arte fosse uma expressão do povo russo, para eles, antes de tudo, camponês.
Yuri Kugach foi pai do também pintor Mikhail Kugach – e avô do também pintor Ivan Kugach.
Faleceu em 2013, aos 96 anos.
Yuri Kugach recebeu o Prêmio Stalin (1950), assim como o Prêmio Repin e o Prêmio do Estado da URSS, além do título de Artista do Povo da URSS (1977) e da Medalha de Ouro da Academia de Artes da URSS – da qual foi membro pleno desde 1975.
Abaixo, algumas obras de Yuri Kugach.
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