CARLOS LOPES
Sergei Gerasimov (Sergei Vasilievitch Gerasimov – não confundir com o cineasta de “A Jovem Guarda”, Sergei Appolinarievitch Gerasimov) foi autor do, provavelmente, quadro mais célebre da II Guerra Mundial, “A mãe do guerrilheiro”, que encima esta página.
A cabeça erguida da mãe de pés descalços, seu rosto diante do nazista, a postura de seu corpo, enquanto o filho, atrás, é levado para a morte, condensavam, extremamente, a atitude do povo soviético naquele momento (a tela é de 1943) – ou a atitude que devia se esperar de um soviético. A mãe, na tela, não chora, não implora, não se humilha diante do monstro, apesar de todo o amor que tem ao filho. É a imagem concreta de milhões de mães na URSS daquele momento – não importa o tamanho do banho de sangue nazista, a mãe parece dizer, eles serão derrotados.
Daí o seu sucesso, até hoje.
“A mãe do guerrilheiro” é também um triunfo artístico, estético, com suas figuras bem definidas – inclusive o pé e parte da perna do cadáver, no quadrante inferior direito da obra, assim como o látego que o nazista tem na mão. Menos nítida é a figura do filho que, preso, contido, olha para a mãe. Compreende-se: ela é a representação de todas as mães soviéticas – mãe de todos os filhos, portanto.
[UMA NOTA: O termo usado na Europa, para os guerrilheiros da resistência ao nazismo, é “partisan” (em italiano, “partigiano”), ou seja, “partidário”, pois a luta nos territórios ocupados foi identificada, sobretudo, com aqueles que eram membros do Partido Comunista. Mas, em português, não teria sentido traduzir o título do quadro por “A mãe do partidário”.]
Esta é outra das telas do realismo socialista soviético a que nunca se negou o título de obra-prima.
É interessante, quanto a esse quadro, o contorcionismo de alguns críticos e supostos historiadores de arte atuais, ao postular que as paisagens de S. Gerasimov, realmente magníficas, foram “ofuscadas” por sua obra “política” (isto é, digamos assim, obra política “stalinista”) – mas que a exceção que merece ser levada em conta, nesta última, é “A mãe do guerrilheiro”.
Naturalmente, em relação a essa obra, não se pode negar sua maestria, sua condição de obra-prima do ponto de vista artístico. O recurso, portanto, é colocá-la como exceção, como aquela obra que, apesar de “política”, vale como obra de arte,
Mas Sergei Gerasimov – que não tinha parentesco com Alexander Gerasimov (v. HP 24/09/2019, O realismo socialista na pintura (I): Alexander Gerasimov) – também é o pintor de “Feriado no kolkhoz”, de 1937, uma obra que inaugura um gênero: a pintura das festas nas fazendas coletivas, nas cooperativas socialistas de camponeses, os kolkhozes.
Sobre isso, e para não estendermo-nos sobre algo que, aqui, é secundário, compare-se essa tela de Sergei Gerasimov com “Festa no kolkhoz” (1938), de Arkady Plastov (v. HP 08/10/2019, O realismo socialista na pintura (III): Arkady Plastov) ou com “Celebração”, tela dos anos 50 da pintora ucraniana Tamara Naumova.
Entretanto, a guerra chegou.
Em um artigo sobre “A Jovem Guarda” (o livro de Fadeyev, não o filme), Konstantin Simonov refere que 1/3 dos membros da União dos Escritores Soviéticos morreu lutando contra os nazistas.
Embora não tenhamos os números dos pintores soviéticos que deram a sua vida pela liberdade, podemos afirmar que não foi diferente (ou, pelo menos, foi parecido) quanto a eles.
Como podemos afirmar tal coisa?
Pela quantidade daqueles que estiveram na frente de batalha e sobreviveram, registrando em suas obras aqueles momentos trágicos e heroicos. A partir disso, pode-se imaginar quantas vidas de artistas, de pintores, foram doadas naquela guerra. É apenas uma ilação, que necessita ser confirmada pelos dados, mas o leitor concordará que tem algum sentido.
Entretanto, houve aqueles que, como em todos os setores, foram retirados da linha de frente, por decisão do governo soviético.
Em suma, houve aqueles que, por suas funções, ou por não estarem aptos à dura vida militar, ou mesmo à vida civil sob as condições daquela guerra (somente no cerco nazista à Leningrado morreram um milhão de civis), foram retirados das localidades sob ataque e enviados para o interior da URSS.
Em outubro de 1941, com a aproximação dos nazistas, o Comitê de Defesa do Estado, presidido por Stalin, decidiu transferir para fora de Moscou as instituições culturais, inclusive a principal instituição educacional da Academia de Artes da URSS, a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura V.I. Surikov (MGHI), dirigida, então, por Igor Grabar – e, depois, por Sergei Gerasimov.
Apenas 18 professores e 47 estudantes permaneceram em Moscou. O conjunto da escola, com Gerasimov e Grabar, foi para Samarcanda, no Uzbequistão. Um dos professores que estavam nessa viagem, o pintor Gennady Korolev, resumiu o percurso, que começou em Moscou no dia 18 de outubro:
“A viagem para Samarcanda durou exatamente um mês. Havia paradas longas, às vezes de três dias. Todo mundo saía dos vagões, fazia fogueiras, preparava comida. Em 8 de novembro, recebemos duas bolachas pretas (de soldado). O trem seguia na direção de Samarcanda, mas entrava frequentemente em becos sem saída, onde esperávamos um pouco. Quando finalmente chegamos à cidade, fomos levados ao centro pelo cuco (um pequeno trem com vagões, viajando ao longo de uma ferrovia de bitola estreita) até o Registan, onde moramos por quase dois anos”.
O Registan é uma praça de Samarcanda onde ficavam (parece que ainda ficam) duas madrassas (seminários muçulmanos). Em uma dessas madrassas os alunos e professores foram hospedados.
Dessa época é a série de aquarelas, de Sergei Gerasimov, “Moscou-Samarcanda-Moscou” (abaixo, mostramos duas delas, “Defesa de Iletsk” e uma das que foram intituladas “Samarcanda”).
As Escolas de Arte de Kiev e Karkhov também foram evacuadas para Samarcanda.
Mas o que faziam os alunos e professores dessas escolas, em Samarcanda?
Elaboravam materiais para ajudar à luta contra os invasores nazistas. Um dos membros da comissão que coordenava o trabalho das três escolas, Dmitry Moor, contou:
“Mudar para Samarcanda não parou nosso trabalho… No caminho, trabalhamos em oito cartazes. Durante a permanência do instituto lá, mais de 60 cartazes com slogans em russo e uzbeque foram produzidos pelos estudantes e professores. (…). No concurso de cartazes, o artista V.G. Gremitsky recebeu o primeiro prêmio por seu trabalho em cima de um texto de Alisher Navoi; o artista I.G. Bryulin recebeu o segundo prêmio, pelo cartaz ‘Volto em breve’. Entre as melhores obras gráficas exibidas, estava um cartaz de Yu.P. Reiner; os baixos-relevos eram muito populares. A qualidade dos pôsteres vale o instituto. A série foi depois comprada pela Galeria Estatal Tretyakov”.
A arte gráfica, os cartazes, adquiriu extraordinário desenvolvimento nessa época – mas não apenas a arte gráfica: “A mãe do guerrilheiro”, por exemplo, é de 1943.
ARTISTA E PROFESSOR
Existe uma grande coerência na trajetória de Sergei Gerasimov, que, claro, cresceu, como pintor, ao longo dos anos e das vicissitudes enfrentadas por seu país.
Um dos motivos porque optamos por mostrar as obras em ordem cronológica é, exatamente, dar uma ideia desse desenvolvimento.
Outro motivo é desfazer alguns preconceitos que ainda subsistem.
Por exemplo, em um artigo na principal revista russa de arte – ou, pelo menos, a mais lida – pode-se encontrar o seguinte trecho: “… durante a guerra, eles [os pintores soviéticos] reuniram forças suficientes para deixar de lado muitos dos dogmas e estereótipos que estavam profundamente arraigados na arte oficial da nação durante os anos de pico dessas políticas culturais, ou seja, no final da década de 1930” (cf. Alexander Morozov, “Memory and Glory – Soviet Art of the Great Patriotic War”, The Tretyakov Gallery Magazine nº 1, 2010).
Por esse raciocínio, a invasão nazista foi um bem para os artistas soviéticos. Mas não é somente o raciocínio que é absurdo. A premissa – a de que os artistas soviéticos, antes da II Guerra, viviam em uma camisa de força confeccionada com “dogmas e estereótipos” – é falsa.
Ao invés de uma resposta teórica, convidamos o leitor, na amostra abaixo, a conferir se isso é verdadeiro ou falso, assim como nas amostras das obras dos outros pintores desta série.
E, aqui, como nas vezes anteriores, não estamos tratando de um pintor secundário dentro do realismo socialista, mas daquele que, segundo certos teóricos, seria o pai da “escola de Moscou”, assim como Izaak Brodsky seria o pai da “escola de Leningrado” (aliás, a comparação entre os dois mostra, também, como é insustentável essa distinção, em termos estéticos. Mas isso é assunto para outro artigo, mais adiante, se houver tempo para escrevê-lo).
Sergei Gerasimov nasceu em uma família de camponeses, na cidade de Mojaisk, a 100 km de Moscou, em 1885. Entretanto, seu pai não trabalhava na terra – era curtidor. “Estranhamente“, escreveu S. Gerasimov já próximo da morte, “lembro que entre as necessidades, preocupações e problemas da família havia na atmosfera algum tipo de interesse pela arte“.
Aos 16 anos, entrou na Escola Stroganov de Artes Aplicadas e, depois, na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura, ambas em Moscou.
Em 1912, portanto, antes da Revolução, ele próprio se tornaria professor de arte, atividade que manteve quase até ao final da vida – e responsável, em parte, por sua profunda influência entre os artistas soviéticos.
Com a fusão, em 1918, da Escola Stroganov com a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura, Sergei Gerasimov tornou-se professor da instituição resultante, a famosa Vkhutemas de Moscou.
Em 1937, a convite de Igor Grabar, Sergei Gerasimov tornou-se professor da MGHI V.I. Surikov – e, em 1943, substituiu Grabar como diretor dessa escola.
Existe uma história, repetida ad nauseam, de que a substituição, em 1948, na diretoria da MGHI V.I. Surikov, de Sergei Gerasimov por Alexander Gerasimov teria sido por motivos políticos – Sergei Gerasimov seria “mais liberal” que Alexander Gerasimov.
Não conseguimos achar prova disso – e é muito suspeito que os propugnadores dessa versão não digam claramente o que insinuam: que Stalin teria colocado Alexander Gerasimov no lugar de Sergei Gerasimov porque o primeiro era seu favorito.
Se todas as substituições da época de Stalin tivessem essa interpretação, o Exército Vermelho teria perdido a guerra, pois não há setor onde houve mais substituições na década de 40 do século passado.
Além disso, não apareceu história semelhante sobre a substituição de Grabar por S. Gerasimov em 1943. Certamente, seria mais difícil, com isso, encaixar a história sobre a substituição de 1948.
O fato é que o prestígio de Sergei Gerasimov na URSS não diminuiu – pelo contrário.
Além de membro pleno do PCUS (1943) e membro da Academia de Artes da URSS (1947), recebeu os títulos de Artista Laureado da Rússia (1937), Artista do Povo da Rússia (1943) e foi condecorado duas vezes com a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho.
Em 1937, recebeu o Grande Prêmio (medalha de prata) da Exposição Internacional de Paris.
Durante o período de Kruschev, o artista procurou ficar distante da “arte do degelo”, iniciando uma série de viagens a outros países.
Mesmo assim, quando faleceu, em 1964, aos 78 anos, era Primeiro Secretário da União dos Artistas da URSS – cargo que exercia desde 1958.
Uma amostra da obra de Sergei Gerasimov:
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