CARLOS LOPES
Em 1957, uma pintora do Turcomenistão, uma das repúblicas socialistas que compunham a URSS, ficou célebre, em toda a União, por uma tela.
Era Yevgenia Adamova. A tela o leitor pode ver acima, “Mesmo assim vou estudar”: uma jovem turcomena enfrenta os preconceitos de sua família – em especial, de seu pai – para estudar.
Como em outras paragens do mundo – inclusive aqui, faz algumas décadas – a educação feminina no Turcomenistão era, na década de 30 do século passado, uma espécie de tabu.
Podemos imaginar o que devia ser isso por algo que, no Brasil, já é um lugar-comum, de tanto que essa história já apareceu, e foi repetida. Mas, realmente, havia aqueles pais que achavam que a alfabetização das mulheres somente servia para “escrever bilhete pro namorado”.
Nenhum desses adversários, algo excessivamente toscos, da educação feminina jamais respondeu por que eram contra que as moças escrevessem bilhetes para os namorados. Por que razão saber ler e escrever tornava suas filhas, ou irmãs, mais suscetíveis a infortúnios da virtude do que as mulheres que não sabiam escrever nem ler?
A rigor, o problema era outro: não ver as mulheres como pessoas, dotadas de cérebro próprio e vontade própria – e, se esta ou o outro dessem sinais de vida, seria necessário dificultar e reprimir tais coisas perigosas e indecentes.
Então, outra vez, imaginemos o que devia ser isso no Turcomenistão, país da Ásia Central que, em 1917, quando da Revolução Russa, era habitado por uma coleção de tribos.
Aliás, a história de Yevgenia Mikhailovna Adamova é muito característica das transformações ocorridas depois da Revolução.
Ela nasceu em Livny, na província de Oryol, na Rússia, e passou a infância na Ucrânia.
Quando tinha 19 anos, em 1932, sua família decidiu mudar para Ashgabat, a capital do Turcomenistão.
Este foi um movimento bastante frequente na história da URSS daqueles anos, a mudança de famílias russas para as repúblicas que antes compunham o Turquestão (Uzbequistão, Cazaquistão, Tajiquistão, Quirguistão e Turcomenistão).
É, aliás, uma demonstração de como o problema nacional era tratado – e resolvido – na URSS: a integração dessas famílias russas em seus novos países, ao mesmo tempo que eram ponta de lança para a transformação desses países de população nômade em nações industriais.
A questão fora colocada por Lenin, em 1920, no seu “Informe da comissão sobre os problemas nacional e colonial”, durante o Segundo Congresso da Internacional Comunista:
“… podemos considerar justa a afirmação de que a fase capitalista de desenvolvimento da economia nacional é inevitável para os povos atrasados, que se encontram em processo de libertação e entre os quais agora, depois da guerra, se observa um movimento em direção ao progresso? Nossa resposta foi negativa. Se o proletariado revolucionário vitorioso realiza entre esses povos uma propaganda sistemática e os governos soviéticos lhes ajudam com todos os meios a seu alcance, é errado supor que a fase capitalista de desenvolvimento seja inevitável para os povos atrasados. (…) os países atrasados, com a ajuda do proletariado das nações adiantadas, podem passar ao regime soviético – e, através de determinadas etapas de desenvolvimento, ao comunismo – ignorando em seu desenvolvimento a fase capitalista” (V.I. Lenin, Obras Completas, Tomo 41, Editorial Progreso, Moscou, pp. 252-253).
A mudança de famílias russas para as repúblicas soviéticas da Ásia era um dos aspectos – e dos mais generosos – da ajuda do proletariado russo a esses países, ainda com economia pré-capitalista, para que passassem ao socialismo.
Porém, é claro, nada disso era realizado sem tensões. O quadro mais célebre de Yevgenia Adamova condensa essa tensão no lugar mais delicado: a família.
Mas não eram somente as mulheres turcomenas que encontravam problemas em sua educação – ou em suas escolhas para educar-se. É verdade que, outras, em um sentido diferente.
No caso de Yevgenia, a família não gostava de suas tendências artísticas. Pelo menos, não como profissão. Queria que fosse médica, e ela entrou na faculdade de medicina – mas deixou o curso no terceiro ano.
A medicina, realmente, não era a sua vocação.
Havia, nesse momento, no Turcomenistão, um movimento artístico, em torno do realismo socialista, que tinha por programa a fundação de uma arte nacional turcomena. Seus principais representantes, na pintura, eram Gennady Babikov, Mazaffar Daneshvar, Yulia Daneshvar e Ivan Cherinko.
Adamova foi aluna deles na Escola Pública de Arte do Turcomenistão – e casou com Ivan Cherinko, originário da Ucrânia, turcomeno por vontade e adoção.
O casamento foi feliz – mas foi breve. No terrível terremoto de 1948, Yevgenia e Ivan foram soterrados pelos escombros de sua casa, em Ashgabat. Somente ela, grávida, sobreviveu, com braços e pernas fraturados. Durante toda a noite, enquanto esperavam socorro, eles conversaram. Até que a voz de Ivan desapareceu. Em seguida, chegou a ajuda. O terremoto fora tão violento que até os hospitais de Ashgabat foram destruídos. Os feridos, inclusive Yevgenia, foram transferidos para Baku, no Azerbaijão.
Mas ela voltou ao Turcomenistão.
Em “Mesmo assim vou estudar”, Yevgenia sintetizou todo um período da história turcomena, em que a luta contra o atraso era a questão decisiva.
Esse foi, aliás, o seu principal tema, sempre visto através do ângulo das mulheres. Veja-se, por exemplo, a tela “Nova canção”, que tem por centro uma mulher turcomena, em uma atividade antes reservada aos homens.
Nessas duas obras, ela presta homenagem ao marido, jamais esquecido, no modo como elas foram pintadas, no estilo clássico que notabilizou Ivan Ivanovitch Cherinko.
A perspectiva feminina também pode ser observada na tela “Primeiro de setembro”: a mãe turcomena prepara a filha para o primeiro dia das aulas. Ou na mãe que leva seu filho em “A nobreza de ser você mesma”.
Porém, há registros, aparentemente plácidos, da vida patriarcal do Turcomenistão, como em “Camponeses”. O homem em primeiro plano enfatiza a posição secundária das mulheres. Aliás, esse homem parece irmão – se não, o próprio – do pai de “Mesmo assim vou estudar”.
Em uma lembrança sobre uma viagem que fez ao interior do Turcomenistão em 1940, Yevigenia disse: “Fiquei surpresa com as meninas e mulheres turcomenas. Impressionada pelos velhos com telpeks [um gorro característico dos camponeses turcomenos] brancos e casacos vermelhos. Havia algo novo nessas pessoas, brilhante e até teatral. Trajes brilhantes, pessoas incrivelmente bonitas, postura calma e orgulhosa… E então veio um conhecimento próximo do povo, das mulheres. Aprendi que o destino delas não é tão fácil. Fiquei impressionado com a determinação delas”.
As obras abaixo estão, todas elas, no Museu de Belas Artes do Turcomenistão, em Ashgabat.
O leitor poderá estranhar a quantidade de obras, menor, em relação aos pintores que precederam Yevgenia Adamova nesta série.
Tal se deve a algumas dificuldades – ao contrário de outros artistas, Yevgenia não se tornou, após a queda da URSS, uma atração para o mercado de quadros. Ao mesmo tempo, o Museu de Belas Artes do Turcomenistão não tem uma grande (aliás, nem pequena) galeria digital.
Mas essas obras são suficientes para uma apreciação desta grande pintora.
Yevgenia Adamova recebeu o título de Artista do Povo do Turcomenistão e o Prêmio do Estado Turcomeno.
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