(12/11/2008)
Em maio deste ano, o Ministério Público Federal entrou com ação para responsabilizar os ex-comandantes do DOI-Codi de São Paulo, Brilhante Ustra (1970-1974) e Audir Santos Maciel (1974-1976), pela tortura, morte e desaparecimento de 64 presos políticos. A ação pede que eles sejam obrigados a ressarcir a União pelos recursos públicos despendidos nas indenizações dessas vítimas.
A AGU emitiu parecer segundo o qual não cabe à União o papel de chocar-se com a lei da Anistia.
Já externamos por mais de uma vez, aqui no HP, nossa opinião de que a ação é inepta, porque a Anistia de 1979 foi recíproca.
Naquela quadra da nossa história, anistiar algumas centenas de elementos que cometeram bárbaros crimes de tortura e assassinato na repressão à resistência democrática – armada ou não – era a única forma de tirar das cadeias e de permitir que retornassem à legalidade dezenas de milhares de presos, perseguidos e exilados políticos.
Foi com base nesse acordo tácito que a luta pela redemocratização do país pôde atingir um patamar superior e seguir crescendo até extinguir, alguns anos depois e sem traumas mais profundos, o regime ditatorial.
Portanto, ofende o nosso sentido de justiça, e principalmente o de honra, desejar, agora que a correlação de forças é outra, atropelar aquele acordo com interpretações casuísticas para cobrar indenizações ou mandar para a cadeia, 30 anos depois, fulano ou sicrano.
Os torturadores das décadas de 60 e 70 são cadáveres políticos que o avanço da democracia foi condenando de modo crescente, e com justa razão, a uma vida nas sombras. A maioria está bem próxima de passar desta para melhor ou já passou – como o próprio coronel Audir Santos Maciel que divide com Brilhante Ustra a condição de alvo da ação dos procuradores.
Que doutos jurisconsultos se dediquem a exercitar sua metafísica contra tais fantasmas é algo que não temos o direito de estranhar. O mesmo não podemos dizer de políticos que atravessaram décadas sem questionar o acordo implícito e explícito na Lei da Anistia de 1979 e alegam, em 2008, que ele não é válido porque as leis internacionais tornam a tortura imprescritível.
A questão não é, evidentemente, se os crimes prescreveram ou não. E sim, que o Brasil, um país soberano, aprovou uma lei que está em vigor, segundo a qual, para efeito jurídico, eles foram perdoados e esquecidos.
Consequência: a AGU fez o que lhe cabia para defender a lei e a honra do governo Lula, a despeito das intempestivas atitudes de alguns de seus ministros, particularmente o da Justiça, pelo qual nutrimos grande estima e consideração mas não temos como acompanhar nessa viajada.
E mais não diríamos se Brilhante Ustra não tivesse apresentado como defesa uma peça de ficção onde diz que no período em que comandou o DOI-Codi em SP (29 de setembro de 1970 a 23 de janeiro de 1974) não houve tortura nem assassinato de presos políticos nas dependências do órgão.
Mais. Que a prova de que sua “índole é boa” e de que “seria incapaz de agredir um semelhante” é que sua família, mais precisamente seu irmão já falecido, abrigou o ministro Tarso Genro, logo após o golpe de 1964.
Mais. Que ele, coitado, quase foi sequestrado por organizações terroristas durante três oportunidades e que sua mulher e filha eram freqüentemente ameaçadas: “quem nunca entrou em combate e nunca teve suas esposas e filhos ameaçados não sabe imaginar o que é isso”.
Mais. Que o senador Romeu Tuma, que indicou como testemunha, pode atestar a lisura de seus procedimentos, porque “era o elemento de ligação entre o Comando do II Exército e o Departamento de Ordem Política e Social, órgão no qual estava lotado”.
Mais. Que os atuais Comandantes do Exército e da Região Militar Sudeste e os Chefes do Estado Maior do Sudeste e do Centro de Inteligência do Exército, que nunca passaram nem pela porta do Centro de Torturas e Execuções que ele comandava na rua Tutóia, também devem testemunhar a seu favor, porque “eles hoje são os substitutos legais dos chefes que, na época do meu comando do DOI, deram-me as ordens cumpridas por mim, rigorosamente”. Mas que, apesar disso, não quer que os generais o defendam, “apenas que eles defendam a instituição Exército Brasileiro”.
A quem o falso Brilhante pretende iludir com essa tentativa ridícula de negar fatos mais do que conhecidos e constranger cidadãos que não se comprometeram com suas práticas criminosas a mentirem a seu favor?
Vamos ativar sua memória.
Nos idos de 1985, estava ele convenientemente ocupando uma função fora do Brasil, a de adido militar na embaixada brasileira no Uruguai, quando a deputada Bete Mendes, integrando a comitiva do presidente Sarney em visita àquele país, teve a surpresa e o desprazer de dar de cara com o doutor Tibiriçá, que a havia torturado pessoalmente no DOI-Codi, em 1970. Era o próprio Brilhante Ustra. A deputada denunciou-o, assim que retornou.
Ele nega que isso tenha interferido em sua carreira, mas não consegue explicar o motivo de ter passado à reserva exatamente no mesmo posto que ocupava na ativa, o de coronel, e não no de general. Quem conhece um pouco da vida militar sabe o que isso significa em termos de desonra e desaprovação. Daí em diante, ele foi rolando ladeira abaixo.
Torturador sanguinário, sobre Brilhante Ustra pesam acusações de centenas de casos de tortura, inclusive de familiares de presos políticos, e dezenas de assassinatos, todos relatados diretamente pelas vítimas que sofreram ou testemunharam os fatos.
Não vamos chover no molhado. Quem quiser maiores detalhes é só consultar o site “Tortura Nunca Mais”.
Mas é preciso dizer que se seu irmão, que providencialmente não está mais aqui para confirmar, tivesse mesmo protegido o ministro Tarso Genro, em 1964, os méritos de Abel não são extensivos a Caim.
Mais. Que sua esposa e filha nunca estiveram sob ameaça da guerrilha. Quem tinha por hábito se desdobrar no combate a prisioneiros amarrados e seus familiares era ele. A guerrilha jamais desceu ao seu nível. Ele não tem consciência, mas essa é uma das causas fundamentais que levaram a ditadura a se isolar e perder a guerra no terreno político.
Mais. Que o senador Romeu Tuma não estava lotado no DOI e não tinha obrigação de conhecer os casos de tortura praticados ali, ao contrário dele que comandava o órgão e dos prisioneiros que as sofreram na carne.
Mais. Que a tentativa de chantagear publicamente oficiais da ativa, de alta patente, sob a alegação de que se não assinarem embaixo de seu auto-imputado atestado de conduta exemplar estarão se negando a defender o Exército, apenas revela o caráter de um psicopata que não reconhece limites.
Ustra pode ter escapado da cadeia. Mas não vai escapar de continuar vivendo no opróbrio, até baixar sepultura com dois carimbos na testa: torturador e covarde. E pode erguer as mãos aos céus e dar-se por satisfeito. O que não lhe faltou foi sorte.
SÉRGIO RUBENS DE A. TORRES