A maior parte das críticas que o artigo de Guido Mantega, sobre o suposto programa econômico de Lula, provocou, giram em torno de sua omissão quanto ao desastre econômico do segundo governo Dilma Rousseff, em que esta fez o oposto do que prometera na campanha eleitoral (v. Guido Mantega, Bolsonarismo levou Brasil à crise, e retomada virá com o seu fim, FSP 04/01/2022).
Essa omissão é verdadeira – e escandalosa, porque desmoraliza a própria tese do título, a de que foi o bolsonarismo que levou o Brasil à crise, ou aquela, um pouco diferente, que está no texto: a de que Temer e Bolsonaro, e só estes, levaram o país ao abismo atual. Portanto, Bolsonaro e Temer, em vez de compostos excrementícios da crise, seriam causa dela. Mas para isso Mantega teve que omitir a catástrofe do segundo mandato de Dilma.
Bastaria mencionar que no último ano de Dilma (2015) a economia (isto é, o PIB) caiu -3,5%, para que as alegações (aliás, omissões) de Mantega nesse sentido sejam percebidas como completamente despropositadas.
Não obstante, estamos longe de considerar que isso é o que existe de mais grave no texto.
No segundo mandato da srª Rousseff, Mantega não era mais o ministro da Fazenda, mas Joaquim Levy, boy do FMI e do Bradesco, e ex-secretário do Tesouro no primeiro mandato de Lula. A omissão diante desse período desastroso pode ser – e, efetivamente, é – um ato de desonestidade intelectual, mas não faz de Mantega responsável por aquilo que não fez.
Porém, em relação à manutenção do malfadado tripé macroeconômico neoliberal (câmbio flutuante, sub-metas de inflação e aperto fiscal) nos governos Lula e no primeiro governo Dilma, Mantega é plenamente responsável.
Da mesma forma que, para manter esse tripé, ele foi, também, responsável pela desaceleração econômica no primeiro mandato de Dilma.
No artigo que agora publicou na “Folha de S. Paulo”, em vários trechos, é claro que os planos de Mantega para um novo governo Lula consistem, sinteticamente, em manter o tripé macroeconômico. Isso aparece não somente em referências a medidas econômicas concretas como a questões de fundo – isto é, questões que se referem à própria concepção do desenvolvimento.
Antes de entrarmos nessas questões, quais foram as consequências do tripé nos passados governos Lula e Dilma?
1) A apreciação cambial – consequência do “câmbio flutuante” – levou à entrada desmesurada de dólares no país, e, por consequência, à desnacionalização da indústria e à desindustrialização. O aumento de consumo foi devido, fundamentalmente, às importações.
2) O estabelecimento de metas de inflação subestimadas, comprimidas, serviu para manter os juros altos, como forma de atingir a meta. Outro modo de atingir a indústria – e a economia em geral – e transferir recursos de toda a sociedade ao parasitário setor financeiro.
3) A tentativa de manter um alto superávit primário – isto é, uma alta reserva para transferência de juros ao setor financeiro – serviu para apequenar os investimentos públicos.
O sr. Mantega, em seu atual artigo, tenta apresentar tais características como positivas – e, quando não pode, as omite.
Entretanto, ele conta, a seu favor, com uma espécie de “efeito-demonstração” por contraste: a situação atual é tão ruim, que muitos têm uma rememoração idealizada do que foram os governos do PT. Quando isso não é possível – como no caso do segundo governo Dilma – oculta-se o problema.
O que cabe perguntar é como o país aumentou o consumo enquanto a produção interna – sobretudo a produção industrial – estagnava ou regredia, devido à desindustrialização?
Obviamente, o boom das commodities – o aumento nos preços e nas compras, sobretudo de soja e minério de ferro, no mercado externo – financiou as importações.
Porém, o governo não aproveitou esse momento para aumentar o peso e a sofisticação da nossa indústria manufatureira, setor chave do crescimento, exceto marginalmente. Essa não foi a política do sr. Mantega.
E qual foi a política do sr. Mantega?
Ele a denominou “social-desenvolvimentismo” – e essa expressão aparece agora, mais de uma vez, no artigo que escreveu para a “Folha de S. Paulo”.
Por que ele colocou esse nome em sua doutrina?
Para se contrapor ao nacional-desenvolvimentismo, ou seja, à concepção de que nosso desenvolvimento tem que ser alicerçado na produção interna, na indústria nacional e no mercado interno, no capital nacional, através do aumento do consumo (o que significa aumento de salários) e dos investimentos públicos.
No primeiro momento, o “social-desenvolvimentismo” de Mantega significava que não era importante a nacionalidade das empresas, desde que elas fornecessem emprego. O fato de que as filiais de multinacionais dependem muito menos do mercado interno (isto é, dos salários dos trabalhadores) do que o conjunto das empresas nacionais, não era levado em consideração por Mantega.
A rigor, isso significava considerar o dinheiro externo, o capital estrangeiro, mais especificamente, o Investimento Direto Estrangeiro (IDE) – o capital externo aplicado em empresas – como o principal motor do desenvolvimento brasileiro.
Essa política foi o motivo do aumento espetacular da entrada de IDE no país, a partir do segundo mandato de Lula (abaixo, em valores líquidos, segundo o Banco Central):
2003: US$ 10,144 bilhões;
2004: US$ 18,146 bilhões;
2005: US$ 15,066 bilhões;
2006: US$ 18,822 bilhões;
2007: US$ 34,585 bilhões;
2008: US$ 45,058 bilhões;
2009: US$ 25,949 bilhões;
2010: US$ 48,506 bilhões;
2011: US$ 66,660 bilhões;
2012: US$ 65,272 bilhões;
2013: US$ 63,996 bilhões;
2014: US$ 62,495 bilhões.
Mas a maior parte desse dinheiro, como na vaga anterior de IDE, não veio para instalar novas empresas, e, sim, para comprar empresas nacionais – isto é, para desnacionalizá-las.
Mantega ignorou – ou não considerou importante – esse fato.
Também outro fato, o de que boa parte das empresas desnacionalizadas pela onda de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) eram fechadas pelo capital estrangeiro, que preferia exportar para o Brasil, não foi considerado.
Notemos que o Brasil já havia, no governo Fernando Henrique Cardoso, sofrido uma onda de desnacionalização pelo IDE. Assim, aquela do período de Mantega era uma onda em cima de outra onda anterior.
O resultado foi que, findo o boom das commodities, o país, com a indústria já bastante devastada, entrou em crise. Era necessário mudar o modelo econômico. Mas isso, exatamente, é o que não foi feito. Nem por Mantega, no final do governo Lula, muito menos por Joaquim Levy, que exacerbou todas as características predatórias do modelo neoliberal.
Mantega sabe – como sabia antes – que sua proposta atual é manter o neoliberalismo, isto é, o tripé macroeconômico. Por isso, diz logo no primeiro parágrafo: “Se for feita uma autópsia no cadáver do bolsonarismo, serão descobertos fortes indícios de um neoliberalismo anacrônico”, etc.
Portanto, ele considera que existe um neoliberalismo que não é anacrônico…
Não à toa, os galardões que ele exibe para a “política econômica social desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma” (sic) são todos oriundos do neoliberalismo, mais exatamente, das satisfações do setor financeiro com a sua política. Por exemplo:
“… a partir de 2008 o Brasil passou a receber avaliações positivas de grau de investimento, pelas principais empresas de classificação de risco.”
O “grau de investimento” é uma licença ou recomendação para saquear um país através da especulação – essas “agências” dizem aos especuladores onde é seguro especular e levar os recursos desses países.
Mantega acha isso uma vantagem e um mérito da sua política.
“… política fiscal responsável, que compatibilizou aumento de verbas sociais com os maiores superávits primários da economia brasileira.”
Logo, a transferência aos bancos de trilhões em juros, operado pelo maravilhoso Meirelles, hoje equivalente de Mantega na campanha de João Doria, deve ter sido um milagre superior à multiplicação dos peixes e dos pães.
Aqui, nem mesmo a aritmética parece afetar o raciocínio de Mantega: será que sem tamanha verba para os bancos, as verbas sociais – para não falar nos investimentos públicos em geral – não poderiam ter sido muito maiores?
“Pela primeira vez, em 500 anos, a renda dos mais pobres cresceu mais do que a dos mais ricos e a desigualdade diminuiu no país.”
Aqui, estamos diante da fantasia eleitoral, em que os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek não existem e onde a comparação é feita até mesmo com os índios que habitavam o país há 500 anos (será que existiam índios pobres e índios ricos?).
Note o leitor, não estamos, com isso, deixando de reconhecer os avanços, em termos de diminuição da pobreza – mas não distribuição de renda – durante o governo Lula.
No entanto, o que Mantega propõe em seu artigo é fazer a mesma coisa de antes, em uma situação muito pior – mas muito pior mesmo – para o Brasil.
O que ele propõe é deixar o neoliberalismo intocado, com algumas benesses compensatórias para o povo.
Se isso teve algum efeito antes – basicamente, no segundo mandato de Lula – foi devido ao boom das commodities e ao fato de que o país não estava tão arrasado como hoje está.
Mesmo assim, quanto aos empregos de que Mantega se gaba, é forçoso reconhecer que a maioria deles foi de baixa qualificação – e não poderia ser de outra maneira, com a desindustrialização do país.
Se Lula pretende governar outra vez o país, seria decisivo fazer um balanço da sua administração anterior – e a de Dilma. Em que seu governo ganhará, se considerar que não houve problemas, não houve debilidades nos governos anteriores? Aqui, a repetição da história não será em forma de farsa. O risco é repeti-la em forma de tragédia.
Mas, continuemos.
Muitos colaboradores de Dilma tentaram explicar o fracasso de seu segundo governo, através da “crise econômica internacional”.
É uma estranha explicação, pois implica em considerar o Brasil como um país sem dinâmica interna para se desenvolver – ao contrário do que aconteceu em quase todas as crises anteriores, desde 1929-1930.
Evidentemente, a diferença não está aí. A diferença está na política econômica – se empreendemos uma política nacional-desenvolvimentista, isto é, uma política independente, ou se nos submetemos aos acontecimentos exteriores, numa época de monopólios financeiros ferozes.
A política cambial – e, de resto, o tripé macroeconômico – implementada por Mantega, foi uma política submissa a tal ponto que, encerrado o boom das commodities, ela tornou o seu “social-desenvolvimentismo” insustentável.
A esse encerramento do boom das commodities, alguns chamaram de “crise econômica internacional”.
O modelo poderia – e deveria – ter sido corrigido, mas não foi. Entretanto, agora, o sr. Mantega fala em voltar a ele. Ou seja, voltar ao neoliberalismo compensatório (um economista chamou isso de “neoliberalismo de esquerda”, mas esse é um termo bom apenas como gaiatice, aliás, justificável).
O que acrescenta um elemento de urgência na discussão dessas questões é que estamos agora em uma situação inteiramente diversa daquela de 2003, primeiro ano do mandato de Lula, ou de 2007, primeiro ano do segundo mandato de Lula.
Apesar disso, diz Mantega que pretende “retomar a via do social-desenvolvimentismo” no futuro governo Lula.
Este artigo é uma colaboração para que, se Lula for eleito, isso não aconteça. O Brasil não sairá da crise através de uma política que, qualitativamente, não é oposta àquela que o colocou na crise.
Nosso problema é derrotar Bolsonaro, mas, para quê?
Para tirar o país da crise ou para continuar no atoleiro apenas um pouco atenuado, se tanto?
É verdade que, abaixo do artigo de Mantega, consta uma nota, avisando que “este artigo não expressa o ponto de vista da candidatura Lula, que ainda não foi lançada, sendo o resultado das discussões de um grupo de economistas que assessoram o ex-presidente Lula”.
Ainda bem. Mas, então, o que podemos dizer, por enquanto, é que o ex-presidente, do ponto de vista econômico, está mal assessorado. É verdade que, se Lula não tem programa econômico, não deveria permitir que Mantega o representasse na série de artigos da “Folha de S. Paulo”.
CARLOS LOPES