Na quinta-feira, 29/11, seis ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votaram a favor da constitucionalidade do indulto de Natal de Temer de 2017 (Decreto nº 9.246), que reduziu a pena de todos os condenados “por crimes praticados sem grave ameaça ou violência à pessoa” – inclusive os condenados por corrupção no âmbito da Operação Lava Jato – que tivessem cumprido 1/5 da pena (ou 1/3, no caso dos reincidentes).
O indulto foi suspenso duas vezes, por liminares concedidas pela ministra Cármen Lúcia, então presidente do STF, e pelo ministro Luís Roberto Barroso.
O resultado de quinta-feira, apesar de conformar maioria a favor do indulto, não é definitivo, pois o julgamento não foi encerrado, devido a um pedido de vista do processo pelo ministro Luiz Fux. É permitido aos ministros a mudança de seu voto.
Como apontou a procuradora geral da República, Raquel Dodge, em sua ação contra o decreto de Temer, este extinguiu 80% (ou 4/5) da pena dos condenados – incluídos aqueles que perpetraram “crimes extremamente relevantes no atual contexto político e histórico da sociedade brasileira, como é o caso dos crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, crimes eleitorais, criação e participação em organização criminosa, entre outros” (cf. PGR, Parecer N.º 28/2018, Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.874/DF, p. 5).
A posição majoritária na quinta-feira foi a do ministro Alexandre de Moraes, que, em extenso e erudito voto, remeteu a questão a um “sistema de freios e contrapesos” que seria característico do Estado Democrático de Direito.
Em resumo, disse o ministro, na democracia, um Poder controla e limita os outros. Assim, o indulto presidencial, estabelecido pelo artigo 84 da Constituição, seria uma forma de controle do Executivo sobre o Judiciário, assim como este tem suas formas de controle do Executivo.
Daí, conclui o ministro, “compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade; devendo ser, por inoportuna, afastada qualquer alegação de desrespeito à Separação de Poderes ou ilícita ingerência do Executivo na política criminal, genericamente, estabelecida pelo Legislativo e aplicada, concretamente, pelo Judiciário”.
Em resumo, o indulto é um freio, um contrapeso, às decisões do Judiciário (e também às do Legislativo, que aprova as leis penais). Por isso, não pode ser limitado pelo Judiciário, pois significaria que este estaria eliminando um freio legal e constitucional sobre si mesmo.
Todas as numerosíssimas citações feitas por Moraes, assim como a revisão que faz dos vários indultos, desde o governo Getúlio até o governo Sarney, têm a finalidade de demonstrar essa tese.
No entanto, a questão, como escreveu a procuradora Raquel Dodge, é que quem ignorou o freio (isto é, os limites estabelecidos pela Constituição) foi Temer, ao usar um indulto para modificar sentenças judiciais em massa e, na prática, legislar, pois um indulto tão generalizado significa ignorar a lei que existe.
Resta observar que isso somente foi realizado para que os corruptos entrassem também na lista do indulto.
Temer, inclusive, como frisou o ministro Luís Roberto Barroso, relator da questão, modificou a proposta de indulto que lhe foi enviada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que, legalmente, é quem prepara o projeto de indulto de Natal:
“… minuta original proposta pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) vedava expressamente a concessão de indulto (i) a condenados por crimes de corrupção e correlatos e (ii) da pena de multa.
“Tais vedações, contudo, foram excluídas do decreto, em contrariedade à recomendação expressa dos órgãos técnicos e jurídicos que participaram do procedimento de elaboração do decreto e à revelia do sentimento social.”
A proposta foi alterada, portanto, para incluir os corruptos.
RELATÓRIO
Assim, disse o ministro Barroso, na primeira parte do julgamento, ocorrida na quarta-feira:
“O poder de baixar decreto é limitado. Mesmo discricionários, os atos do poder público são controláveis. Os valores e princípios que informam a Constituição e o Estado de Direito têm de ser observados. O presidente pode baixar como quer as penas, e até aboli-las? Não.”
Ele nota que, além disso, “o decreto reduziu prazo de cumprimento de pena para ser beneficiado pelo indulto para apenas 1/5, onde tradicionalmente era 1/3, além de ter abolido o teto máximo de condenação para fins de indulto, o que nunca havia ocorrido [ou seja, o condenado pode ser beneficiado independente do tamanho da sua pena]”.
Por fim, ao examinar a questão dos criminosos por corrupção que foram incluídos no decreto de indulto:
“Esse decreto esvazia o esforço da sociedade e das instituições, onde delegados, procuradores e juízes corajosos enfrentam as diferentes modalidades de crimes organizado, inclusive a do colarinho branco. E cria facilitário sem precedentes a quem cometeu esses crimes.”
PREMISSA
A ministra Rosa Weber ressalvou sua discordância com o conteúdo do decreto de Temer:
“Embora guarde pessoalmente restrições com a política formulada no decreto de 2017, em especial quanto a seu alcance aos crimes de corrupção, não vejo como chegar a um juízo de invalidade constitucional”.
A ministra se referia ao seguinte dispositivo constitucional:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
“XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;”
Exatamente o mesmo dispositivo a que se referiu a procuradora geral Raquel Dodge, na ação contra o indulto de Temer:
“Não há dúvida jurídica de que o indulto é ato discricionário e privativo do Presidente da República, disciplinado no artigo 84, inciso XII da Constituição. O Presidente pode concedê-lo segundo critérios de conveniência e de oportunidade, sob a premissa inafastável, no entanto, da finalidade constitucional do instituto, que é a de prevenir o cumprimento de penas corporais desproporcionais e indeterminadas.”
No caso, diz a procuradora, essa premissa não existia.
Não deixa de ser interessante que o decano do STF, Celso de Mello, apesar de votar pela constitucionalidade do indulto de Temer, concordou com a premissa ressaltada pela procuradora, ao dizer que indulto presidencial era uma “forma de proteger cidadãos contra possível erro judicial ocasionado por condenação injusta ou punição excessiva”, além de poder ser concedido “no interesse da estabilidade social e política e da coexistência pacífica”.
Não nos referiremos ao voto do ministro Gilmar Mendes, porque pertenceu mais ao campo da agitação política do que, propriamente, ao campo do Direito.
CONSTITUIÇÃO
A Presidência da República, evidentemente, não é ocupada por Getúlio, Linhares, Juscelino, Jango, Figueiredo ou Sarney – presidentes citados pelo ministro Alexandre de Moraes.
O autor do decreto a favor dos corruptos é um indivíduo chamado Michel Temer, pego em flagrante quando acertava uma propina com o dono da JBS, e que, segundo a Polícia Federal, chefiava um esquema de propinas – durante anos – no Porto de Santos.
Por isso, não é possível analisar a questão apenas do ponto de vista do que diz o artigo 84 da Constituição.
Pois a mesma Constituição estabelece, em seu artigo 37, que a moralidade é um princípio da administração pública:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Uma lei ou decreto imoral é, portanto, uma agressão à Constituição – além de ser ao próprio país.
LEIS
A questão é, como escreveu a ministra Carmen Lúcia em 2017, quando suspendeu o indulto de Natal de Temer, que “indulto não pode ser instrumento de impunidade”.
Por outro lado, o indulto de Temer atropela o Legislativo – a quem cabe legislar sobre penas – e ao Judiciário, ao extinguir sentenças em massa, como diz a procuradora:
“A competência constitucional para indultar não confere ao Presidente da República a prerrogativa de suprimir injustificadamente condenações penais.
“O chefe do Executivo não tem competência constitucional para legislar sobre matéria penal e não pode, por essa razão, extrapolar os limites da finalidade do indulto e estabelecer parâmetros incompatíveis ao princípio da razoabilidade, o que acaba por se equiparar à descriminalização de condutas penalmente relevantes”.
A procuradora está, também, com inteira razão ao indicar que a finalidade do indulto sempre foi “humanitária” – e que o decreto de Temer nada tem a ver com isso:
“… concessão de indulto deve se fundar em critérios de política criminal, compatíveis com a natureza humanitária do instituto. Não é o caso do decreto impugnado. Sem justificativa minimamente razoável, amplia desproporcionalmente os benefícios e cria um cenário de impunidade no país. Reduz em 80% o tempo de cumprimento da pena aplicada, extingue penas restritivas de direito e suprime multas e o dever de reparar o dano pela prática de crimes graves” (cf. a íntegra do parecer de Raquel Dodge).
O ministro Luís Roberto Barroso evidenciou que o decreto de Temer transgride a própria Constituição, no artigo 37, que acima transcrevemos:
“… o decreto de indulto impugnado possui o condão de beneficiar investigados e condenados por envolvimento em esquemas de corrupção recém ocorridos, quando não ainda em curso. E isso, por si só, configura afronta ao princípio da moralidade administrativa. Independentemente do número de atingidos imediatos, a medida fixa um patamar de leniência que, reproduzido em anos seguintes, traria total impunidade. Na linha do que demonstrou a Procuradoria-Geral da República, ‘a Lava Jato está colocada em risco, assim como todo o sistema de responsabilização criminal’” (cf. Decisão do ministro Luís Roberto Barroso).
Além disso, o ministro apontou que a inclusão dos corruptos no indulto implicava, também, em “desvio de finalidade” e em “falta de legitimidade democrática”.
BENEFICIADOS
Votaram pelo indulto de Natal de Temer os ministros Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Celso de Mello.
Os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin votaram contra. Os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e o presidente do STF, Dias Toffoli, ainda não votaram.
Como houve um pedido de vista – do ministro Luiz Fux – o fim do julgamento foi adiado.
No último momento, Gilmar Mendes tentou suspender a liminar do ministro Barroso que impede a consumação do indulto. O intento foi baldado por outro pedido de vista, este do ministro Dias Toffoli.
Porém, quem seria beneficiado com o indulto de Natal de Temer?
Seriam beneficiados 21 condenados por corrupção:
1) o amigo de Lula, José Carlos Bumlai;
2) o ex-deputado do PT, e ex-vice-presidente da Câmara, André Vargas;
3) o ex-senador peemedebista Gim Argello;
4) o ex-deputado, do PP, Luiz Argolo;
5) o operador do PP, João Cláudio Genu;
6) o dono da UTC, Ricardo Pessoa;
7) o ex-presidente da Camargo Corrêa, Dalton Avancini;
8) o ex-vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Leite;
9) o ex-presidente do Conselho de Administração da Camargo Corrêa, João Ricardo Auler;
10) o ex-diretor da Andrade Gutierrez, Elton Negrão de Azevedo Junior;
11) o monopolista dos ônibus de Santo André, Ronan Maria Pinto.
Além desses, seriam beneficiados com o indulto de Temer os operadores, doleiros ou lobistas Zwi Skornicki, Nelma Kodama, Adir Assad, Carlos Habib Chater, Bruno da Luz, Jorge Antonio da Silva Luz, Mário Goes, Antonio Carlos Pieruccini e André Gustavo Vieira da Silva.
Antonio Palocci, que, na época do indulto de Temer, estava preso, seria também um dos beneficiados.
C.L.