“Continuar a subida da Selic e cortar salário e programas sociais significa conspirar claramente contra o crescimento da economia”
O “superaquecimento” da economia, o pacote fiscal e o cartel do rentismo
NILSON ARAÚJO DE SOUZA (*)
O tal mercado, eufemismo para o cartel dos rentistas financeiros, decretou e Haddad sancionou que o “PIB potencial” do Brasil está na faixa dos 3% ao ano. Como nos últimos dois anos, o PIB vem crescendo um pouco mais que isso (3,2% em 2023 e estimados 3,3% neste ano), a economia estaria “superaquecida”, o que engendraria pressão inflacionária, exigindo, em consequência, maior aperto na política monetária, isto é, elevação da taxa básica de juros, a Selic, e mais aperto na política fiscal, isto é, corte nos gastos sociais e nos investimentos.
AGRONEGÓCIO
Destrinchemos primeiro o comportamento do PIB nestes dois anos. É mais do que óbvio que o crescimento de 2023 foi alavancado pelo agronegócio e secundariamente pela indústria extrativa de exportação. Assim, segundo o IBGE, enquanto a agropecuária cresceu 16,3% e as indústrias extrativas 8,76% (principalmente petróleo e minério de ferro), puxando o conjunto da indústria para 1,7%, a indústria de transformação sofreu queda de 1,3% e a da construção civil 0,5%.
O consumo das famílias, alimentado pelos programas sociais e a geração de emprego, que cresceu 3,1%, não foi suficiente para alavancar a indústria, a qual, ademais, experimentou revés no investimento: a formação bruta de capital fixo (FBCF), indicador do investimento, caiu 3%. Era, portanto, um crescimento insustentável, pois o rabo, por maior que seja, não consegue balançar o cachorro. A agricultura de exportação, por sua natureza cíclica, devido a oscilação de seus preços, além de seu pequeno peso no conjunto do PIB, não consegue alavancar por muito tempo a economia. Salvo uma conjuntura internacional muito favorável, a supersafra de um ano, ao forçar a queda dos preços, tende a converter-se numa quebra de safra no ano seguinte.
GERAÇÃO DE EMPREGOS
E foi o que ocorreu em 2024, considerando a comparação ente os três primeiros trimestres e igual período do ano anterior. Desta vez, o PIB da agropecuária caiu 3,5%. O que vem alavancando a economia é a indústria de transformação, que cresceu 3,2%, beneficiada pelo crescimento do consumo das famílias (+5,1%) e a retomada do investimento (+6,6%). E o que provocou o aumento do consumo das famílias? Mais uma vez, os programas sociais e a geração de emprego. E o que, diante dos juros de agiotagem praticados pelo Banco Central, promoveu o aumento dos investimentos? Os programas de financiamento e investimento do governo, considerando o BNDES, a Finep, a Nova Industria Brasil, o Plano Safra, o PAC.
Não se trata de crescimento excepcional algum. Nos outros governos de Lula, o PIB cresceu 4,5% ao ano e chegou a atingir 7,5 % em 2010. Durante 50 anos, de 1930 a 1980, o crescimento foi de 7% ao ano na média. Costuma-se retrucar que os tempos são outros. Isso é verdade, mas como, nesses tempos outros, a Índia vem crescendo acima de 6% ao ano, sendo que no último ano fiscal terminado em março o crescimento foi de 8%? Por acaso, a Índia tem mais potencial do que o Brasil? Por sua vez, o investimento, que subiu um pouco, teve um crescimento da taxa em relação ao PIB apenas na margem: a FBCF subiu apenas um ponto percentual, de 16,4% para 17,6%, do terceiro trimestre de 2023 a igual trimestre de 2024, o que mal dá para repor a depreciação das máquinas.
CORTES SOCIAIS
Num quadro como esse, ainda tenro, continuar a subida da Selic e cortar salário e programas sociais significa conspirar claramente contra o crescimento da economia. Se são os programas sociais, o reajuste real do salário mínimo, das aposentadorias, do BPC, além do Bolsa Família e do abono salarial, complementados pelo financiamento e o investimento público, que vêm puxando o PIB, a elevação da Selic e do conjunto dos juros, além dos cortes do salário mínimo e dos programas sociais, poderá comprometer seriamente a ligeira reativação do investimento e da indústria, ao derrubar sua demanda e o aumento de sua capacidade produtiva.
A alegação é a de que a economia estaria “superaquecida”, o que pressionaria a inflação para cima. Superaquecida por que? Dizem: porque o PIB potencial de 3% vem sendo superado pelo crescimento real. E quem determinou, por qual modelo econométrico, que o teto fatídico é 3%? Ninguém, a não ser a ganância dos rentistas financeiros em cevar-se de juros cada vez mais escorchantes.
Dizem que não é bem assim, que não é o cartel dos rentistas, da oligarquia financeira, que se beneficia desses juros, mas a maioria da sociedade, que detém títulos públicos. Não é verdade: se somarmos instituições financeiras, fundos de investimento, não-residentes e seguradoras, daria uma fatia de 66,8%, mais de dois terços, do montante do conjunto dos títulos (junho de 2024). Se somarmos a previdência privada, que inadequadamente especula com os fundos de pensão, chegaríamos a 89,9%.
INFLAÇÃO
Ora, não há descontrole inflacionário algum. O IPCA (excluindo o ano fora da curva, 2021: 10,06%) segue rodando na média dos últimos quatro anos, de 4,83%, incluindo uma previsão de 4,42% para 2024 (inflação ocorrida nos últimos 12 meses até setembro). Mas poderia ser ainda menor e enquadrar-se nos estreitos limites da meta. O que fez a taxa, que já esteve perto dessa inalcançável meta, elevar-se um pouco foram fatores, alguns deles sazonais, que não se combatem com juros elevados. Ao contrário, estes pressionam a inflação para cima.
Em primeiro lugar, a inflação dos alimentos, alimentada pelas secas no Centro-Oeste, Norte e Nordeste e as cheias do Rio Grande do Sul, problema que poderia tranquilamente ter sido equacionado pelas compras governamentais no período da safra para desovar na atual entressafra, como sempre se fez no Brasil. Segundo, a pressão da tarifa de energia, que, em função da seca, o que afetou as hidrelétricas, passou para a bandeira vermelha, mas que, diante da “normalização” das chuvas, baixou para bandeira verde, deixando de pressionar a inflação. Terceiro, a especulação com dólar para enquadrar o governo: só nos últimos 30 dias até 10 de dezembro, o dólar já se valorizou em 5,22% e, ao longo deste ano, 23,51%.
DÓLAR VALORIZADO
O dólar valorizado aumenta os preços dos produtos importados, pressionando a inflação. Isso poderia ser tranquilamente enfrentado com a venda de dólares pelo Banco Central ou, no mínimo, swap cambial. Mas o presidente do BC, que fez dezenas de intervenções no “mercado” durante o governo anterior, se recusou a fazer o mesmo no governo Lula, sabotando, claramente, a economia. Por último, mas não menos importante: Delfim Netto já havia demonstrado em 1967 e André Lara Resende voltou a demonstrar mais recentemente que, se a taxa de juros permanece elevada por muito tempo, substitui o efeito de contenção da demanda pelo impacto no aumento dos custos, o que pressiona a inflação para cima.
Por fim, não há qualquer crise fiscal no país. Existe um problema financeiro: cerca de 90% do déficit nominal provém das despesas financeiras, devido ao pagamento de juros de agiotagem no montante de R$ 869,3 bilhões nos últimos 12 meses até outubro. Apesar disso, a relação dívida/PIB do Brasil está longe dos níveis de países do G20, que superaram os 100% do PIB: Japão – 255%, Singapura – 168%, Argentina – 155%, Estados Unidos – 122%, Canadá – 108%. A taxa do Brasil (84%, pela régua do FMI), também está abaixo do Reino Unido (98%) e da Zona do Euro (87%) e semelhante à China (83%) e à Índia (82%).
DÍVIDA LÍQUIDA
Não bastasse isso, a variável adequada não é a dívida bruta, mas a líquida, que desconta os haveres brasileiros em reservas cambiais e no Banco Central, o que, segundo Lara Resende, implicaria numa redução de 30 pontos percentuais. Além disso, a dívida pública brasileira é basicamente em moeda nacional, o que impede a insolvência.
Há uma outra despesa muito importante, que são os gastos tributários, que montam, segundo o Ministério da Fazenda, em R$ 546 bilhões por ano. Se se quer melhorar a parte fiscal, basta anular ou reduzir parte desses gastos tributários (10% do total já renderiam R$ 54,6 bilhões por ano) e seguir lutando pela queda da taxa de juros: a cada ponto percentual de redução, economizam-se mais de R$ 40 bilhões por ano.
(*) Nilson Araújo é economista e dirigente do PCdoB
É preciso conter a ganância e insensatez dos agentes do mercado financeiro, caso contrário o país jamais será desenvolvido e próspero.