
O que fica dos episódios da semana é que “quanto mais se abaixa para atender aos interesses do financismo, mais os abutres e chacais avançam em cima da carne fresca”
PAULO KLIASS*
Uma das principais fontes de fundamentação jurídica do regime de austeridade fiscal. que tantos sacrifícios vem impondo à grande maioria da população, é a Lei Complementar nº 101/2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Apesar de ter sido aprovada no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC), ela não foi objeto de revogação ou de alguma alteração substantiva desde a posse de Lula em seu primeiro mandato em 2003. A vigência de tais dispositivos é um dos principais responsáveis pela destinação de quase R$ 11 trilhões a título de pagamento de juros aos detentores de títulos da dívida pública, desde que a série do Tesouro Nacional começou a contabilizar tais valores em 1995.
Ao contrário do que se imaginava, o Presidente da República que veio a suceder o período dos tucanos passou a se orgulhar, desde então, daquilo que ele começou a considerar como uma virtude de seus governos. Desta forma, ele considera positivo a postura de ter sido responsável fiscalmente e ter gerado a maior série de superávits primários de nossa História. Assim, ao contrário do que se poderia imaginar, a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo federal deu continuidade ao processo de normalização das práticas de austeridade fiscal em nossas terras.
Dentre inúmeras regras criadas, a LRF estabelece que o governo deve encaminhar ao Congresso Nacional relatórios bimestrais de acompanhamento das receitas e das despesas primárias, tal como previsto na própria Constituição, em seu art. 165, § 3º. Ocorre que esse ato, que vem sendo realizado de maneira regular e sistemática há mais de duas décadas, por vezes ganha uma dimensão exagerada em função da conjuntura que o País e sua economia atravessam.
O ANÚNCIO DO NOVO PACOTE DA AUSTERIDADE
Esse parece ter sido o caso do relatório mais recente elaborado pelo Ministério da Fazenda. Foi convocada uma coletiva de imprensa com toda a pompa para a tarde do dia 22 de maio, onde estavam presentes Fernando Haddad, Simone Tebet e uma série de secretários dos 2 ministérios da área econômica. A intenção era apresentar os números e as tabelas do comportamento fiscal relativo ao primeiro quadrimestre do ano, bem como apontar as soluções para que o governo possa alcançar a meta de zerar o déficit primário até o final de dezembro. Afinal, esse foi o objetivo que o próprio governo se auto impôs, a partir de uma sugestão do Ministro da Fazenda ao Presidente Lula.
A apresentação de Haddad reforçou a necessidade de se aumentar o rigor da austeridade fiscal, por meio de uma estratégia de cortes e contingenciamentos nas rubricas orçamentárias no valor de R$ 31 bilhões. Esse total representa por volta de 15% do total das despesas discricionárias, ou seja, aquelas verbas do Orçamento Geral da União (OGU) que não são obrigatórias. Além disso, o ministro aproveitou a oportunidade para responsabilizar as concessões de Benefício de Prestação Continuada (BPC) como um dos principais fatores que estariam pressionando pelo lado das despesas. E, também, utilizou a sua explanação sobre o quadro fiscal para anunciar a necessidade de uma nova Reforma da Previdência, uma vez que as alterações constitucionais anteriores não teriam sido capazes de reduzir o crescimento “explosivo” dos gastos previdenciários.
É importante ressaltar que todo este esforço que o governo pretende realizar pelo lado da contenção dos dispêndios da área social deriva da proposta encaminhada por Haddad de estabelecer como meta fiscal para o presente ano a redução a zero do déficit primário. A proposta foi introduzida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e aprovada ainda no primeiro semestre do ano passado. Com tal objetivo a cumprir, por proposta elaborada por ele mesmo, Haddad termina por se apresentar como o grande verdugo dos gastos não financeiros do governo federal. A exemplo da meta de inflação de 3%, o governo se auto impõe um objetivo fiscal de difícil consecução e que só faz aprofundar a austeridade caso haja empenho em cumpri-lo.
O RECUO DAQUELE QUE NEM TINHA IDO
Por outro lado, com o intuito de evitar novos problemas até o final do ano, a equipe econômica introduziu no pacote de medidas apresentadas na coletiva de imprensa uma série de alterações na cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A intenção era a de promover uma elevação no montante de receitas arrecadadas até dezembro próxima. Ocorre que a medida já havia sido vazada para a imprensa horas antes pelo Ministro das Transportes, Renan Filho. Com isso, foi colocada em marcha uma operação de pressão por parte dos representantes do financismo junto ao Ministro da Casa Civil e que contou com todo o apoio do Presidente do BC, Gabriel Galípolo.
A intenção do lobby era obrigar o governo a recuar da medida que já havia sido apresentada publicamente por Haddad na apresentação do pacote de medidas fiscais. Assim, o jogo pesado de bastidores e a facilidade com que a elite do sistema financeiro tem seu acesso junto ao núcleo dirigente do Palácio do Planalto aperfeiçoou o enredo desse dramalhão – um roteiro de uma farsa absurda, capaz de provocar um sentimento de vergonha alheia em quem quer que tome contato com o mesmo. Em um primeiro momento, o foco era derrubar a cobrança de IOF nas operações de fundos financeiros aplicados no exterior.
Pois então, a sequência dos atos e fatos deixou à mostra, mais uma vez, a quais atores políticos e econômicos o governo se ajoelha. Quando as centrais sindicais, o movimento dos aposentados, o movimento estudantil, as entidades ambientalistas e o movimento dos sem-terra pressionam por mudanças nas políticas públicas equivocadas, nunca se consegue nenhuma notícia boa. Agora, bastou uma medida pontual, pouco expressiva mesmo, que afeta apenas os interesses do povo do financismo para que o governo se movimentasse com agilidade nunca vista anteriormente. E a pressão foi tão “convincente” que o anúncio da revogação da medida ocorreu antes mesmo do início da noite e o Planalto mandou imprimir uma versão extraordinária do Diário Oficial para não desagradar a ninguém e não deixar sombra de dúvidas a respeito de tal recuo.
Para manter a pose, Haddad encomendou a narrativa de que sabe voltar atrás em decisões que possam eventualmente desagradar aos interesses da Faria Lima.
(…) “A minha decisão (de recuar) foi absolutamente técnica. Foi tomada horas depois do anúncio, assim que me chegaram as informações sobre o problema. (…) A medida foi reavaliada e reprocessada na publicação no Diário Oficial antes da abertura do mercado” (…) [GN]
E, de outro lado, Galípolo também comemorou a revogação da medida, inclusive elogiando a vocação democrática de seu ex-chefe no Ministério da Fazenda. Depois de apunhalar Haddad pelas costas, ele declarou o seguinte:
(…) “Todo mundo precisa louvar e reconhecer que o ministro, como bom democrata que é, em poucas horas suprimiu a medida. Antes mesmo do mercado abrir, ele tinha ouvido o mercado e fez a alteração que não causou dano” (…) [GN]
Enfim, trata-se de uma verdadeira lição de como caminha sem tréguas e sem obstáculos o austericídio em nosso País. O Ministério da Fazenda preserva e aprofunda as regras da austeridade fiscal extremada, focando apenas nos cortes nas rubricas de dispêndios primários. O BC, agora sob a gestão de seu novo Presidente, também implementa uma política monetária cada vez mais arrochada, com a elevação da SELIC nas três primeiras reuniões ocorridas neste ano.
O mais irônico é que essa postura de bom moço adotada por Haddad não convence mais ninguém. No fechar das cortinas deste primeiro ato da farsa do austericídio, lideranças conservadoras da base do governo no legislativo e diversas entidades empresariais já aproveitaram o recuo do governo para exigir a revogação de todos os atos envolvendo elevação do IOF. Ou seja, quanto mais o governo se abaixa para atender aos interesses do financismo, mais os abutres e chacais avançam em cima da carne fresca. E os prejudicados são sempre os setores da base da nossa vergonhosa pirâmide da desigualdade social e econômica
O resumo da ópera é que outra vez fica demonstrada a necessidade de o Presidente Lula intervir com maior rigor e firmeza na definição das linhas mestras da política econômica do seu governo. Caso mantenha a liberdade para que Haddad e Galípolo sigam agindo de acordo com suas próprias consciências e aceitando as orientações emanadas do centro do financismo, o governo continuará cavando esse buraco, que poderá dificultar sobremaneira a eleição de Lula em outubro do ano que vem.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal