Talvez a melhor síntese do que foi o último debate entre alguns candidatos a presidente da República antes do primeiro turno das eleições, esteja nas observações da candidata da Rede, Marina Silva, para o candidato do PT, Fernando Haddad:
“É lamentável que você não reconheça nenhum dos erros. ‘Abrir o Palácio para os pobres’, mas o Bolsa Empresário, só no BNDES, foi um trilhão para meia dúzia. Isso é o equivalente a 35 anos de Bolsa Família. O Bolsa Empresário, 5% do PIB. O Bolsa Família, 0,5%, Haddad. Vários casos de corrupção. Você tem agora a oportunidade de olhar para o povo brasileiro e reconhecer os erros, e você não faz. Você reitera todos os erros cometidos, e ainda faz o elogio do mesmo jeito, como se pedir desculpas, como se reconhecer erros fosse um problema. Não é. Quando a gente está diante de uma crise como essa que nós estamos vivendo a gente tem que pensar em um projeto de país, não é em projeto de poder. O Brasil está à beira de ir para o esgarçamento sem volta, entre a sua candidatura e a do Bolsonaro. É preciso colocar, por um termo em tudo isso.”
O comportamento de Haddad, em quase tudo, parecia sob medida para reforçar Bolsonaro – que, na TV Record, dava entrevista, ao mesmo tempo em que começava o debate da Globo, atirando, exatamente, na corrupção do PT (v. Bolsonaro transgride a lei em encenação na TV).
Haddad, entre outras coisas, insistiu em negar as provas da corrupção em seu partido, e, especificamente, as provas contra Lula, o que provocou a reação do candidato Álvaro Dias, do Podemos:
“À pouco eu vi o candidato Haddad afirmando que Lula está preso injustamente. As provas são cabais, definitivas, provas materiais, testemunhais, primeira instância, segunda instância, julgamento com transparência, com o direito de defesa. Há outros inquéritos em curso. Não há como admitir que alguém que pense isso durante a campanha eleitoral vá valorizar o Ministério Público, a Polícia Federal, vai modernizar a legislação para torná-la mais rigorosa no combate à corrupção. Quem diz que Palocci mente diante dos fatos que ele revela, certamente não será um presidente capaz de impor rigor no combate à corrupção. Com tantos escândalos de corrupção no governo do PT, o senhor diz que vai combater a corrupção sendo presidente?”
É difícil não concordar, nessa questão, com o candidato do Podemos.
Haddad, inclusive, apresentou uma nova – ou nem tão nova – versão sobre a crise do país. Ao replicar ao candidato Geraldo Alckmin, do PSDB, disse o candidato do PT (transcrevemos na íntegra, para evitar mal-entendidos):
“O que o candidato Geraldo Alckmin não reconhece é que depois que o seu partido foi derrotado em 2014, e infelizmente correligionário dele admitiu em entrevista recente, o PSDB e se associou ao Michel Temer para sabotar o governo, aprovando as chamadas pautas bombas: gastos desnecessários, aumento para a cúpula do funcionalismo público, um absurdo, aumentando acima do teto, com o auxílio dos mais diversos, salário de quem já ganhava bem. E foi isso que levou o país à crise. E não a política responsável com as finanças públicas que nós fizemos” (grifo nosso).
Portanto, segundo a inovadora versão de Haddad, o que afundou o país na crise não foi a política econômica de Dilma, depois de sua reeleição, o famigerado “ajuste fiscal”, que entregou R$ 501 bilhões e 786 milhões de dinheiro público aos rentistas, sob a forma de juros, em um único ano (2015); derrubou o PIB em -3,5%; o consumo do povo em -3,2%; os investimentos em -13,9%; e desempregou 5 milhões e 553 mil trabalhadores, só em 2015.
Ao contrário, diz a versão Haddad, não foi esse “ajuste fiscal” de Dilma e de seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy, que levou a economia brasileira quase – como se dizia – às vascas da agonia.
De acordo com o que disse o candidato do PT, os culpados pela crise foram aqueles que atrapalharam ou resistiram ao “ajuste” de Dilma.
Haddad nada disse sobre os milhões de desempregados que a “política responsável” do PT causou. Segundo sua versão, se todos tivessem se conformado com a devastação do país, aí não teríamos entrado em crise…
O candidato Alckmin respondeu que “o PT terceiriza a responsabilidade”, o que é verdade – mas, como a política defendida por Alckmin não se distingue da que o PT aplicou a partir de 2015, essa afirmação, apesar de verdadeira, soa como um débil gemido.
Durante o debate, Haddad repetiu mais algumas vezes essa impostura. A começar por ignorar completamente o estelionato eleitoral de Dilma – que prometeu não fazer o “ajuste” e não cortar direitos em sua campanha eleitoral, e fez exatamente isso, começando com um aumento de juros três dias após a reeleição.
Por exemplo, disse Haddad:
“Vocês estão cortando direitos do trabalhador, vocês estão cortando direitos sociais, apoiando o governo Temer. (…) Cortar direito do trabalhador para acertar as contas públicas não se faz. Tem que cobrar do andar de cima e não dar privilégio para o andar de cima, como vocês recentemente fizeram, (…) e querendo aprovar uma Reforma Previdenciária no lombo do trabalhador rural, da pessoa com deficiência. Isso não se faz. Isso o PT jamais fará.”
O PT já fez isso. E, se Dilma não caísse, ia fazer o que Temer fez.
No dia 7 de janeiro de 2016, durante café da manhã com jornalistas, Dilma declarou o seguinte:
“O Brasil vai ter que encarar a questão da Previdência. Os países desenvolvidos buscam aumentar a idade mínima para acessar a aposentadoria. Não é possível que a idade média de aposentadoria no Brasil seja 55 anos. Para a mulher, um pouco menos.”
Em seguida, Dilma conclamou os partidos a apoiar a sua reforma da Previdência:
“Se os partidos políticos de oposição não tiverem um mínimo de compromisso com o país, estariam tendo um comportamento que coloca seus interesses eleitorais na frente dos interesses do país. É responsabilidade do governo propor. Mas a responsabilidade também é da oposição.”
No dia 29 de janeiro de 2016, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), o então ministro da Fazenda de Dilma, Nelson Barbosa, que substituíra Levy, disse o seguinte:
“Temos de enfrentar o desafio do mundo todo: a sustentabilidade da Previdência Social. A evolução da população para os próximos 35 anos, que mostra a necessidade de reformar as regras para preservar a sustentabilidade do sistema, no qual a geração atual financia a aposentadoria da geração posterior.”
Os pontos da reforma da Previdência de Dilma são essencialmente os mesmos da reforma da Previdência do governo Temer (cf., no site do Ministério da Fazenda, a apresentação, feita na época, Uma visão geral do processo de reforma da previdência).
Porém, o PT não ficou no projeto. Através da medida provisória nº 676, Dilma cortou vários direitos. Essa MP foi transformada na Lei 13.183/2015, que restringiu, até mesmo, o direito à pensão por morte das viúvas.
Quanto à “tem que cobrar do andar de cima e não dar privilégio para o andar de cima”, o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, observou, com propriedade:
“… o trabalhador e a classe média já pagam impostos demais. (…) Agora, se a gente olhar no andar de cima, acontece o contrário. O governo no Brasil é como se fosse um Robin Hood ao contrário. Ele tira dos mais pobres para dar para os mais ricos. Super rico no Brasil não está acostumado a pagar imposto, banqueiro não paga imposto, grande empresário paga muito pouco imposto. O bolsa empresário, por exemplo, é de R$ 283 bilhões em desonerações fiscais, liberou para o empresário não pagar. Isso dá dez vezes o valor do Bolsa família. Já disse aqui: quem tem um carro paga IPVA, quem tem um jatinho ou helicóptero não paga nada”.
Todas as desonerações foram instituídas no governo do PT.
PETRÓLEO
É absolutamente cínico, aliás, que Haddad diga, sobre a Petrobrás:
“… 15 bilhões de dólares custava a Petrobras, quando nós assumimos. Hoje ela custa 80 bilhões de dólares a valor de mercado. Sabe por quê? Porque nós multiplicamos por 10 o investimento da Petrobras. Sem isso, nós jamais acharíamos o pré-sal, que é o passaporte para o futuro se vocês pararem de vender para os americanos o que é do povo. Eu vou retomar o petróleo da Petrobras para investir em saúde e educação, e você aprovou uma lei para alienar, para os americanos, o que é dos brasileiros. Isso eu não vou permitir.”
A lei a que se refere Haddad, o chamado “projeto Serra”, que destituiu a Petrobrás como operadora única na área do pré-sal, somente passou no Congresso devido ao apoio do governo Dilma.
O fato é absolutamente conhecido, até porque os senadores Roberto Requião, Randolfe Rodrigues – e até os petistas Lindbergh Farias e Fátima Bezerra, que, na época, dissentiram da posição de seu governo e de seu partido – denunciaram o acordão do governo Dilma com os tucanos para aprovar o que, nas palavras da senadora Fátima Bezerra, foi “um dos maiores retrocessos do ponto de vista dos interesses nacionais, do ponto de vista dos legítimos interesses do povo brasileiro”.
No entanto, Haddad tem a hipocrisia de se apresentar como defensor dos interesses nacionais.
De 2007 a 2014, o PT armou e perpetrou um assalto contra a Petrobrás, avaliado, até agora, em R$ 42 bilhões.
Além disso, foi o PT – o governo Dilma – quem promoveu o primeiro leilão do pré-sal, precisamente, aquele do maior campo petrolífero do mundo, o de Libra, no qual entregou parte dessa reserva para a Shell e a Total.
Para realizar esse leilão, até as Forças Armadas foram convocadas por Dilma para enfrentar manifestações pacíficas de jovens, muito justamente indignados com a entrega de nosso petróleo, na maior reserva do mundo, descoberta pela Petrobrás, a monopólios petroleiros estrangeiros.
Mas, disse Haddad, “isso eu não vou permitir”.
Já foi permitido e promovido, por Dilma, e sem que Haddad emitisse um único vagido de protesto.
ENSINO
O candidato Álvaro Dias fez uma observação para Haddad:
“… quando você fala do seu desempenho no Ministério da Educação, eu fico pensando que você estava na Dinamarca”.
Haddad gabou-se de sua gestão, sobretudo em relação ao ensino universitário, o qual, com sua política de privatização, conseguiu tornar uma pasta informe e inútil para o progresso do país, ainda pior que na época dos tucanos.
Recebeu uma resposta adequada do candidato do PSOL, Guilherme Boulos:
“Olha, Haddad, em relação ao ensino superior que você mencionou, de fato é importante ter ampliado vagas na universidade e ter feito programa de cotas. Agora, nós temos um problema aí. Hoje, vai mais dinheiro para o Fies do que para a universidade pública. Nós temos é que criar mais vagas na universidade pública e criar um modelo de transição. Porque a universidade pública tem pesquisa, tem extensão, tem ciência. Esse dinheiro que hoje vai para a universidade privada tem que ir para as públicas, inclusive fazer uma auditoria porque ele tem uma verdadeira caixa-preta aí dos grandes grupos de ensino privados educacionais.”
Realmente.
Boulos, aliás, também fez uma contribuição interessante na questão do chamado “agronegócio”:
“… um dos setores da economia que mais leva a farra das desonerações é o agronegócio: o ITR, que é o imposto territorial rural, tem uma arrecadação minúscula no país. É menor do que a arrecadação de três meses do IPTU da cidade de São Paulo. Dizem que o agronegócio carrega o Brasil nas costas, a gente já ouviu aqui defesa a defesa do agronegócio nesse debate; é o contrário: é o Brasil que carrega o agronegócio nas costas com desonerações e isenções abusivas.”
ESPECTRO
Por fim, uma curiosidade – isto é, uma curiosidade nossa.
Henrique Meirelles, do PMDB, repetiu várias vezes que “em 33 anos de trabalho em empresa, em dez anos de serviço público, eu nunca tive uma denúncia por corrupção, não tenho nenhum processo., aliás, eu estou pensando em criar o movimento dos ‘sem processo’, porque com isso nós vamos de fato fazer algo importante para a população brasileira hoje”.
Isto é, literalmente, mentira.
Meirelles somente escapou do juiz Moro, no caso Banestado, porque Lula elevou a presidência do Banco Central a Ministério – e somente para que Meirelles escapasse.
Acusações e denúncias não faltam. Nós mesmos já fizemos uma síntese delas (v. Meirelles: empresas fantasmas, roubo e fraude acoitados por Lula e Temer).
Além disso, Meirelles, até virar ministro de Temer, era o presidente do conselho da JBS, um antro de picaretagem, corrupção e assalto ao dinheiro público – em conexão tanto com o PT quanto com o PSDB e o PMDB – como houve poucos no mundo (v. JBS: Temer, Lula, Meirelles, propinas e dinheiro do BNDES).
Meirelles não sabia de nada que estava acontecendo na JBS?
Por essas razões, é totalmente inexplicável que nenhum outro candidato tenha contestado as declarações de Meirelles sobre a sua própria probidade.
Ou será que tem alguma explicação?
C.L.