Depois da recusa em aprovar a vacina Sputnik V, governadores e especialistas cobram da agência uma atitude mais condizente com a gravidade da situação da pandemia no país
A posição da direção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no caso vacina Sputnik V, revela que o órgão do governo federal segue mantendo a mesma apatia negacionista do início da pandemia quando, por influência direta de Jair Bolsonaro, atrasou a aprovação de vacinas. A agência chegou a paralisar, sob aplausos do presidente, as pesquisas da CoronaVac, em função da morte de um participante do ensaio clínico que havia se suicidado, mas a Anvisa não se dignou a perguntar ao Butantan, simplesmente interrompeu os trabalhos.
O Instituto Gamaleya, uma espécie de Butantan russo, até na idade, já explicou diversas vezes, em seus documentos, enviados à Anvisa, que sua vacina – que usa a técnica de vetor viral – é pura, ou seja, não apresenta nenhum vírus replicante em sua composição. Nos documentos que apresentou à agência brasileira, os pesquisadores explicam que no início do processo de produção da vacina, há sim a presença de replicação viral, mas que, no final, o adenovírus, que se transforma no vetor para carrear o gen da proteína S do coronavírus para dentro do organismo humano, já não é mais capaz de replicar. Processos biológicos os tornam não replicáveis.
Ambos os adenovírus que compõem o Sputnik V, conhecidos como Ad5 e Ad26, são produzidos por células humanas em cultura chamadas células HEK293. Os adenovírus transportam o gene do pico do coronavírus para as células do receptor da vacina, que então produzem o pico, solicitando uma resposta imunológica. Para impedir que os adenovírus se repliquem uma vez dentro do hospedeiro humano, é removido um gene de que precisava para a reprodução, chamado E1 . Os vírus podem se copiar em células HEK293, que são projetadas para ter um gene E1 stand-in, mas não devem ser capazes de se replicar depois de separados das células humanas e embalados na vacina final.
Então eles removem o gene de que o vírus precisava para a reprodução. Os vírus podem se copiar em células HEK293, que são projetadas para ter um gene E1 stand-in, mas não são capazes de se replicar depois de separados das células humanas e embalados na vacina final.
O Instituto russo afirmou em seu site que as denúncias da Anvisa “não têm fundamento científico e não podem ser tratadas com seriedade”. O instituto de pesquisa acrescentou que “nenhum adenovírus competente para replicação (RCA) foi encontrado em qualquer um dos lotes de vacina do Sputnik V” e disse que um processo de purificação de quatro estágios evita a contaminação.
Segundo os pesquisadores, há quatro sistemas altamente eficazes de filtragem no processo de produção de sua vacina que impedem que vírus replicáveis façam parte do imunizante final. Nas normas técnicas, tanto do Instituto Gamaleya quanto do FDA (Federal Drug Administration), a agência americana de controle sanitário, admite-se a presença de vírus replicantes em várias fases da produção da vacina. A diferença é que no FDA o quantitativo é menor do que no Gamaleya. Mas, nenhum dos dois admite a presença de vírus replicantes no produto final, ou seja, na vacina. O Instituto Gamaleya garante que seu produto final é isento de vírus replicante.
A Anvisa leu os documentos enviados pelo instituto russo. Num ponto de um deles, em uma norma técnica, há a descrição da presença de vírus replicante. Questionado, o Instituto Gamaleya reafirmou que não se referia ao produto final. O instituto voltou a dizer que a vacina tinha zero de vírus replicante. Mesmo assim, a Anvisa insistiu em confundir a norma técnica teórica referente às fases de produção da vacina com o imunizante final. Por isso ela emitiu um laudo afirmando que a vacina era perigosa por conter vírus replicante. Isso levou a Anvisa a concluir que a vacina Sputnik V não podia ser usada pelos brasileiros. Não houve nenhum teste, feito ou solicitado pela Anvisa, para confirmar esta sua afirmação.
Como disse o governador da Bahia, Rui Costa, em entrevista nesta sexta-feira (30), a Anvisa, se estivesse convicta do que laudou, deveria fazer um alerta urgente à toda a comunidade cientifica internacional sobre os perigos da vacina Sputnik V para a saúde humana. Afinal, a Anvisa foi a única agência no mundo a fazer tal afirmação sobre uma vacina que teve seus resultados publicados em fevereiro na revista científica The Lancet.
A vacina Sputnik V já é usada em 62 países, mais de 20 milhões de pessoas já se vacinaram e nenhum evento relevante envolvendo o uso da vacina foi comunicado até hoje. Na opinião do governador baiano, a Anvisa só poderia ter certeza do que estava falando se tivesse feito, ou contratado laboratórios para fazer, testes biológicos em lotes aleatórios da vacina. A agência não fez isso. Ela baseou-se apenas na diferença entre as normas teóricas do Gamaleya e o FDA.
Com a alegação de que a agência só se baseia no que recebe de documentos, a Anvisa sustentou a posição de que não precisava mesmo fazer os testes. Só que o Instituto Gamaleya rebateu o laudo da agência sustentando em seus documentos, inclusive citados por Rui Costa, na entrevista, que a vacina Sputnik V é 100% pura, ou seja, não há a presença de vírus replicante. Mesmo assim, a direção da Anvisa decidiu vetar a importação do imunizante. Esta situação fez o governador indagar: “quem está dizendo a verdade?”
O consórcio de governadores do Nordeste e da Amazônia Legal decidiu importar a vacina da Rússia porque o governo federal não está se empenhando para comprar vacinas. Ao contrário, Bolsonaro está sabotando a compra de vacinas. Vamos lembrar que além da Pfizer, Bolsonaro se recusou a comprar até mesmo a CoronaVac, hoje a principal, vacina em uso no país.
Não fosse a pressão exercida pelo governo de São Paulo, que chegou a marcar data para o início da vacinação, à revelia do Planalto, até hoje a Anvisa não teria aprovado o seu uso no Brasil. Agora mesmo, a agência paralisou novamente as pesquisas do instituto paulista para uma nova vacina, a ButanVac. O Butantan novamente está botando pressão e já avisou que vai começar a produção do novo imunizante.
Isso tudo está ocorrendo em meio a uma forte campanha de Bolsonaro contra as vacinas. Alguma coisa só andou, principalmente com o trabalho hercúleo do Butantan, porque o país vive uma explosão de casos e mortes e há uma grave escassez de vacinas contra a Covid-19 no país, com 18 estados já em atraso na segunda dose da vacinação.
O epidemiologista e professor da Fundação Osvaldo Cruz, Eduardo Costa também questionou a conclusão da Anvisa no caso da vacina Sputnik V. “Discutir o que o adenovírus poderia fazer, se ele vai voltar a se replicar é uma bobagem, porque, na verdade, o vetor viral não é usado completo, já está modificado”, explicou Eduardo.
“Nesse caso é só um vetor (vírus) que foi modificado, inclusive com deleção da capacidade replicante, para levar uma proteína S do coronavírus. Esse é o processo básico que é usado nesta técnica de vetor viral, inclusive na da AstraZeneca que a ANVISA não questionou”, acrescentou. “Os adenovírus que servem de vetor já não têm capacidade de replicação”, prosseguiu o professor. “O que pode acontecer é que antes da purificação da vacina possa haver algum remanescente da cultura inicial, mas que deve desaparecer”, explicou.
O imunologista Jorge Kalil, especialista em vacinas da Universidade Federal de São Paulo e membro do Conselho de Monitoramento de Dados e Segurança do US National Institutes of Health, em entrevista à revista Science, discorda da interpretação da Anvisa. Ele acredita que os documentos de controle de qualidade russos estão, na verdade, se referindo à sensibilidade do teste. “Quando os russos dizem ‘menos de 100 partes por dose’, não estão dizendo se há vírus replicantes [na dose] ou não”, afirma ele. “O que eles estão dizendo é que, se houver vírus, eles estão [lá] em menos de 100 partes por dose.”
Já o médico sanitarista, pesquisador da área de leishmaniose e malária, Dilermano Fazito, afirma que a Anvisa apresenta “pretextos pinçados na documentação do Instituto Gamaleya para justificar ‘tecnicamente’ a negativa da autorização já decidida desde o começo”. “A Anvisa já autorizou o uso da vacina da AstraZeneca, que opera sob o mesmo princípio da Sputnik V e possui a mesma tecnologia de fabricação. Ambas utilizam o adenovírus como vetor de informação genética do vírus da Covid e ambas dependem da replicação do adenovírus para gerarem as proteínas virais necessárias à produção de anticorpos da pessoa vacinada”, disse o especialista. Como já dissemos antes, essas replicações na fase inicial da produção são necessárias para que a vacina possa ser produzida.
O governador Rui Costa também lembrou, em sua entrevista, que a Anvisa não zelou pelos critérios científicos rigorosos que diz adotar quando entrou na Justiça no início da pandemia contra o monitoramento do vírus nos aeroportos do país. “Nós não conseguimos entender quais foram os parâmetros científicos e de defesa da vida que fizeram com que a Anvisa entrasse na Justiça para impedir que estados e municípios monitorassem quem estava chegando com possível contaminação nos aeroportos, medindo a temperatura e oferecendo gratuitamente para as pessoas fazerem o teste do Covid”. “E a Anvisa lutou bravamente na Justiça para impedir”, contou Rui. “Talvez tenha sido a única agência mundial com obrigação de cuidar da saúde e que favoreceu a disseminação do vírus”, disse ele.
SÉRGIO CRUZ