Os crimes do cartel do bilhão contra o Brasil (9)
(HP 02/09/2015)
CARLOS LOPES
Entre 2003 e abril de 2015, o BNDES desembolsou para as atividades da Odebrecht no exterior um total de US$ 7.911.282.291 (sete bilhões, 911 milhões, 282 mil e 291 dólares), nada menos que 62,38% do que foi desembolsado para financiar serviços de engenharia de empresas brasileiras no exterior.
Há muito a dizer sobre as atividades da Odebrecht no exterior. Mas, hoje, nos limitaremos a um caso, que acaba de causar a condenação de três empresas do grupo por trabalho escravo de brasileiros em Angola e tráfico internacional de seres humanos.
O assunto é mais pertinente, considerando que a condenação das empresas Construtora Norberto Odebrecht, Odebrecht Serviços de Exportação e Odebrecht Agroindustrial ao pagamento de R$ 50 milhões aos trabalhadores atingidos, aconteceu quase ao mesmo tempo em que deputados do PT teciam loas ao sr. Marcelo Odebrecht.
Que destino o do deputado Luís Sérgio (PT-RJ), de trabalhador no Verolme a puxa-saco de um péssimo patrão, arrombador da Petrobrás, e, ainda por cima, escravocrata!
A sentença que condenou a Odebrecht, do juiz Carlos Alberto Frigieri, da 2a Vara do Trabalho de Araraquara, é modelar em todos os sentidos.
As empresas da Odebrecht, segundo a denúncia do Ministério Público, “arregimentaram de forma irregular (aliciamento, marchandage e tráfico internacional de seres humanos) e mantiveram trabalhadores prestando serviços em Angola, na Biocom – Companhia de Bioenergia de Angola Lda., em condições degradantes e indignas, desrespeitando direitos trabalhistas e cerceando a liberdade de ir e vir dos obreiros mediante violência (redução à condição análoga à de escravo), além de se beneficiar de forma irregular de financiamento do BNDES para aplicar nas obras de Angola em que os direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores eram violados”.
A Biocom (Companhia de Bioenergia de Angola) é uma sociedade da Odebrecht Angola com a Sonangol Holdings Ltda. – empresa do grupo estatal petrolífero Sonangol – e com uma empresa privada, a Cochan S.A., de um bilionário e general angolano, Dino Fragoso do Nascimento.
As empresas do Grupo Odebrecht contrataram outras empresas (Planusi e W. Líder) como intermediárias de mão de obra, além de subempreitar outra empresa, a Pirâmide.
“De acordo com o que informou o Sr. Paulo José da Silva, um dos sócios da W. Líder”, relata o juiz Frigieri, “esta foi instituída para executar serviços na Biocom de Angola e, embora figurasse como empregadora formal/aparente, não tinha poder de mando sobre seus contratados, que estavam subordinados por força contratual aos 3 ou 4 empregados da Planusi, tendo, assim, a única função de contratar e fornecer mão de obra para montagem do sistema de tratamento de caldo e fabricação de açúcar da Biocom, com previsão contratual expressa de que a W. Líder, fornecendo mão de obra, aceitaria a condição de que a Planusi seria responsável pela coordenação e orientação na execução dos serviços, bem como responsável pela representação da Biocom, podendo a Biocom, por intermédio da Planusi, exigir a contratação de mais empregados se houvesse atraso na conclusão dos serviços”, registra a sentença.
Isso caracteriza o crime de “marchandage”, reconhecido no Brasil desde 1948, quando o país assinou a Declaração de Filadélfia (anexo da Constituição da OIT). Trata-se da proibição de que o trabalho, independente de seu objetivo, seja considerado mercadoria.
Como define o juiz Carlos Alberto Frigieri: entende-se “por ‘marchandage’ a ação do ‘merchandeur’ (intermediário de mão de obra) que obtém lucro oferecendo o único elemento de que ‘dispõe’: a mão de obra alheia, transformando o trabalhador em mercadoria. Seu ‘lucro’ constitui a diferença retirada do que lhe paga o tomador dos serviços ao que paga ao trabalhador explorado”.
O que foi revelado é que a Odebrecht ofereceu mão de obra à Biocom através das empresas que contratou.
Os trabalhadores foram recrutados em Américo Brasiliense (SP), mas provinham de várias partes do Brasil.
Alguns trechos da sentença do juiz Frigieri:
“Parece-me certo que, embora prestem serviços em localidades diversas das suas (trabalham onde há obra em que seus serviços sejam necessários em cidades e até Estados diversos dos seus), poucos trabalhadores se arriscariam a deixar a segurança de seu país, onde estão sua família e seus amigos, para trabalharem num país desconhecido, distante e que tenha saído recentemente de uma guerra civil, a não ser que houvesse a promessa de ganhos vantajosos, além de segurança em múltiplos aspectos.
“Conclui-se, portanto, que os trabalhadores brasileiros que prestaram serviços em favor do grupo [Odebrecht], que tem a Biocom/Angola como uma de suas integrantes, foram atraídos pelas condições, explícitas ou implícitas, oferecidas pelos empregadores, entre elas as de que providenciariam os documentos necessários para que os trabalhadores se ativassem de forma legal e regular no país estrangeiro, observando rigorosamente sua legislação, proporcionando segurança física e psicológica e um mínimo de conforto, transporte adequado e gratuito, direito de ir e vir pelo porte de documentação idônea, local de trabalho em que fossem observados com rigor os parâmetros da legislação mais benéfica quanto à medicina e segurança do trabalho, local adequado para pernoite, banheiros limpos para higiene pessoal e necessidades fisiológicas, além de refeitório asseado e alimentação compatível com os hábitos brasileiros, tudo objetivando a cumprir as promessas fundamentais da Constituição quanto à ‘dignidade da pessoa humana’ e dos ‘.valores sociais do trabalho.’ (art. 1o, incisos III e IV da Constituição).”
Foram esperanças vãs e frustradas, como demonstraram as provas apresentadas pelo Ministério Público:
“As imagens gravadas e especialmente os vídeos (vídeo banheiro 1 do CD de documentos), demonstram que (…) as condições de trabalho eram degradantes, com banheiros sujos e alagados, vasos sanitários sujos e alguns entupidos, falta de papel higiênico em todos os boxes de vaso sanitário e alguns com a caixa de água de descarga danificada, não parecendo verdadeira a afirmação das testemunhas trazidas pela ré [Odebrecht] de que na época em que as imagens foram captadas havia 3 equipes de limpeza trabalhando por 24h.
“A condição dos banheiros obrigou alguns trabalhadores, que não queriam correr o risco de contaminação por bactérias, a utilizarem o matagal próximo ao alojamento, como demonstra o vídeo ‘fezes no mato’ do CD de documentos.
“Também não parece harmônico com o contexto das provas a alegação defensiva de que alguns trabalhadores teriam promovido maliciosamente a desordem, já que todos os vasos captados nas imagens estão sujos, sendo possível visualizar crostas de sujeira que só se acumulam quando permanecem sem higiene por um longo período.
“Pelo vídeo ‘rato no restaurante’ do CD de documentos, que contradiz o depoimento da primeira testemunha trazida pela ré [Odebrecht], percebe-se nitidamente que os refeitórios não tinham condições mínimas de higiene, havendo moscas e ratos”.
No entanto, a alegação da Odebrecht foi que “a Biocom estava instalada no meio da floresta/selva angolana”. Portanto, presume-se, seriam normais essas condições.
Ao que o juiz rebate que “se insere no risco econômico da atividade e no risco da atividade econômica da empresa tomar medidas eficientes para que o ambiente de repouso, preparação e consumo das refeições seja asseado e descontaminado, inclusive como medida preventiva de doenças”.
Um capítulo especialmente interessante do processo foi a defesa da Odebrecht. Por exemplo:
“As fotos juntadas pela defesa, todas tiradas no mesmo dia, 16 de junho de 2014 (período da Copa do Mundo de Futebol no Brasil), além de não refletirem as reais condições do início dos trabalhos, como já se disse, retratam, aparentemente, trabalhadores do setor administrativo, que talvez não se alimentassem no mesmo horário ou até no mesmo local dos trabalhadores da obra, que normalmente usam uniforme tipo macacão que, na maioria das vezes está sujo, podendo ser visualizado nas fotos que os obreiros usavam roupas sociais limpas. Cogitei tratar-se, o momento captado pelas fotos, o do horário de jantar, mas percebi a angulação solar e me convenci de que se tratava da metade do dia, parecendo-me, ainda, que o ambiente foi montado para que a fotos fossem feitas.
“De qualquer forma, as referidas fotos, contrariando o depoimento da primeira testemunha ouvida, demonstram a reduzida dimensão do refeitório, insuficiente para receber mais de 300 trabalhadores para três refeições diárias (café da manhã, almoço e jantar), ressaltando-se que a grande maioria cumpria os mesmos horários de entrada e de saída, como evidenciam os controles de ponto.
“O vídeo ‘mudança água’, também do CD de documentos, demonstra que havia uma situação persistente quanto às más condições da água potável, tornando evidente que houve uma revolta dos trabalhadores durante uma reunião com o superior hierárquico, que, como preposto das empregadoras e das tomadoras de serviço, prometeu melhorias, inclusive com o fornecimento de copos descartáveis, percebendo-se, ainda, que em tal concentração de trabalhadores foi relatada a preocupação com a atitude da médica do local que, aparentemente, estaria deixando de comunicar à chefia o número elevado de pessoas que estavam adoecendo, provavelmente vítimas das precárias condições de higiene dos alojamentos (vide fls. 324/456 do arquivo “inquérito civil 680.2013” que indica o aumento significativo de febre fifoide de trabalhadores que retornaram de Angola para Américo Brasiliense, segundo documentos oficiais, com cópia de exames feitos junto ao Instituto Adolfo Lutz).
“… ao conduzir trabalhadores para laborar em outro país, todas as empresas envolvidas na atividade (proprietárias, tomadoras de serviço, empregadoras diretas etc.) assumiram o ônus (risco da atividade econômica) de proporcionarem um ambiente de trabalho condizente e com um mínimo de conforto, de modo a preservar a dignidade dos trabalhadores.
“… é evidente que a conduta (omissão/negligência) das reclamadas ao não oferecerem condições adequadas de alojamento (higiene e saúde) no local de trabalho para cidadãos brasileiros que conduziu para Angola e em relação aos quais tinha ampla responsabilidade de guarda e de segurança, importou não apenas em descumprimento das normas mínimas de higiene, saúde e segurança do trabalho, causando, também, humilhação e sofrimento íntimo, especialmente porque tais obreiros se encontravam longe de suas casas, provocando uma sensação de abandono, implicando em violação aos direitos fundamentais de um grupo de trabalhadores, atingindo princípios basilares do Estado Democrático de Direito preceituados na Constituição da República, dentre eles, os da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho (art. I, III e IV, da CF).
“Houve, portanto, trabalho, prestado sem as garantias mínimas de saúde e higiene, respeito e alimentação, evidenciando-se o trabalho degradante, inserido no conceito de trabalho na condição análoga à de escravo.”
O mais cruel é que os trabalhadores não podiam voltar para o Brasil, pois seus passaportes foram confiscados ao chegar a Angola.
Mais alguns trechos da sentença:
“… demonstrou-se que os trabalhadores tinham seus passaportes recolhidos quando chegavam em Angola, fato confirmado pelo proprietário da W. Líder e da Pirâmide.
“Na sequência, esses passaportes eram repassados a um representante da Biocom, relatando os depoentes que alguns obreiros passaram por situação tensa, quanto aos passaportes, necessitando, inclusive, de salvo-conduto para deixar o país, bem como a não disponibilidade de condução aos trabalhadores da W. Líder.
“O proprietário da CML – Caldeiraria, Mecânica e Locação Ltda., Sr. Enoque Pedro de Alcântara declarou que a polícia angolana parava com frequência os estrangeiros, exigindo passaporte.
“O vídeo ‘apreensão passaporte suborno’ do CD de documentos demonstra que não era tranquilo o tráfego dos trabalhadores fora do alojamento, sendo que um deles, que não recebeu seu passaporte enquanto estava em território angolano, ficou retido quando retornava ao aeroporto para voltar ao Brasil, sendo necessário que o grupo de obreiros que o acompanhava arrecadasse entre si o valor de duzentos dólares para pagar a propina exigida pelo policial angolano para liberá-lo, conforme vídeos ‘suborno e suborno 1’.
“Pelo vídeo ‘motorista sem habilitação’ do CD de documentos, foi possível constatar que a reclamada [Odebrecht] não disponibilizava sequer motorista com habilitação válida no território angolano para transportar os trabalhadores, colocando-os em risco, sem contar o transtorno e a tensão pela qual passaram no posto policial.
“… não há prova de que os trabalhadores que se ativaram em Angola com vistos ordinários, receberam ou tiveram liberados em algum momento, mesmo posteriormente, seus vistos de trabalho, havendo total silêncio da defesa quanto a esse fato, evidenciando que uma coletividade de obreiros se ativou de forma irregular em país estrangeiro, como se depreende, inclusive, do depoimento do sócio da Planusi, ao afirmar que o trabalhador não obtinha visto de trabalho e quando vencia o prazo de validade do visto ordinário, tinha que retornar ao Brasil para obter novo visto, ordinário.
“Há, assim, dúvidas que permanecem sem respostas: sendo a Biocom uma obra que o Governo Angolano considerava de interesse público, como várias vezes ressaltou a contestação, sem contar o bom relacionamento dos representantes do Grupo Odebrecht com os dirigentes daquele país, por quê o órgão responsável não agilizou a concessão dos vistos de trabalho aos profissionais brasileiros especializados, cujos serviços se destinavam a colaborar na execução de uma obra de interesse público, que auxiliaria na reconstrução do país destruído por uma Guerra Civil?
“Por quê o visto ordinário foi solicitado sob o argumento de que os trabalhadores tratariam de negócios, como evidenciam os documentos, com duração de apenas 30 dias?
“Quantos trabalhadores tiveram o visto de trabalho concedido pelo Estado Angolano?
“Essas indagações, até aqui sem respostas plausíveis, somadas aos fatos acima comprovados, nos levam a aceitar a conclusão de que a única razão que emerge das condutas acima descritas era a de que era proposital a manutenção de trabalhadores brasileiros em território estrangeiro em situação precária quanto a vistos, circunstância que, por certo, proporcionava maior poder sobre esta fonte de trabalho, parecendo haver interesse da Biocom/Odebrecht ter permanentemente à disposição mão de obra especializada cativa, completamente dominada, com pouca ou nenhuma capacidade de resistência, eis que mantidos de forma ilegal em país estrangeiro”.