Revista Nature adverte que alegações tóxicas estão minando a cooperação internacional frente à pandemia
O diretor de emergências sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS), Mike Ryan, advertiu que a busca pela origem do coronavírus está sendo “envenenada pela política”.
A declaração se segue à ordem emitida pelo presidente norte-americano, Joe Biden, aos serviços secretos do seu país, para que determinem em “90 dias” a suposta origem do vírus (por animal ou por ‘vazamento de biolab’).
“Gostaríamos que todos separassem, se puderem, a política da ciência”, disse o especialista irlandês, que lamentou que nos últimos dias têm surgido informações na mídia “com muito poucas notícias ou evidências verdadeiras”.
“Cada país é livre para defender a suas próprias teorias sobre a origem”, disse, alertando que é preciso espaço para os cientistas trabalharem e que “a situação atual” coloca a OMS numa posição difícil na procura de respostas.
A ordem de Biden se segue a vazamento, para a mídia norte-americana (Wall Street Journal e CNN), por “fontes anônimas” da inteligência dos EUA – leia-se CIA – de que uma ‘nação parceira’ teria a informação [também de uma ‘fonte anônima] de que “três cientistas” do laboratório de Wuhan teriam ficado tão doentes que precisaram de hospitalização em novembro de 2019, o que poderia ser “Covid ou uma gripe comum”.
Após o press-release da CIA, os jornais norte-americanos passaram a dizer que o suposto caso dos “três cientistas hospitalizados” trazia de volta a hipótese de o vírus ter ‘saído’ do biolaboratório de Wuhan, o que culminou no anúncio de Biden dos “90 dias”.
A decisão de Washington foi repudiada pela China, que desmentiu que quaisquer funcionários do biolab de Wuhan tivessem adoecido em novembro, como alega a fake news proveniente dos serviços secretos norte-americanos.
A hipótese de início da pandemia ‘por vazamento de um biolab’ foi considerada “extremamente improvável” pela comissão independente da OMS, composta de especialistas de vários países, que foi à China estudar in loco por quatro semanas a questão, esteve no biolab de Wuhan, entrevistou seus cientistas e reviu procedimentos.
A OMS, inclusive, teve acesso aos exames sorológicos de todos os cientistas e funcionários do biolab de Wuhan, que comprovam a falsidade da alegação.
A comissão de alto nível da OMS concluiu que a hipótese mais provável da origem do coronavírus era um animal selvagem ainda não confirmado, a partir do qual foi transmitido aos humanos por uma ou mais espécies intermediárias.
Ryan reiterou que é preciso empenho na “cooperação e solidariedade” para vencer a pandemia. Por sua vez, a epidemiologista Maria van Kerkhove, líder técnica da resposta à Covid-19 na OMS, advertiu que a politização “torna as coisas difíceis” e convocou a “deixarem os cientistas continuar a trabalhar”.
Conforme Ryan, a OMS e seus Estados-membros estão preparando a próxima fase de investigação das origens do coronavírus, mas ao contrário dos 90 dias exigidos por Biden, destacou que “serão necessárias muitas missões para elucidá-las, se é que alguma vez se conseguirá”.
Como se sabe, jamais foi estabelecido com precisão a origem da pandemia de 2018, que passou para a história como a ‘gripe espanhola’. Nem a da Aids. No caso da ‘gripe espanhola’, há fortes indícios de que teve inicio nos EUA e se espalhou a partir da entrada norte-americana na I Guerra Mundial.
Já é muito estranho que seja o Pentágono que ‘pesquise’ vírus letais, no mundo inteiro, com uma rede de 200 biolabs, e fica ainda mais esquisito quando chamam a CIA para dar ‘pareceres’ sobre a pandemia.
ROTEIRO TOSCO
Para quem viveu a campanha de desinformação que preparou o clima para a invasão do Iraque nos anos 2000, capitaneada pelo governo dos EUA, sob o pretexto das ‘armas de destruição em massa de Sadam’, o atual e tosco roteiro da “arma biológica de destruição em massa chinesa (o vírus da Covid-19)” parece um plágio cínico e insanamente irresponsável.
Na época, a ‘nação amiga’ fonte das ‘denúncias das armas de destruição em massa do Iraque’ chegou a ser identificada, a Inglaterra. Coube ao New York Times carimbar com suas chamadas de capa a ‘credibilidade’ das acusações, e logo só se falava nos EUA das “armas biológicas portáteis de Sadam acionáveis em ’45 minutos’”.
Condolleeza Rice tirou da cartola a ameaça da ‘nuvem em forma de cogumelo nuclear’ e o toque final ficou por conta da performance do ex-general e secretário de Estado Colin Powell, com um vidrinho de ‘antraz’, na ONU.
Agora, que faz parte da história que as ‘armas de destruição de massa’ de Sadam eram inexistentes, também faz parte da história que isso não impediu que, ao insistir na criminosa trama, os EUA só tenham apressado sua decadência e de seu ‘mundo unipolar’. Questão sobre a qual, atualmente, quase ninguém tem dúvida (em que pese o martírio a que o povo iraquiano foi submetido).
Também não é segredo para ninguém que o establishment norte-americano considera a China o maior obstáculo à continuação do seu controle sobre o planeta. No lugar do racismo explícito de Trump do ‘vírus chinês’, a convocatória de Biden de ’90 dias aos epidemiologistas da CIA’.
SABOTAGEM AO COMBATE À PANDEMIA
O que se torna ainda mais grave quando o essencial no momento é unir todos os povos para conter a pandemia, distribuir com igualdade as vacinas e reconstruir as economias.
Questão recentemente levantada pela conceituada revista científica britânica Nature, que advertiu que as alegações de políticos dos EUA de que o vírus da COVID-19 escapou de um laboratório chinês estão tornando mais difícil para as nações colaborarem em acabar com a pandemia e alimentando o bullying online.
“Mesmo sem fortes evidências de sustentação”, pedidos para investigar laboratórios chineses atingiram um auge nos Estados Unidos, disse o artigo, acrescentando que o tom em que são apresentados pode frustrar os esforços de estudar a origem do vírus, o que requer uma investigação completa e independente.
“A retórica em torno de um suposto vazamento de laboratório tornou-se tão tóxica que está alimentando o bullying online de cientistas e o assédio anti-asiático nos Estados Unidos, bem como ofendendo pesquisadores e autoridades na China cuja cooperação é necessária”, enfatizou a revista britânica.
A Nature enfatizou que, para conter a pandemia e preparar o mundo para surtos futuros, são necessárias ações incluindo a expansão da distribuição de vacinas e reforma das regras de biossegurança.
“Mas tais medidas requerem um amplo consenso entre os países poderosos”, sublinhou Amanda Glassman, especialista em saúde global do Centro para Desenvolvimento Global em Washington.
“Precisamos ter uma perspectiva geral e focar nos incentivos que nos levem aonde queremos ir”, disse ela. “Uma abordagem de confronto piorará as coisas”, alertou.
As crescentes demandas e alegações estão contribuindo para “uma cisão geopolítica em um momento em que a solidariedade é necessária”, reiterou um pesquisador de dos principais think tanks dos EUA, o Conseil of Foreign Relations, David Fidler, especialista em saúde pública global.
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