O Sintaema (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo), uma das principais entidades que se encontra à frente da mobilização contra a privatização da Sabesp – pretendida pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas –, divulgou esta semana um documento mostrando a experiência da privatização de serviços públicos pelo mundo e como diversos países e municípios decidiram retomar esses serviços ao controle estatal.
Mostrando “por que EUA, França, Reino Unido e Alemanha reestatizaram os serviços de água e esgoto”, a entidade faz um alerta sobre a contradição entre universalização de serviços tão essenciais como água e tratamento de esgoto e a sua exploração por empresas privadas, incluindo ainda outros serviços essenciais, como energia, coleta de lixo e transporte público.
Os dados constam em artigo do Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda, intitulado Recuperação de serviços públicos: como as cidades e os cidadãos estão voltando atrás na privatização. De acordo com a pesquisa, “nos últimos 20 anos [de 2000 a 2019], foram realizadas 835 reestatizações de serviços essenciais no mundo”.
Conforme o artigo, os 37 países que reestatizaram seus serviços de água e esgoto apontam que as quebras ou não renovações dos contratos ocorreram após “constatarem o aumento abusivo das tarifas de água e o fato de que promessas de universalização não foram cumpridas”. Outro motivo apontado para a reestatização foi “o avanço de problemas com transparência e dificuldade de monitoramento do serviço pelo setor público”.
“ONDA DE REESTATIZAÇÃO”
“A reestatização é particularmente vibrante na Europa. Cerca de 347 casos foram encontrados na Alemanha, 152 casos na França, 64 no Reino Unido e 56 na Espanha. As poderosas ondas de reestatização ocorridas no setor de energia na Alemanha ou no setor de água na França são apenas as manifestações mais visíveis de uma tendência mais profunda. Esse movimento de reestatização na Europa pode ser visto como uma resposta às políticas de austeridade, uma reação contra os excessos da liberalização e aquisição corporativa de serviços básicos”, diz trecho do documento.
“A Catalunha experimentou sua primeira reestatização da água em 2010, na cidade de Fígaro. Sete anos depois, a porta da remunicipalização (ou municipalização considerando que a água nunca foi gerida publicamente em alguns lugares) está agora aberta, e cerca de 3,5 milhões dos 7 milhões de habitantes da Catalunha, incluindo os barcelonenses, podem ver uma mudança no seu modelo de gestão da água durante os próximos anos. Isto é uma oportunidade de avançar na gestão da água como um bem comum, em uma forma mais democrática, que garanta o direito à água para todos, assegurando as necessidades mais básicas das pessoas e a preservação dos ecossistemas aquáticos. A tendência de remunicipalização da água na Catalunha faz parte de uma tendência em toda a Espanha, que continua, apesar do conservadorismo e dos esforços do governo central para impedi-lo”, pontua o texto.
“BIG SIX” E PREÇOS ABUSIVOS
A reestatização raramente é apenas uma mudança de propriedade ou gestão, nem é um simples regresso à situação pré-privatização. A reestatização é fundamentalmente sobre a construção qualitativa de melhores serviços públicos. Primeiro, muitas vezes trata-se de recriar ou reintroduzir um caráter público e um compromisso com o acesso universal, em oposição à perspectiva comercial e lucrativa dos provedores privados. Isso significa, por exemplo, garantir que um serviço seja entregue em uma cidade inteira ou em uma nação inteira, e não apenas naquelas áreas onde os serviços são mais lucrativos”.
“O movimento pela reestatização na Catalunha foi impulsionado, em grande parte, pela resistência contra despejos e cortes de água e eletricidade após a crise financeira global na Espanha. A criação de empresas municipais de energia no Reino Unido (…), que agora servem uma área com uma população de 2,2 milhões de pessoas, foi igualmente impulsionado pelas políticas abusivas de preços dos “Big Six”, as empresas que controlam o mercado de energia do Reino Unido”.
EMPRESAS PRIVADAS E LUCRO
Para Edson Aparecido, secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), “não dá para achar que no Brasil teremos algo diferente disso”. “As reestatizações são uma tendência e estão crescendo (…) a priorização de lucros das empresas privadas é, na maior parte das vezes, conflitante com a execução de serviços de que a sociedade depende”.
“Já está comprovado que não é a privatização desses serviços que vai enfrentar os desafios da universalização do acesso. Isso porque as áreas que mais sofrem com a falta de saneamento básico são as periferias, as áreas rurais e as comunidades. E são justamente nessas áreas que o setor privado não tem interesse em atuar pelo motivo de que essas populações não correspondem às expectativas de lucro que as empresas privadas de saneamento esperam ter ao ofertar o serviço”, explicou Edson ao Sintaema.
Entre os 37 países, e os já citados, Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela, Honduras e Jamaica também retornaram a água e o saneamento ao controle do estado. Segundo o relatório, nos Estados Unidos, “referência quando o assunto é privatização, 67 serviços foram reestatizados nos últimos anos”. Essas reversões incluem serviços de água e de energia em cidades como Nova York, Flórida, Havaí, Minnesota, Texas e Indiana.
A França, conforme o relatório, reestatizou o saneamento em 106 cidades, além de outros serviços, como transporte público, em 20 municípios. O dado mais importante é o de Paris, que teve seus serviços de água e esgoto de volta às mãos do estado em 2008, e até hoje permanece assim.
“Este estudo inclui uma lista de (re)municipalizações e (re)nacionalizações que está longe de ser completa. Esta lista como está agora é apenas um primeiro passo. Há muitos mais casos em todo o mundo que não conseguimos identificar ainda, por falta de tempo e recursos. Mas como tal ilustra os pontos que queremos destacar: primeiro, que há uma forte tendência de reestatização na Europa e no mundo, e que diz respeito a todos os setores de serviços públicos, em graus variados; e, em segundo lugar, que esta tendência de reestatização não apenas reflete as muitas falhas das políticas de privatizações e de austeridade, mas também conduz a uma melhoria genuinamente de serviços públicos de qualidade – o tipo de serviço público de que precisamos para lidar com os desafios de hoje. Isso é particularmente evidente no setor de energia, onde (re)municipalizações estão conduzindo a transição para energias renováveis acessíveis baseadas em sistemas de energia eficientes”.