“Os cadáveres estavam por toda parte – nas ruas, dentro das casas e nos portões de muitas casas”, disse a sudanesa Fátima Yahya à Al Jazeera. “Onde quer que você esteja em el-Fasher, você verá cadáveres espalhados”, ela apontou, após sobreviver à tomada da capital do estado de Darfur do Norte pelos paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), e alcançar a pé a cidade de Tawila, a 70 quilômetros a oeste. Uma entre 70 mil refugiados em fuga, em mais um tenebroso episódio da guerra civil que assola o Sudão desde 2023.
“Houve muitos bombardeios”, disse à agência de notícias árabe Fatima Abdulrahman. “Eu mesmo fui atingida por projéteis. O bombardeio matou minha filha, feriu o olho da minha outra filha e paralisou meu filho. Meu corpo está cheio de feridas e está inchado.”
Segundo a ONU, mais de 2000 civis foram mortos em e-Fasher com requintes de brutalidade em uma semana, entre eles, 460 que estavam no Hospital Saudita. El Fasher, que tinha mais de um milhão de habitantes antes da guerra civil, havia sido reduzida pelo cerco a 260 mil pessoas, metade delas, crianças. Já são 650 mil os refugiados em Tawila.
O cerco durou 18 meses, com a população sendo forçada a comer gramíneas para gado por falta de comida, sob bombardeios incessantes. As RSF transformaram a cidade numa armadilha letal, cercando-a com um muro de terra.
No domingo, o papa Leão XIV x se juntou à crescente condenação internacional da morte e destruição em el-Fasher, denunciando “violência indiscriminada contra mulheres e crianças, ataques a civis desarmados e sérios obstáculos à ação humanitária”. Ele pediu um cessar-fogo imediato e a abertura de corredores humanitários.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, manifestou “profunda preocupação” com a escalada da violência militar no Sudão e apelou a um cessar-fogo imediato, ao fim do cerco à cidade e ao acesso seguro e irrestrito à ajuda humanitária. Ele exigiu, ainda, o cumprimento da Resolução 2736 do Conselho de Segurança, que determina o levantamento do cerco, a proteção dos civis e a responsabilização pelos crimes cometidos.
“A situação é simplesmente horrível”, disse Martha Ama Akyaa Pobee, secretária-geral adjunta das Nações Unidas para a África, em uma sessão de emergência do Conselho de Segurança na quinta-feira passada.
Ela disse que o Escritório de Direitos Humanos da ONU recebeu relatos confiáveis de assassinatos em massa, execuções sumárias e buscas de casa em casa enquanto civis tentavam fugir, bem como vídeos mostrando “dezenas de homens desarmados sendo baleados ou mortos, cercados por combatentes da RSF que os acusam de serem combatentes [do exército sudanês]”.
LIMPEZA ÉTNICA SISTEMÁTICA E ASSASSINATO
“O que está acontecendo na cidade de el-Fasher não é um incidente isolado”, disse Al-Harith Idriss Al-Harith Mohamed, embaixador do Sudão na ONU, ao Conselho de Segurança. “Em vez disso, é uma continuação de um padrão sistemático de assassinato e limpeza étnica que esta milícia realizou desde sua rebelião em abril de 2023.”
“Mulheres e meninas são atacadas em plena luz do dia”, disse ele, acrescentando que o Sudão está se perguntando “Onde está o Conselho de Segurança?”
O embaixador sudanês pediu à ONU que condene as ações das RSF, exija que o grupo paramilitar deixe el-Fasher, imponha um embargo de armas de um ano relacionado ao conflito e sancione quaisquer forças externas que apoiem as RSF.
A Arábia Saudita expressou “profunda preocupação” com as graves violações dos direitos humanos e instou as RSF a proteger os civis. O Egito pediu uma trégua humanitária imediata e prometeu apoio contínuo para ajudar o Sudão a superar a crise.
A Turquia exigiu o fim das hostilidades em el-Fasher e uma passagem segura para a ajuda humanitária, ao mesmo tempo em que condenou as “atrocidades contra civis” e pediu diálogo para uma solução pacífica. Egito, Turquia e Catar reafirmaram seu apoio à unidade e soberania do Sudão.
A captura de El Fasher, a última grande cidade remanescente em Darfur controlada pelo exército, dá ao grupo paramilitar o controle sobre todas as cinco capitais estaduais de Darfur. O exército agora está excluído de um terço do território sudanês, o que, para especialistas, ameaça o país com outra partição. Personalidades acusam os Emirados Árabes Unidos de financiarem e armarem as RSF.
O MASSACRE DO HOSPITAL
A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que 460 pacientes e afiliados foram mortos no Hospital Saudita em el-Fasher no início desta semana. O diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que a OMS está “profundamente chocada” com os relatórios.
Hiba Morgan, da Al Jazeera, relatando de Cartum, disse que “o vídeo mais recente e perturbador que veio à tona foi o dos combatentes perambulando pelo que foi identificado como o Hospital Saudita em el-Fasher, executando pacientes”, disse Morgan. Entre os mortos estavam profissionais de saúde, acrescentou.
Também a Rede de Médicos do Sudão disse que os combatentes da RSF na terça-feira “mataram a sangue frio todos que encontraram dentro do Hospital Saudita, incluindo pacientes, seus acompanhantes e qualquer outra pessoa presente nas enfermarias”.
EXECUÇÕES EXIBIDAS NAS REDES SOCIAIS
O portal Middle East Eye analisou os vídeos dos massacres, disponíveis nas redes sociais, postados pelos próprios facínoras. “Olhem para essa multidão. Alcancem as meninas que estão na frente”, diz um combatente em um vídeo, enquanto tiros ecoam ao fundo e dezenas de pessoas parecem fugir. “Eu juro por Deus, saqueiem, saqueiem!”, grita um combatente.
Em outro vídeo, uma caminhonete atropela pessoas que fogem em um campo. Depois que duas pessoas vestidas à paisana param, vários combatentes saem do veículo e começam a pegar seus pertences. “Você, venha aqui, vai se f….. cala a boca. Venha aqui, não corra, filho da p…. Traga o que você tem. Onde você está colocando a mão? Mate-o agora mesmo”, diz um combatente.
A vítima responde: “Eu juro por Deus que não tenho nada.” “Vamos acabar com eles. Acabem com eles”, diz um combatente enquanto um deles, que parece ser um adolescente, atira em um homem depois de roubá-lo.
Um terceiro vídeo gravado em um campo mostra combatentes das RSF caminhando entre pelo menos seis corpos. “Civil e você quer ir embora? De jeito nenhum!”, grita um combatente.
Em um vídeo, dezenas de homens são vistos sentados no chão, cercados por combatentes, que repetidamente os chamam de “escravos”.
Em outro vídeo, combatentes dizem a seis homens detidos, que estão em trajes civis, mas se identificam como soldados, que podem fugir. Assim que os homens começam a correr, os homens armados abrem fogo contra eles, matando pelo menos três.
Em outro vídeo, vários combatentes estão sobre um grupo de corpos em uma trincheira, descrevendo-os como “nosso alvo”.
O SANGUINÁRIO ABU
Uma figura que aparece repetidamente é um comandante das RSF com cabelos longos, barba e um lenço claro, registra o MEE. “Um combatente se dirige a ele como Abu Lulu, e sua aparência corresponde à do Brigadeiro-General Al-Fatih Abdallah Idris, um oficial das RSF que usa esse nome de guerra. Abu Lulu já possui um histórico de crimes de guerra cometidos em vídeo. Uma conta no TikTok atribuída a ele tem 144.300 seguidores.”
“Em agosto, ele foi visto nos arredores de el-Fasher interrogando um prisioneiro sobre sua identidade étnica, antes de disparar sete tiros contra ele à queima-roupa.”
“Ele também foi visto em vídeos da refinaria de petróleo de al-Jalili, ao norte de Cartum, em março de 2024, com a mídia local sugerindo que ele estava envolvido na execução de prisioneiros. Ele também foi acusado de matar detentos e civis em Um Sumayma, no Cordofão do Norte, e em el-Fula, no Cordofão Ocidental.”
Em el-Fasher, o homem que parece ser Abu Lulu continua essa tendência, acrescenta o portal. Em um vídeo, ele está em pé diante de 10 homens sentados no chão, que imploram para que ele não atire neles.
“Não tenho tempo para brincadeiras”, diz ele. “Olha, só temos duas opções: vitória ou martírio. A opção é lutar conosco até o fim para que você morra na base militar, ou aqui.”
Ele então abre fogo contra os prisioneiros, que aparentemente são todos mortos por Abu Lulu e seus homens.
WASHINGTON, LONDRES E DUBAI
Um porta-voz do Departamento de Estado disse à Newsweek que os Estados Unidos “continuam a se envolver com nossos parceiros do Quad [Emirados, Arábia Saudita e Egito] para coordenar esforços para alcançar uma paz duradoura no Sudão”, conforme a declaração de 12 de setembro. “Esses compromissos se concentram em garantir uma trégua humanitária, estabelecer um cessar-fogo permanente, promover uma transição para a governança civil e interromper o apoio externo que alimenta o conflito.”
Esse pelo menos é o discurso. Há quem prefira citar um encontro entre Trump e o xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, vice-primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos e proprietário do Manchester City Football Club, em que, com a contumaz desfaçatez, o presidente dos EUA elogiou o feudal: “dinheiro ilimitado”. Foi quando da proclamação do acordo de trégua em Gaza.
Não é muito diferente em Londres, onde Jenny Chapman, uma baronesa britânica e ministra das Relações Exteriores, se disse “preocupada” e solicitou aos paramilitares sudaneses que “honrassem seus compromissos de proteger os civis”.
Vieram a público evidências de que equipamentos militares britânicos comprados pelos Emirados Árabes Unidos foram usados no Sudão.
E o Sudão tem ainda outros defeitos – como a ligação de anos com a China e os crescentes vínculos com a Rússia. Além do petróleo, do ouro e da estratégica posição no Chifre da África
UM DOS “SETE PAÍSES MUÇULMANOS EM CINCO ANOS”, DISSE WESLEY CLARK
Em 2019, um levante popular no Sudão, que teve como estopim a alta do preço do pão imposta pelo FMI, pôs fim ao regime de Omar al Bashid, e por um breve período foi iniciada uma transição, com a participação dos movimentos civis, dos generais que depuseram o antigo governo e um primeiro-ministro civil. Uma transição em que ficou notória a interferência de Washington, a ponto de exigir o reconhecimento de Israel.
Até que as contradições internas conduziram ao afastamento do primeiro-ministro em 2021 e, posteriormente, ao rompimento entre os dois líderes militares. Um, o general do exército BBBB, e o outro, o comandante Mohammed Hamdan Dagalo (vulgo Hemedti), da antiga milícia Janjaweed, renomeada como Forças de Apoio Rápido, cujo peso derivava dos anos de combate aos movimentos de secessão em Darfur, além do controle das minas de ouro ilegais.
Hemedti chegou a encenar ser “mais próximo” do movimento civil, fantasia que rasgaria pouco depois. A ruptura partiu dele, que chegou a tomar boa parte da capital do Sudão e da segunda maior cidade, Ondurmã, em abril de 2023. Apenas em 2025 o exército reconquistou totalmente Cartum.
Durante mais de duas décadas, os EUA promoveram a divisão do Sudão em Norte e Sul – este, rico em petróleo – e, posteriormente, insuflaram o separatismo no oeste do país, além de terem submetido a nação africana a sanções incapacitantes
De acordo com as revelações em 2003 o ex-comandante dos EUA na Europa, general Wesley Clark, as desventuras do Sudão podem ter tido início quando ele foi informado, ao chegar no Pentágono, durante o governo de W. Bush e nove dias após o 11 de Setembro, que o plano era “invadir sete países muçulmanos em cinco anos”. O Sudão estava entre eles. “Começava no Iraque, e depois Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e, a terminar, Irã”, disse Clark.
É famosa a entrevista em que Clark relata isso. Até hoje, só o Irã escapou. Clark relatou a conversa que teve com um oficial militar superior em Washington que revelou as ambições mais vastas do governo W. Bush. “Tomamos a decisão: vamos para a guerra com o Iraque“, ter-lhe-á dito o oficial.
“Porquê?”, terá perguntado Clark de volta. “Não sei. Se calhar eles não sabem o que fazer mais”, foi a resposta que recebeu, apesar de não existirem quaisquer provas de mão iraquiana no 11 de setembro.
E Clark insistiu: “será que encontraram informação que liga Sudão à Al-Qaeda?”. A resposta surpreenderia ainda mais o general.
“Não, não há nada de novo nesse sentido. Simplesmente tomaram a decisão. Não sabemos o que fazer em relação aos terroristas, mas temos um bom exército e podemos derrubar governos“, recordou.
Três semanas depois da conversa informal, o mesmo oficial entregou a Clark um memorando descrevendo como os EUA iriam derrubar sete países em cinco anos. “Começava no Iraque, e depois Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e, a terminar, Irã”, disse Clark.
											
								
								








