A 57ª fase da Operação Lava Jato, denominada “Operação Sem Limites”, deflagrada na quarta-feira, é relativamente fácil de entender.
Empresas estrangeiras (“trading companies”), que atuam na comercialização de petróleo, passavam propina a alguns funcionários da Petrobrás para fazer com que a empresa vendesse petróleo “por um preço mais baixo que o justo” e comprasse petróleo “a um preço mais alto que o justo”. (cf. Juíza Gabriela Hardt, Decisão, 30/11/2018, p. 7).
Por “justo”, entenda-se o preço “de mercado” – o preço internacional, até porque se tratava de exportações e importações.
As principais dentre essas “tradings” que passavam propina são a suíça Trafigura, a holandesa Vitol, a anglo-suíça Glencore, a Chemoil, de Singapura, a inglesa Oil Trade & Transport e a norte-americana Chemium.
Além dessas, também repassavam propina a Cockett (subsidiária da Vitol), a Mercuria (Suíça), a Arcadia (Inglaterra), a Aegean (Grécia), a chinesa Oceanconnect e a WFS (EUA).
Esse esquema de corrupção funcionou, sobretudo, de 2011 a 2014, no governo Dilma Rousseff, segundo as provas colhidas pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF) – embora, não há segurança de que tenha sido desativado depois disso.
O total de propinas já comprovadas está em US$ 31 milhões (trinta e um milhões de dólares).
Toda a questão está em como foi possível o estabelecimento desse esquema. Pois, quanto às provas, há gravações telefônicas, e-mails, planilhas, contas bancárias – e o difícil é imaginar um tipo de prova que não exista nessa investigação.
Aliás, existe: até agora não há “delações premiadas”.
PANORAMA
Vejamos o modus operandi dos criminosos.
Uma quadrilha composta por Luiz Eduardo Loureiro Andrade, Bo Hans Wilhelm Ljungberg e Carlos Henrique Nogueira Herz intermediava, para as tradings, as vendas e compras de petróleo à Petrobrás.
Dentro da Petrobrás, havia outra quadrilha, instalada na gerência executiva de Marketing e Comercialização, um departamento da diretoria de Abastecimento.
Essa quadrilha dentro da Petrobrás era formada por:
– Carlos Roberto Martins Barbosa, gerente da área de marketing e comercialização;
– Rodrigo Garcia Berkowitz, empregado da Petrobrás em Houston, responsável por negociar com empresas estrangeiras;
– César Joaquim Rodrigues da Silva, antecessor de Berkowitz em Houston;
– Jorge de Oliveira Rodrigues, gerente da área de marketing e comercialização;
– Marcus Antônio Pacheco Alcoforado, também gerente da área de marketing e comercialização.
A diretoria de Abastecimento, a qual pertencia a gerência executiva de Marketing e Comercialização, foi ocupada, até 2012, por Paulo Roberto Costa, do esquema do PP e PMDB dentro da Petrobrás.
Por essa razão, o delegado Filipe Hille Pacce, da PF, comentou, na quarta-feira, sobre o esquema investigado pela Operação Sem Limites:
“O curioso é que o Paulo Roberto Costa não narrou esse esquema no momento da sua colaboração. Se tivermos indícios de omissões dolosas, terá que haver talvez alguma medida contra ele, ouvido novamente. É uma questão que vai ser objeto de diligência aqui nesta investigação.”
“Eventualmente, se caracterizada a omissão dolosa em relação a esse ponto, ele perde os benefícios do acordo [de colaboração]”, disse o procurador Athayde Ribeiro Costa, também da força-tarefa da Lava Jato.
A mesma omissão não ocorreu nos depoimentos de Nestor Cerveró, que foi diretor da Área Internacional da Petrobrás. Como lembram o Ministério Público e a juíza Hardt, “em seu termo de colaboração nº 17/23, [Cerveró] já havia traçado um panorama sobre os ilícitos perpetrados na área de trading de produtos da Petrobrás, sobre a pulverização desses ilícitos por diversos cargos, produtos e países e sobre a existência de ingerência política nos negócios em tal área”.
CENTAVOS E MILHÕES
O quadro dado por Cerveró é, sem dúvida, interessante:
“.., o volume de negócios de afretamento de navios é grande, mas o volume de recursos é menor se comparado ao trading de combustíveis;
“… a principal característica a unir o trading e o afretamento de navios está no fato de que ambas atividades não são aprovadas previamente pela diretoria;
“… o diretor de Abastecimento possui autorização, nas áreas de trading e afretamentos, para fechar negócios sem que haja uma prévia autorização da diretoria;
“… a Petrobrás possui escritórios de trading no Rio de Janeiro, Nova Iorque (escritório de representação, é mais financeiro que trading), Houston e Londres, sendo o Rio de Janeiro o centro de operações;
“… nesses escritórios a Petrobrás compra e vende petróleo e seus derivados no mercado internacional;
“… essa comercialização é feita principalmente através das companhias de comercialização ou ‘trading companies’;
“… ao que se recorda as maiores tradings são a Glencore e Trafigura;
“… o volume negociado é muito grande e, nesse volume, os centavos das negociações diárias podem render milhões de dólares ao final do mês em propina;
“… o declarante não participava desse esquema, estando ele centralizado no Abastecimento;
“… em tese, os funcionários envolvidos no recebimento dessa propina são os funcionários da área de trading e da diretoria de abastecimento;
“… o declarante não pode informar fatos concretos relacionados porque tem conhecimento apenas do funcionamento do esquema, mas dele não fazia parte” (cf. Termo de Colaboração nº 17 e 23 de Nestor Cunãt Cerveró, 21/01/2016).
TRAGÉDIA
O que é possível perceber é que os esquemas de intermediação existiam para proporcionar propinas.
O leitor poderá dizer que isso é óbvio. Mas nem tanto.
Houve quem chamasse de “empreendimento patriótico” a Sete Brasil, uma empresa financeira formada, supostamente, para construir sondas com dinheiro do FGTS, do BNDES e da própria Petrobrás, locupletando o cartel que assaltava a Petrobrás – através dos estaleiros que as empresas desse cartel organizaram – para depois alugar essas sondas à Petrobrás.
Por que a Petrobrás não poderia encomendar diretamente as sondas ou através de uma subsidiária? Por que isso teria de passar pela intermediação de uma empresa financeira privada?
Porque essa era a forma de viabilizar uma gigantesca propina. O depoimento de Antonio Palocci, sobre essa questão, apenas confirma o que já se sabia (v. O esquema do PT na Petrobrás: Vaccari, Duque & alguns outros (5)).
Se a política central – a que vinha de cima – era essa, é lógico que isso deve ter provocado o surgimento de esquemas menores ou paralelos.
Como impedir que isso acontecesse, se a política de quem estava no governo, e dos partidos principais que estavam no governo, era essa?
No caso do esquema de compra e venda de petróleo, a leitura das provas chega a causar uma sensação perto do patético.
Por exemplo, este e-mail:
“Phil” era o pseudônimo de Carlos Roberto Martins Barbosa, gerente de marketing e comercialização; “Tiger” era o operador Luiz Eduardo Loureiro Andrade; “Dehl” era César Joaquim Rodrigues da Silva, que negociava compras e vendas de petróleo nos EUA (também chamado “Golfinho”); “Morcego” era Rodrigo Garcia Berkowitz, sucessor do anterior em Houston.
Havia, portanto, uma filosofia da propina. Mas isso era apenas entre aqueles que precisavam de alguma hipocrisia para roubar.
Entre os operadores, a conversa era outra. Por exemplo, nesse outro e-mail, enviado por Luiz Eduardo Loureiro Andrade, o “Tiger” ou “Tigre”:
DESPACHO
A juíza Hardt determinou 11 prisões preventivas e 15 mandados de busca e apreensão, que foram executados na quarta feira, 05/11.
“Embora as prisões cautelares decretadas no âmbito da Operação Lavajato recebam pontualmente críticas”, escreveu a juíza em sua decisão, “o fato é que, se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso. Se os custos do enfrentamento hoje são grandes, certamente serão maiores no futuro. O país já paga, atualmente, um preço elevado, com várias autoridades públicas denunciadas ou investigadas em esquemas de corrupção, minando a confiança na regra da lei e na democracia.
“Impor a prisão preventiva em um quadro de fraudes, corrupção, concussão e lavagem de dinheiro sistêmica é aplicação ortodoxa da lei processual penal (art. 312 do CPP).
“Excepcional no presente caso não é a prisão cautelar, mas o grau de deterioração da coisa pública revelada pelos processos na Operação Lavajato, com prejuízos já assumidos de cerca de seis bilhões de reais somente pela Petrobrás e a possibilidade, segundo investigações em curso no Supremo Tribunal Federal, de que os desvios tenham sido utilizados para pagamento de propina a dezenas de parlamentares, comprometendo a própria qualidade de nossa democracia.”
Para uma visão do conjunto, ainda que resumida, do esquema, remetemos o leitor à decisão da juíza Gabriela Hardt:
DECISÃO GABRIELA HARDT – OPERAÇÃO SEM LIMITES
C.L.