
A poucos dias da eleição presidencial na Argentina, mais de 700 especialistas do Partido Justicialista, partido que integra a Frente de Todos pela qual concorre a chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchner, respectivamente à Presidência e à Vice-Presidência da Argentina, elaboraram um programa integral com medidas econômicas, sociais, trabalhistas, impositivas, educativas, de saúde, de comércio exterior, de moradia e financeiras, que abrangem 18 áreas estratégicas de governo, para serem aplicadas de imediato. Nessa tarefa estiveram trabalhando também membros das equipes técnicas de Fernández. Publicamos a seguir artigo divulgado pelo jornal Página 12, no domingo, 13.
O Plano de Governo de 100 dias do Partido Justicialista da Argentina
ALFREDO ZAIAT*
Revisar de forma integral a operação de créditos hipotecários ajustados por Unidade de Valor Aquisitivo, UVA (custo médio de construção de um metro quadrado de moradia).
. Referenciar à moeda nacional as tarifas de serviços, transporte, combustíveis e energia. Além disso, congelá-las até uma revisão integral para avaliar custos e planos de investimento das empresas prestadoras do serviço. Eliminar as retenções [impostos sobre exportações] às produções regionais que estejam em situação crítica e estabelecer retenções segmentadas por tipo de produção. Restituir as moratórias previdenciárias que permitiram acessar ao pagamento mínimo àqueles que não contavam com contribuições suficientes. Pôr em marcha negociações paritárias livres com aumentos acima da inflação para recompor o mais rápido possível o poder aquisitivo dos trabalhadores. Aplicar um imposto extraordinário sobre a rentabilidade registrada pelo setor financeiro. Mais um outro imposto extraordinário e com alíquota progressiva de 2 a 15% sobre as pessoas que aderiram ao último branqueio [procedimento e mecanismo encarregado de dar legalidade e introdução no mercado a ativos ilegais]. Aumentar benefícios (aposentadorias, pensões e Atribuição Universal por Filho, AUH) para recuperá-los até o nível da inflação do período 2016-2018. E entregar um bônus por uma única vez que compense a diferença entre a inflação registrada e o incremento das receitas nesse período. Reativar as linhas de crédito produtivas do Banco Central. Implementar um Programa Nacional de Infraestrutura Social de geração massiva de pequenas obras públicas comunitárias, destinando 25% dos fundos de obras públicas nacionais a cooperativas. Reativar as obras de infraestrutura para habitat e moradias paralisadas em todo o país. Convocar a paritária nacional docente com o objetivo de alcançar um piso salarial comum acima da linha da pobreza em todo o território nacional, compensando as assimetrias regionais.
Todas essas medidas e dezenas de outras mais para aplicar nos primeiros 100 dias de governo estão incluídas no documento que o PJ entregou ao candidato a presidente Alberto Fernández, na terça-feira passada, no ato pelo aniversário do General Perón realizado na sede do Partido Justicialista. São propostas detalhadas em 118 páginas. Abrangem 18 áreas-chave da administração nacional. A partir de um diagnóstico preciso acerca da herança pesadíssima que o governo de Macri deixa e são expostas as medidas de curto, médio e longo prazo.
Em síntese, se trata de recuperar as funções básicas do Estado desarticuladas pela gestão macrista do partido Cambiemos, com o objetivo de dinamizar o mercado interno, construir uma base exportadora, fortalecer e ampliar a cobertura dos setores vulneráveis e recuperar as condições básicas para o desenvolvimento nacional.
Ginés González García foi o coordenador dessas 18 comissões das quais participaram mais de 700 especialistas. Da leitura atenta desse documento pode-se extrair o plano que o PJ propõe para os primeiros 100 dias do governo de Alberto Fernández. Ginés entregou em mãos o documento a Alberto Fernández, esclarecendo que não é oficial do PJ porque não percorreu os espaços formais do partido, mas assinalando que o objetivo é que seja um insumo de campanha. Depois de recebê-lo, em seu discurso, Fernández assinalou que “o que fizeram as equipes técnicas foi reunir-se muitas vezes, trabalharam muito, e sei disso porque muitos trabalham perto de mim e sei de todas as reuniões que Ginés promoveu para fazer este trabalho”.
Renda
Além de que o salário real dos trabalhadores recupere o terreno perdido em quatro anos de economia macrista, entre as propostas de políticas para o curto prazo apresentadas pelo PJ se encontra também a recomposição “o mais rápido possível” do poder aquisitivo das aposentadorias e pensões mínimas, das pensões por incapacidade e da AUH. Para fortalecer a renda real dos lares, sugerem executar medidas fiscais para contraposição à forte queda da demanda privada: algumas delas é a de deduzir dos tributos para os assalariados e aposentados que contribuam na quarta categoria e percebam até 70.000 pesos [4950 reais] por mês em mãos – incluindo um máximo por receita familiar total – até 50% de seu pagamento do imposto na compra de roupa, calçado, moveis, linha branca, materiais para reformar o lar. Esclarecem que os bens que estariam incluídos têm que ser de indústria nacional, e que a proposta seja por um ou dois anos.
Outras medidas:
* Refinanciar dívidas de beneficiários da Administração Nacional da Seguridade Social, Anses, e devolução do Imposto ao Valor Agregado, IVA, para esses mesmos beneficiários.
* Implementar a emergência alimentar e de saúde como componentes chaves para dinamizar o consumo por seu efeito sobre o poder de compra.
* Reativar o investimento público como fonte de geração de atividade econômica, favorecendo o impulso às compras de bens nacionais nos planos de expansão.
* Implementar um processo virtuoso e sustentável de substituição de importações, vinculando as pequenas e médias empresas, pymes, com “nosso sistema científico e tecnológico e fornecendo facilidades de capacitação e financiamento para o investimento em condições adequadas”.
* Reverter o desmantelamento das medidas de administração de comércio que a gestão Cambiemos determinou desde sua chegada ao poder.
Cesta de bens
Para a reativação das diferentes cadeias que compõem o tecido produtivo, a recuperação da demanda interna e o avanço na administração de preços, entre outras medidas, se propõe restabelecer a devolução do IVA para compras com cartão de débito, com uma devolução de 10 pontos para produtos da cesta básica e de 5 pontos para o resto, excluindo as bebidas alcoólicas, bens com preços unitários superiores a 1000 pesos [80 reais] e com limite de compras totais diárias de 5000 pesos [355 reais] por cartão.
Outra iniciativa é relançar “Preços Cuidados” [programa de controle de preços de produtos essenciais assumido pelo governo nacional implantado em 2014, durante a presidência de Cristina Kirchner], incluindo pequena empresas de comércio, além de fixar uma cesta de 500 produtos básicos com controle ou acordo de preços, inicialmente comercializados pelas grandes cadeias comerciais e próximas. Nessa línea, se sugere o impulso dos mercados regionais concentradores para aproximar do consumidor os produtos, tanto frescos como não perecíveis.
Outro programa que se propõe resgatar é o “Agora 12” [plano que permite comprar produtos nacionais em parcelas fixas com cartão de crédito], mas com taxas “estritamente de 0% e com maior controle para que as promoções possam orientar-se exclusivamente a produtos de fabricação nacional”.
Impostos
Em matéria de recursos públicos, o documento técnico do PJ assinala que depois de quatro anos do governo de Cambiemos, e na atual conjuntura econômica recessiva, todos os setores “têm motivos para questionar a cobrança de impostos sobre suas atividades”. Ante esse diagnóstico, ressalta que “a melhor política a favor dos recursos públicos e o equilíbrio fiscal é o crescimento econômico”. Para garantir que “não vamos aumentar impostos e sim vamos redistribuir a carga tributária, aliviando o peso que hoje o sistema tributário faz os setores populares e o setor médio arcarem, em especial as pequenas e médias empresas (pymes), assalariados e autônomos, sem deteriorar as finanças públicas”.
Expressa que o objetivo ao finalizar o governo seria situar a pressão tributária total em 32% do PIB, com 25 pontos sobre do Estado nacional e os 7 pontos restantes entre províncias e municípios. Após esse objetivo propõe elevar a presença dos tributos provenientes de rendas e patrimônios a não menos de 30% do total. Sobre isso, recomenda um imposto extraordinário sobre a rentabilidade registrada pelo setor financeiro, em base ao Informe sobre Bancos que publica o BCRA. Indica que o tributo deve cobrir somente a diferença entre a rentabilidade média, registrada no período 2015-2017, e a rentabilidade extraordinária registrada em 2018 e 2019. A rentabilidade de 2015-2017 será ajustada para ser comparável com o período 2018, segundo o Índice de Preços ao Consumidor de Buenos Aires, IPC-Caba, (2015-2016) e o IPC do Instituto Nacional de Estatística e Censos da República Argentina, Indec, (2017).
Como se mencionou no início, também se propõe um imposto extraordinário sobre os capitais branqueados [procedimentos e mecanismos encarregados de dar legalidade e introdução no mercado a ativos ilegais] em 2016.
Créditos
A descrição da relação investimento e crédito na economia argentina se encontra detalhada no documento. Menciona que depois de quatro anos do governo de Macri, da mesma forma que nos anos 1990, a política econômica ajustou-se estritamente à crença neoliberal de que o financiamento do investimento depende essencialmente de recursos externos. Aponta que, como o demonstra novamente a experiência argentina, uma política indiscriminada de atração de investimento e financiamento estrangeiro, em lugar de impulsionar o desenvolvimento, desintegra o espaço interno, fratura as cadeias de valor e expulsa o capital argentino, reduzindo a taxa de investimento e aumentando a vulnerabilidade externa. Para indicar que é preciso reconhecer que o financiamento do investimento descansa, em primeiro lugar, na poupança interna e, de forma complementar, em recursos externos.
Por esse motivo, propõe a reativação das linhas de crédito produtivas do Banco Central, equivalentes a 25% dos depósitos totais do sistema, com quota mínima de 70% desse total para as pymes. Os bancos deverão emprestar obrigatoriamente às pymes a uma taxa subsidiada de 10 pontos abaixo da inflação esperada, segundo os resultados da pesquisa de expectativas que realiza mensalmente o Banco Central.
Outras iniciativas são a licitação de subsidio de taxas no sistema financeiro e as linhas de financiamento brando priorizando critérios estratégicos que complementem a Lei de Promoção Produtiva. O relançamento das linhas de crédito Fondear e Fontar, e a entrega de contribuições não reembolsáveis para investimentos que impliquem um desenvolvimento tecnológico inovador, de acordo a parâmetros estipulados pela área de Educação, Ciência e Tecnologia.
Diante da crise financeira e debilidade do capital de trabalho das empresas, se aconselha a interrupção de leilões e bloqueios de contas bancárias por descumprimentos tributários, por um período de 180 dias. Este é um tema que hoje está afetando dezenas de pymes.
Outras medidas:
* Relançar a dupla indenização por demissão sem causa.
* Extensão e facilitação ao acesso aos montantes do Programa de Recuperação Produtiva (Repro).
* Fortalecer a Comissão de Defesa da Concorrência para estudar por regras estabelecidas e por denúncias anônimas o acionar abusivo de certas empresas contra seus concorrentes e os consumidores finais.
* Reativar o investimento público como fonte de geração de atividade econômica, favorecendo o impulso às compras de bens nacionais nos planos de expansão com caráter de emergência.
* Restabelecer o “Compre Nacional” que permita às pymes e cooperativas concorrer em melhores condições nas licitações dos estatais nos níveis nacional, provinciais e municipais.
* Estender a redução das tarifas dos serviços públicos à micro, pequenas e médias empresas que conservem os postos de trabalho e que gerem novos empregos.
Produção agropecuária
Em acordo com o plano contra a fome apresentado por Alberto Fernández, o documento do PJ afirma que “em um país como a Argentina não pode haver compatriotas que passem fome”. Coloca que a prioridade de qualquer política agro- alimentar é que “os argentinos voltemos a alimentar-nos adequadamente”, afirmando que “nos lares argentinos não pode faltar carne, pão, leite, verduras, frutas”. Define que os preços dos alimentos não devem estar amarrados ao vaivém do dólar e que a política do setor estará orientada a aumentar a produção agropecuária e sua industrialização. Para concluir que “devemos terminar com a política de “exportar tudo o que seja possível e deixar os saldos para a mesa dos argentinos. Devemos terminar com a falsa antinomia entre o consumidor interno e a exportação: a saída para o dilema é produzir mais para todos, para o consumidor interno a preços acessíveis e para a exportação também”.
O plano de 100 dias de governo propõe recuperar o status do Ministério de Agroindústria, a capacidade de extensão do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária, INTA, e reintegrar à categoria de Secretaria a Agricultura Familiar. Em relação às retenções [impostos sobre exportações] tais demandas serão eliminarão das produções regionais que estejam em situação crítica e se estabelecerão tributos segmentados (em percentual, não com um montante fixo como agora) por tipo de produção. O plano explica que o sistema atual castiga aos pequenos produtores e não diferencia os que agregam valor, além de estar amarrado às necessidades fixadas pelo FMI para o pagamento da dívida.
Define que as retenções terão como finalidade fomentar o agregado de valor, a geração de trabalho nacional e a segurança alimentar. “Se segmentarão e serão menores para quem incorpore trabalho e valor agregado”, indica, para mencionar que se recuperará o Fundo Federal Solidário com o aporte dos direitos de exportação, com o objetivo de financiar nas províncias e municípios projetos vinculados à produção, à distribuição e ao abastecimento de alimentos, como a melhoria da infraestrutura produtiva e as cadeias de valor locais.
Assegura que se retomará o tratamento e a regulamentação soberana das divisas do setor de grãos e oleaginosas. “As divisas do comércio exterior de grãos são um recurso escasso e estratégico”, sentencia, para explicar que o trato das divisas por parte do setor privado tem sido um completo fracasso devido à falta de regulamentação estatal e a cooptação de setores do Estado por parte do setor privado concentrado. Expõe então que os tempos de liquidação de divisas serão acordes à necessidade e forma do cumprimento das obrigações externas.
Em relação a uma questão chave e controvertida no setor (a produção de sementes), convida ao debate de uma Lei de Conhecimento Estratégico para o Agro que supere a lei de Sementes, pensando estrategicamente nas novas tecnologias e na ciência e no conhecimento aplicados como o elo que controla as cadeias produtivas. Para prometer o impulso de uma lei que estimule a inovação e o desenvolvimento local do setor público e privado na área, mas principalmente que garanta a Soberania do Conhecimento Nacional.
Tarifas
Neste capítulo fixa posição na contramão do discurso dominante: “Nosso país é produtor de energia. Não há motivo pelo qual os consumidores devam pagar o mesmo valor que se paga em países que não contam com recursos. Por isso, os eventuais aumentos do dólar não podem ser trasladados automaticamente ao consumidor. O preço que os consumidores pagarão será fixado nacionalmente, em função dos custos reais de produção e das necessidades de seus cidadãos e seu desenvolvimento produtivo”.
Em relação à Vaca Muerta (formação geológica na Patagônia onde se produz petróleo de xisto), define que deve desenvolver-se em função das necessidades do desenvolvimento socioeconômico do país, não das de atores particulares, e que YPF deve ser o principal ator neste sentido.
Será criada a Comissão de Revisão Tarifária Integral que deverá estabelecer o custo real de produção e transporte de gás e eletricidade em um prazo de cem dias. Esta comissão continuará suas funções nos próximos anos, seguindo a evolução real dos custos de geração, transmissão e distribuição da energia. Uma vez conhecida a verdadeira equação econômica destas empresas, se renegociarão as tarifas de luz e gás, e se desenvolverá uma política de atualização futura que contemplará: os custos de manutenção; o valor dos investimentos realizados e requeridos; e uma taxa de rentabilidade razoável dos operadores. Enquanto não estiver estabelecida a estrutura de custos, “as tarifas permanecerão congeladas”.
*Economista e jornalista argentino