Na primeira transmissão pacífica do poder desde a independência em 1960, o oposicionista Félix Tshisekedi recebeu a faixa presidencial das mãos de Joseph Kabila e tomou posse na quinta-feira (24), como novo presidente da República Democrática do Congo, após ter sua vitória proclamada pela Justiça Eleitoral e sacramentada pela Corte Constitucional.
Filho de um ex-primeiro-ministro que rompeu com o ditador Mobutu, Tshisekedi teve 38,5% (7.051.013 votos). No discurso de posse, ele se comprometeu a trabalhar pela construção de um país que “não será um Congo da divisão, ódio ou tribalismo” e pela paz e desenvolvimento. Prometeu ainda combater a corrupção e sua principal sequela, “uma evasão fiscal que é quatro vezes maior que o orçamento anual”.
Tshisekedi reiterou também a busca da “reconciliação” – depois de anos seguidos de guerra e repetidos surtos de violência – e da “pacificação em todo o território nacional e erradicação dos grupos armados”, apontou para a “libertação dos presos políticos”, anunciou a “realização de um recenseamento” para saber quantos habitantes o país tem – o último foi feito em 1984 – e propôs a discussão de “nova lei eleitoral”.
Com imensas riquezas naturais – ouro, diamantes, cobalto, cobre, tântalo, petróleo e urânio – estimados em US$ 24 trilhões –, o Congo democrático se tornou alvo de seguidas investidas das forças imperialista e neocoloniais logo após a independência, do assassinato do líder da luta de libertação, Patrice Lumumba, até à “guerra mundial africana”, que matou seis milhões de congoleses, de 1998 a 2003, e praticamente ignorada pela mídia imperial.
A vitória de Tshisekedi foi contestada pelo ex-executivo da Exxon no país, Martin Fayulu, que se autonomeou “vencedor”, com suas alegações recebendo respaldo das ex-potências coloniais França e Bélgica, bem como do Departamento de Estado – este, antes do pleito, ameaçara com sanções caso o eleito não fosse do agrado de Washington.
Relatório dos bispos congoleses, vazado para a TV-5 Monde e o Financial Times, assevera que ele teve “59% dos votos” e não os 35,2% atestados pela Corte Suprema (6.366.732 votos). O Exxon-boy recebeu apoio dos mobutistas, inclusive o mais notório deles, Jean-Pierre Bemba, filho de um ex-ministro do ditador, ele próprio ex-assistente pessoal de Mobutu e assíduo na ‘Versailles da Selva”, e líder do Movimento pela Libertação do Congo (MLC).
O candidato do partido de Kabila, o ex-ministro do Interior, Emmanuel Shaday, ficou com 23,8%. 21 candidatos concorreram e a participação foi de 47,5% em um país com o tamanho da Europa Ocidental e infraestrutura deficiente. Kabila, por já ter sido reeleito, não pôde disputar. As eleições ocorreram com dois anos de atraso.
No parlamento, venceu o partido de Kabila, o Partido do Povo pela Reconstrução e Democracia (PPRD), com 337 de 500 cadeiras, segundo o Jeune Afrique. De acordo com a agência de notícias AFP, o PPRD e partido de Tshisekedi, a União para a Democracia e o Progresso Social (UDPS), acabam de formalizar uma aliança.
Diante da pressão vinda de Paris/Washington, além do risco de retomada de confrontos armados, a União Africana chegou a solicitar uma recontagem de votos, mas recuou em acatamento à decisão soberana da Corte Constitucional da RDC. O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, chamou todos a apoiarem a decisão da Corte congolesa.
Quando o chanceler francês, Jean-Yves Le Drian, disse à CNews que os resultados declarados “não são consistentes com os verdadeiros resultados … Monsieur Fayulu foi o líder que saiu dessas eleições”, foi prontamente rebatido. “A França não tem nada a ver com a eleição no Congo, e se Le Drian acha que o Congo é uma província ou colônia da França, ele só precisa nomear o presidente do Congo”, ironizou porta-voz de Kinshasa.
Conforme a sempre imparcial mídia pró-império, Kabila, que por alguns anos foi visto favoravelmente desde Paris e Washington, passou a ter dois graves defeitos, “corrupto” e “pró-China”, quando seu governo, em troca do fornecimento de minérios, reativou a economia e obteve de Pequim a construção de rodovias, ferrovias, barragens, redes de telecomunicações, escolas e hospitais. O Congo ainda é um dos países mais pobres do mundo, ficando em 176º lugar de 188 países no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.
Desde 2009, o crescimento do PIB esteve acima de 7%, mas caiu nos dois últimos anos para menos da metade, devido à derrubada na cotação das commodities. Sob pressão do Banco Mundial e do FMI, e ainda com o país em ruínas pela guerra, houve privatizações. Mineradoras estrangeiras aceitaram mudança de contrato, para 50/50, ao invés do 87/13 desde Mobutu. Ainda é obscenamente rica a elite que transita entre Kinshasa e Paris, enquanto a renda per capita não chega a dois dólares por dia.
É longa a história da resistência do povo congolês à espoliação externa, desde que o país foi declarado, no século XIX, um fazendão do monarca belga. O líder da libertação, o primeiro-ministro Patrice Lumumba, foi sequestrado, torturado e morto, em episódio com as digitais da CIA e de mercenários belgas, enquanto Mobutu subia ao poder. Até mesmo o secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjold, quando tentava mediar uma solução para a crise no centro da África, teve seu avião derrubado e foi morto.
A ditadura de Mobutu durou 32 anos, até que levante popular liderado por Laurent-Désiré Kabila, com ajuda de um heterogêneo leque de forças, o depôs em 1997. Parte das forças que haviam apoiado Kabila romperam com ele no ano seguinte, após sua recusa em cumprir com expectativas de mineradoras americanas e em reprimir a minoria hutu – este, um rescaldo do conflito de Ruanda envolvendo tutsis e hutus. Tropas de Ruanda e de Uganda intervieram e ressurgiram quistos do mobutismo.
Países que haviam feito parte da ‘Linha de Frente’ da luta anti-apartheid vieram em socorro de Kabila, como o Zimbabue, Angola e Namíbia, gestando-se o que se tornou conhecido como “a Guerra Mundial Africana”, em que se envolveram oito países, com regiões inteiras jogadas na anarquia, legiões de refugiados, fome, devastação e pilhagem generalizada da riqueza mineral para financiar milícias.
Em 2001, Kabila foi morto em um atentado, e seu filho, Joseph, foi chamado para substituí-lo para manter a unidade das forças congolesas. Um acordo preliminar de paz foi assinado em 2002, e levou à formação de um governo de transição, com o jovem Kabila de presidente e quatro vices, e com Bemba de primeiro-ministro, representando as forças em choque, o que resultou na retirada de tropas estrangeiras e desarmamento de milícias, na constituição aprovada em plebiscito em 2005 e na eleição do ano seguinte. Kabila venceu Bemba por 58% a 42%.
Tentativa golpista fracassada de Bemba em 2008 o levou à fuga do país, para a Bélgica, onde acabou preso e conduzido ao Tribunal Penal Internacional pelos crimes de guerra cometidos por sua milícia na vizinha República Centro Africana. Inesperadamente, o TPI, em julgamento de segunda instância, decidiu libertá-lo bem a tempo da eleição de 2018, mas ele teve sua candidatura vetada pela justiça eleitoral por outra acusação pendente, a de subornar testemunhas. Em discurso na ONU em 2017, Kabila pediu que seja estabelecida uma data para o fim da presença da força da ONU no país, a Monusco.
ANTONIO PIMENTA