
Na terça-feira, 23 de julho, exatamente no dia em que completava um ano a morte da brasileira Raynéia Gabrielle Lima, seu assassino, o paramilitar Pierson Gutiérrez Solís, condenado a 15 anos de prisão, foi libertado pela “Lei de Anistia” imposta pelo presidente da Nicarágua, Daniel Ortega.
Naquela noite, a estudante de medicina de 30 anos dirigia seu carro próximo à residência do tesoureiro do partido do governo, quando foi alvejada por tiros de fuzil no coração, no pâncreas e no fígado. Outros três civis nicaraguenses que protestavam contra as medidas neoliberais ditadas por Ortega e sua esposa e vice, Rosário Murillo, foram mortos por policiais, paramilitares e agentes do regime.
“Ordena-se o arquivamento da presente causa penal, na qual o Ministério Público acusou Pierson Gutiérrez Solís pelos crimes de homicídio e porte ilegal de armas de fogo”, afirmaram os juízes da primeira turma do Tribunal de Apelações de Manágua, que também se pronunciaram pelo arquivamento do seu histórico criminal.
A decisão dos magistrados atende à Lei da Anistia feita sob encomenda, em junho deste ano, para beneficiar orteguistas que, como Solís, abriram fogo contra civis inocentes, acusados de serem “golpistas” por repudiarem o arrocho às aposentadorias.
Para as organizações de direitos humanos, a extensão da anistia a oposicionistas só revela a hipocrisia do regime, uma vez que iguala as vítimas a seus algozes. “O povo não pediu anistia porque nossos filhos não são culpados de nenhum crime. Por isso sempre defendemos liberdade total para todos e todas”, rebateram.
PACOTE NEOLIBERAL
As manifestações contra o pacote neoliberal de 18 de abril do ano passado levou milhares às ruas e deixou 595 mortos de acordo com as organizações locais de direitos humanos. A Comissão Interamericana apontou 326 pessoas assassinadas pelas forças oficiais e paramilitares enquanto o governo Ortega reconheceu “somente” 200. Cerca de 3.000 manifestantes ficaram feridos e centenas viraram presos políticos.
“O companheiro de Raynéia [que vinha em outro carro logo atrás] disse que eram cerca das 11 da noite, que estavam passando próximos à Universidade Americana (UAM), quando metralharam o automóvel da estudante. Ele a levou imediatamente ao hospital, mas as balas haviam atingido seu coração, seu pâncreas e seu fígado. Não pôde resistir”, lamentou o reitor da UAM, Ernesto Medina. “Pelo que dizem da ferida, tem que haver sido uma arma de grosso calibre. Dizem que foi uma rajada, porém a causa da morte é uma”, assinalou.
Pernambucana de Vitória de Santo Antão, a jovem estava concluindo o curso, era médica residente do hospital Carlos Roberto Huembes e se descrevia nas redes sociais como “nascida no Brasil e renascida na Nicarágua”. “Liberdade, luz, paz e amor”, era seu lema.
TRANQUILA E SOLIDÁRIA
Conforme o seu pai, Ridevando Lima, a estudante tinha se mudado há seis anos para a Nicarágua junto com o marido, cuja família, brasileira, já havia morado no país, e era “muito tranquila, caseira e estudiosa”. Apesar de não participar dos protestos, explicou uma amiga universitária, Raynéia “esteve nos hospitais apoiando os feridos como médica, assim como muitos de seus companheiros da universidade”. “Era uma menina muito alegre, sempre sorridente e disposta a ajudar”, lamentou.
Cada vez mais isolado em sua política vende-pátria, Ortega se encontra diante uma ampla força de rechaço, que inclui personalidades como Dora MaríaTéllez, Víctor Hugo Tinoco, Mónica Baltodano, Jaime Wheelock, Alejandro Bendaña, Sergio Ramírez (ex-vice-presidente), o músico, cantor e compositor Carlos Mejía Godoy e Henry Ruiz, lideranças históricas da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) durante a revolução que depôs a ditadura dos Somoza.
“Na Nicarágua, são os banqueiros, a oligarquia tradicional e grupos econômicos formados de elementos que participaram da revolução contra a ditadura somozista, mas que renegaram seus princípios e se tornaram especuladores, os que enriquecem”, assinalou a ex-comandante guerrilheira Mónica Baltodano.
Para o sacerdote Ernesto Cardenal (1979-1987), poeta e ex-ministro da Cultura da Nicarágua, “Ortega e Murillo não podem seguir encontrando legitimidade nos movimentos de esquerda aos quais, com seus atos sem escrúpulos, traíram. Os heróis e mártires da revolução sandinista não merecem que sua memória seja manchada pelos atos genocidas de um ditador que os traiu”. “As vítimas de Ortega e Murillo merecem justiça”, concluiu.
LEONARDO WEXELL SEVERO