CARLOS LOPES
O conhecimento, ainda que sumário, do que era o Brasil antes da Independência é decisivo para uma avaliação – que não seja estapafúrdia – da obra dos homens e mulheres daquela época
Para Nelson Francisco
Era no tempo do rei.
Esta frase, que inicia uma das obras fundadoras de nossa literatura – “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida – tem um significado além do tempo, considerado em sua dimensão meramente cronológica.
Era uma outra realidade. A época em que D. João VI – aquele que, depois, José Bonifácio chamaria de “João Burro” – era quase outro mundo.
Nas memórias de Antonio de Menezes Vasconcellos de Drummond, um dos mais próximos entre os amigos dos Andradas – fundador, com França Miranda, de “O Tamoyo”, jornal que expressava o ponto de vista do partido andradino – pode-se ler:
“Em 13 de Maio de 1810, em galardão de meus bons serviços e consideração por meu pai, me fez o sr. D. João 6º mercê do hábito da ordem de Cristo, com 12 mil réis de Tença” (cf. Annotações de A. M. V. de Drummond à sua biographia, Annaes da Bibliotheca Nacional, Vol. XIII, 1890, p. 7).
Não é uma ideia óbvia, para os homens e mulheres de hoje, que a concessão do “hábito da ordem de Cristo” fosse também uma questão econômica ou financeira – isto é, que implicasse em uma renda (“tença”), aliás, vitalícia.
Mas assim era. Reparemos, além disso, que, em 1810, quando D. João concedeu a Drummond a renda que era consequência do “hábito de Cristo”, Drummond tinha, apenas, 16 anos.
Era algo bastante parecido com as sobrevivências do parasitismo feudal na Itália, referidas por Gramsci em “Americanismo e fordismo”, um dos ensaios que rascunhou no cárcere.
A diferença é que não eram “sobrevivências” do feudalismo português, mas o próprio.
PORTO SEGURO
O conhecimento, ainda que sumário, do que era o Brasil antes da Independência é decisivo para uma avaliação – que não seja estapafúrdia – da obra dos homens e mulheres daquela época.
O governo de D. João VI é descrito, por uma certa historiografia, como um período benfazejo e progressista. A origem dessa tradição está em Varnhagen, o historiador oficial do segundo reinado.
Depois nomeado visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen, nascido em Sorocaba, era um áulico da corte de D. Pedro II, assim como Silva Lisboa – nomeado visconde de Cairu – foi um áulico da corte de D. Pedro I (e também da corte de D. João VI).
O impressionante é que, apesar do seu reacionarismo, nem Silva Lisboa nem Varnhagen – como acentuou Capistrano de Abreu – eram mediocridades. Ao menos, não eram mediocridades completas. Talvez porque a monarquia, pelo menos até 1864 – quando a economia escravagista entrou definitivamente em agonia -, não era, ainda, um obstáculo absoluto ao crescimento do país. Assim, entre seus áulicos podia haver quem não fosse uma nulidade. Pelo menos, alguns.
Varnhagen detestava revoluções – assim como detestava índios, negros e… os Andradas. Nenhum outro historiador conseguiu (ou conseguiria) descrever a nomeação de José Bonifácio, após o “Fico”, para o Ministério do então príncipe regente D. Pedro, desse modo:
“A 16 de janeiro [de 1822] formou o príncipe um novo ministério, com quem pudesse marchar, em virtude da nova face que havia tomado a política do país. Confiando os negócios da fazenda a Caetano Pinto de Miranda Montenegro, capitão general de Pernambuco ao estalar a revolução de 1817, os do reino ao mineralogista José Bonifácio d’Andrada, que regressara da Europa antes de aí se proclamar a constituição, e os da guerra ao marechal Joaquim de Oliveira Álvares, que se distinguira nas campanhas contra Artigas, conservou na pasta da marinha a Manuel Antônio Farinha. Faltam-nos documentos suficientes para julgarmos, desde já e de um modo definitivo, cada um destes novos ministros: – e por outro lado nem o cremos mui essencial, no pouco tempo que ainda temos que historiar, durante o qual os próprios sucessos e a estrela do príncipe os vão guiar, da mesma sorte que os arrastariam, se eles quisessem opor-se-lhes” (Varnhagen, Historia Geral do Brazil, T. 2, Laemmert, Rio, 1857, p. 429, grifo nosso).
Isto foi publicado 35 anos depois dos acontecimentos de 1822!
Em outro texto, depois de escrever que José Bonifácio era dado a “falar demasiado”, exemplifica o que disse com o seu único encontro com Bonifácio, quando tinha cinco anos de idade:
“Esta qualidade [falar demasiado], tenho eu ainda mui presente desde a meninice, quando, em abril de 1821, pela única vez, vi ao mesmo José Bonifácio em nossa casa no Ipanema. Era o dia do batizado de uma irmã minha (Gabriela): eu fui incumbido da ‘derrama dos confeitos’, e ainda tenho nos ouvidos a voz rouquenha do mesmo José Bonifácio, acompanhada de alguns borrifos e perdigotos, que me amedrontaram, e não mais lhe apareci, apesar de estar nosso hóspede” (cf. Varnhagen, História da Independência do Brasil, RIHGB, vol. 173, 1938, p. 155, nota).
No entanto, Varnhagen tinha algum juízo, como, entre outras coisas, mostra a sua recusa ao pedido de Pedro II para que defendesse “A Confederação dos Tamoios” – poema de outro áulico, Gonçalves de Magalhães, depois visconde do Araguaia – contra a demolidora análise de José de Alencar.
Enfim, ele reconhece o papel de José Bonifácio – mas à sua maneira, ressaltando defeitos, supostos ou verdadeiros, até quando se refere ao que ele mesmo reconhece como positivo:
“A entrada principalmente de José Bonifácio no Ministério veio a dar-lhe mais unidade, o que foi de grande consequência para a marcha que seguiram os negócios. O seu grande saber, o seu gênio intrépido, o seu caráter pertinaz, que quase chegava a raiar em defeito, contribuíram a fixar a volubilidade do príncipe. E o conhecimento especial, que a estada de tantos anos em Portugal lhe dera desse país, dos seus recursos, do forte e fraco dos seus habitantes e especialmente dos que dirigiram a política em 1821 e 1822, a este respeito principalmente, nenhum outro Brasileiro de então lhe levava a palma. Cegava-o por vezes, como a seus irmãos, o muito orgulho – a falta de prudência e o excesso da ambição, bem que acompanhada de muita instrução e natural bonomia; mas a sua vivacidade e o seu gênio entusiasta o levaram a falar demasiado e a ser de ordinário pouco discreto e pouco reservado, como estadista. Tal foi o juízo que dele deixaram os agentes diplomáticos que o trataram quando ministro dos negócios do Reino e Estrangeiros, um dos quais, aliás muito seu amigo, transcreveu muitas bravatas, que declamou em um círculo de muitos, no beija-mão de 13 de maio de 1821, nem duvidou conceituá-lo de excessivamente ligeiro, acrescentando que era homem de espírito, mas de uma tal vivacidade e imaginação tal, que o poderiam arrastar além dos limites devidos e pô-lo até por fim em colisão, por falta de bom acordo com o príncipe regente, dotado igualmente das mesmas qualidades. Entretanto, cumpre confessar que parte dos seus defeitos na crise que atravessava o Brasil, foram qualidades recomendáveis, conforme também sucedeu com respeito ao chefe do Estado, o príncipe-regente e fundador do Império. Em todo caso, era então José Bonifácio um zeloso monarquista, muito amigo não só do país, como do príncipe, de quem era o mais fiel servidor, e que chegou a depositar no mesmo José Bonifácio tanta confiança e a admirá-lo tanto, que até foi acusado de o haver imitado em alguns dos seus defeitos, começando pelo da pouca gravidade e falta de decoro e recato nas palavras, que em José Bonifácio chegavam a raiar em desbocamento, e não era muito que, na flor da mocidade, o príncipe, ouvindo-as na boca de um sábio, chegasse a querer até nisto imitá-lo” (idem, pp. 155-156, grifos nossos).
É verdade que José Bonifácio não era um homem de linguagem recatada. Inclusive em algumas composições poéticas. Como nota Tobias Monteiro em “A Elaboração da Independência”, ele não compôs apenas a Ode aos Baianos, seu poema mais conhecido – ou os outros que também foram reunidos em “Poesias de Américo Elysio”. Além disso, por exemplo, escreveu sobre Carvalho e Melo, visconde da Cachoeira e ministro das Relações Exteriores de 1823 a 1825, um puxa-saco assíduo ao beija-mão do imperador: “Sátiro já decrépito, que sabe/ Por obras a arte inteira do Vieira,/ E quer por isso agora ser ministro,/ Um pontapé lhe deu e o cu voltando/ Este risonho o lambeu três vezes”.
Já quase setuagenário, quando soube dos regentes escolhidos pela Câmara para substituir o ex-imperador na menoridade de seu filho, comentou: “Dois são camelos e um é velhaco”. O que, é claro, logo foi parar nas páginas dos jornais, sobretudo no jornal de Evaristo da Veiga, Aurora Fluminense (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil, vol. I – “José Bonifácio”, 2ª ed., J. Olympio Ed., Rio, 1957, p. 332).
Talvez o incômodo de Varnhagen com o “desbocamento” de José Bonifácio fosse mais com a categoria de indivíduos a quem ele o aplicava, que com a linguagem chula às vezes usada pelo Velho do Rocio. Os áulicos, em geral, preferem linguagem macia.
No texto de Varnhagen que por último citamos, é evidente que ele mirava outro objetivo, além dos historiográficos: para D. Pedro II, separado do pai aos cinco anos de idade, atribuir os defeitos – fantasiosos ou reais – de seu pai à influência de José Bonifácio, devia, no mínimo, ser algo consolador.
Não sabemos se era assim. José Bonifácio fora tutor de Pedro II por quase três anos – mas sempre em conflito com Mariana Verna Magalhães, a quem o imperador considerava uma segunda mãe.
Se a atribuição de defeitos a José Bonifácio tinha esse efeito sobre Pedro II, realmente, não sabemos. Entretanto, quase com certeza, Varnhagen achava que era assim.
REVOLUÇÃO
Varnhagen é um historiador importante, mas não por suas opiniões políticas, e sim pela quantidade de material histórico que reuniu em suas obras. Um caso semelhante, embora de menor envergadura – mas contemporâneo de Varnhagen -, é o de Mello Moraes, autor de “História do Brasil-Reino e Brasil-Império” (1871) e de “A Independência e o Império do Brasil” (1877).
Como disse Octávio Tarquínio de Sousa – autor da melhor biografia de José Bonifácio – é difícil, provavelmente impossível, apesar da sua pouca solidez em muitos aspectos, conhecer o processo da Independência sem ler o que Mello Moraes escreveu. Moraes conheceu pessoalmente muitos dos participantes – então, já velhos – e sua capacidade de pesquisa está longe de ser desprezível.
Mas que é irritante ler certos trechos de Mello Moraes, lá isso é. Por exemplo:
“José Bonifácio (…) veio de Lisboa para São Paulo em setembro de 1819, e era oposto à independência do Brasil, pelas vantagens que recebia do Erário real. Antônio Carlos, como conhecia o modo de pensar do seu irmão José Bonifácio, constantemente lhe escrevia de Lisboa, para que se empenhasse pela independência da Pátria, e que, portanto, a aderiu forçado e não por sentimentos espontâneos à causa do Brasil” (cf. A. J. de Mello Moraes, A Independência e o Império do Brasil, 1ª Typ. Pop. do Globo, 1877, p. 71).
Ou, então:
“José Bonifácio logo que tomou posse do Ministério em janeiro de 1821, criou um partido seu, denominado Andradista, e circulou-se de gente muito ordinária, para instrumento de suas paixões; com o fim de praticarem crimes e horrores; e muito concorreu por um manifesto, justificando o procedimento do Brasil contra as loucuras das cortes portuguezas.” (idem, p. 72).
Um desses “horrores” (ou “crimes”) é, provavelmente, a Independência do Brasil.
O problema, aqui, não é apenas de opinião política.
Em ambos os trechos, Mello Moraes, em função de sua opinião política, falsifica os fatos.
Não é somente que, em sua vida, tanto pública quanto particular, José Bonifácio sempre foi um desprendido em questões de dinheiro e de honrarias – e raras vezes, já idoso, houve folga em seu orçamento familiar, se é que houve alguma, apesar de sua origem abastada.
Até o segundo semestre de 1821, como demonstrou Oliveira Lima em “O Movimento da Independência” (1922), os ânimos no Brasil eram todos a favor da Revolução Liberal do Porto – portanto, a favor da continuidade do Reino Unido ao de Portugal e Algarves. Até que as Cortes – o parlamento que tomou o poder em Lisboa – encetaram a recolonização do Brasil, uma das políticas mais estúpidas já empreendidas por qualquer revolução.
O resultado, ao final, foi a separação do Brasil, e, depois, a queda dos liberais e da revolução, com a dissolução das Cortes, após a “Vilafrancada” – o golpe de Estado chefiado por D. Miguel, em maio de 1823, que restaurou o absolutismo em Portugal.
Quando aconteceu a “Vilafrancada”, o Brasil, com a participação decisiva dos Andradas, já proclamara a Independência havia oito meses.
REPRESSÃO
Voltemos, depois desse pequeno passeio historiográfico, ao tempo do rei descrito nas memórias de Vasconcellos de Drummond:
“Fui com efeito denunciado de pedreiro livre [maçom] por José Anselmo Corrêa, pai do atual visconde de Seisal, atual ministro de Portugal em Bruxelas, e eu não era, não fui e ainda hoje não sou pedreiro livre!
“A denúncia fez grande impressão no ânimo d’el-rei e de Tomás Antônio [de Vila Nova Portugal – o ministro favorito de D. João VI], porque ambos me tinham em bom conceito.
“José Albano Fragoso, juiz da Inconfidência, com quem eu tinha estreitas relações de amizade, foi encarregado por Tomás Antônio de se prevalecer desta estreita amizade para descobrir a verdade e desviar-me de maus conselhos. José Albano Fragoso, no desempenho desta comissão, conduziu-se tão indignamente que muito contribuiu para agravar as circunstâncias em que então me achei. Sabia muito bem que eu não era pedreiro livre, que a denúncia era falsa, e comigo lamentava que o governo se achasse em circunstâncias de autorizar espiões para macular reputações.
“O ser pedreiro livre era então um crime. Mas a Tomás Antônio dizia ele o contrário do que sabia e conversava comigo. Não me acusava diretamente, nem confirmava a denúncia, mas com palavras misteriosas sustentava a suspeita, ora menos, ora mais fortemente, e emitia a opinião de ser eu mandado para fora do Brasil. Esta opinião calou no ânimo de Tomás Antônio, que se decidiu por ela. S. Exª declarou-me enfim que me preparasse para ir no paquete para Londres, afim de servir na Embaixada, sem me dizer em que posto.
“Respondi que voluntariamente não partia, que eu era inocente e que os inocentes não pediam perdão nem aceitavam a comiseração de quem quer que fosse. Que se me julgava criminoso mandasse pôr-me em processo, e que se me julgava inocente não consentisse que se abusasse da sua boa fé, nem que o fizessem instrumento da perseguição de um moço que no princípio da sua carreira tinha já dado boas provas da sua honra e da sua probidade.
“Esta resposta fez abalo no ânimo de Tomás Antônio, e como eu me achasse então moralmente doente com os desgostos que me causava a perseguição, conviemos em ir para Santa Catarina mudar de ares, com seis meses de licença.
“Da denúncia ao dia de minha partida decorreram muitos meses, mais de um ano, e neste longo intervalo a minha saúde sofreu muito. José Albano abusava da minha amizade, atraiçoava a verdade e mentia ao ministro, e tudo para quê? Sem vergonha o não digo. Queria desconceituar-me ou perder-me para ficar um lugar vago na chancelaria-mor que ele solicitava para seu enteado Manoel Plácido da Cunha Valle!” (cf. Annotações de A. M. V. de Drummond à sua biographia, Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Volume XIII, 1890, pp. 8-9).
Assim eram os tempos do rei.