CARLOS LOPES
Nos estendemos sobre a questão da resistência popular – em total contraste com o agachamento da nobreza – à invasão em Portugal, porque há uma contribuição dela, em nossa opinião, inequívoca, ao lado plebeu da Revolução da Independência
A desolação em Portugal, nas semanas que seguiram à fuga da família real, foi retratada, de maneira comovente, pelo bispo do Rio de Janeiro, Dom José Caetano da Silva Coutinho, retido em Lisboa pela invasão francesa (somente no final de abril de 1808, três meses depois da comitiva de D. João, o bispo conseguiu chegar ao Brasil).
Dom José Caetano – que, em 1823, seria o primeiro presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, e, depois, senador – descreve o sentimento do povo, após a partida da família real, como “a maior consternação, e desalento, que jamais se experimentou nas calamidades de Portugal”. A maior importância de seu livro é a percepção – que ele não explicita, mas é decorrente do relato – de que os maiores responsáveis pela restauração da popularidade da família real, bastante abalada após a fuga para o Brasil, foram os franceses (v. D. José Caetano da Silva Coutinho, “Memória Histórica da Invasão dos Franceses em Portugal no Ano de 1807”, Impressão Regia, Rio, 1808).
Trata-se de algo praticamente geral nas guerras napoleônicas após 1804 – e mais evidente na Rússia, Portugal e Espanha. A brutalidade das tropas – e da administração – francesas provocou revoltas populares, nas quais os antigos representantes do feudalismo (desde a Coroa portuguesa até o czar da Rússia) foram tomados como símbolos nacionais. Mesmo no caso da Espanha, em que Carlos IV, e, depois, Fernando VII – respectivamente, pai e irmão da rainha de Portugal, Carlota Joaquina – se submeteram a Bonaparte, mas foram, em seguida, substituídos por um irmão do imperador francês: a revolta do povo fez lembrar a primeira grande obra da literatura espanhola, o Poema do Meu Cid: “Deus! Para tão bom vassalo, tão mau rei!” (no original: ¡Dios, qué buen vassallo, si oviesse buen señor!).
Portanto, a marcha fúnebre, que Beethoven teria acrescentado à Sinfonia nº 3 (a “Eroica”), quando soube que Napoleão se proclamara imperador, é plenamente justificada. Talvez a história da marcha fúnebre não seja exata, mas, segundo um amigo de Beethoven, ao saber da notícia, disse o compositor: “Ele não é nada mais que um homem ordinário! Agora ele também pisará os direitos humanos para satisfazer a sua ambição; será um tirano, como todos os outros” – e rasgou a dedicatória para Napoleão, na partitura da “Eroica” (cf. o relato de seu discípulo e amigo Ferdinand Ries em Wegeler e Ries, “Biographische Notizen über Ludwig van Beethoven”, Schuster & Loeffler, Berlim/Leipzig, 2ª ed., 1906, p. 93).
LEVANTE
Coimbra revoltou-se contra os ocupantes franceses a 23 de junho de 1808. A guarnição dos invasores foi cercada e, antes de ser presa, atirou contra a multidão. Surpreendentemente, não conseguiram atingir ninguém – falou-se em “milagre”, mas, segundo um historiador contemporâneo dos acontecimentos, o pânico que acometeu os soldados impediu-os de acertar um só tiro (cf. José Acúrcio das Neves, “História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino”, Tomo III, Lisboa, 1811, p. 210).
Formado, com estudantes e professores da Universidade de Coimbra, o Batalhão Acadêmico (conhecido, na História de Portugal, como “Batalhão Acadêmico de 1808”), este foi lançado em direção à Figueira da Foz, onde, com 3.000 camponeses que se juntaram no trajeto, tomou o forte, no dia 27 de junho.
Junot decide, então, desviar para Coimbra as tropas do general Loison – um carniceiro conhecido por “Maneta” (perdera o braço esquerdo em um acidente de caça) – que ordenara os fuzilamentos e a pilhagem de Caldas da Rainha, façanha descrita pelo bispo D. José Caetano da Silva Coutinho:
“Havia mais de um mês que no Régio Hospital daquela vila se achavam quatrocentos franceses, comendo todos os mantimentos que havia de sobressalente, e consumindo as suas rendas futuras, de maneira que por muitos anos não podem prestar o costumado socorro e curativo aos pobres; e estes hóspedes não estavam tão doentes que não tivessem cometido várias desordens e distúrbios na terra, e indisposto contra si ânimos dos moradores; até que finalmente apareceram um dia sete granadeiros moços e robustos, que se julgaram mandados de propósito da Praça de Peniche a insultar as pessoas mais pacíficas que encontravam e a desatender algumas mulheres na sua própria casa.
“Numa destas casas, que fica na rua do Olival, ouviram-se altos gritos de uma mulher, que se queixava dos franceses; acudiu a vizinhança e vários cadetes e soldados do segundo Regimento do Porto, que então ali se achava aquartelado; travou-se uma rixa em que ficaram feridos alguns franceses.
“… A consequência foi aparecer dentro de poucos dias rodeada a vila das Caldas de um pé de Exército de quase seis mil homens de Infantaria, de Cavalaria, e nove peças de Artilharia. No mesmo dia em que chegaram, começou uma horrorosa pilhagem nas casas e nos campos, que não cessou em todos os seis dias que ali estiveram, e a que não escapou gado, pão, vestidos, trastes, vinho, azeite, dinheiro do rico e do pobre.
“No dia seguinte, que era um sábado, prenderam-se perto de vinte pessoas, paisanos e soldados do Porto; no domingo e na segunda-feira se inquiriram e acarearam muitas pessoas, a que assistia o Juiz de Fora da terra, António Amado, na presença do General Loison, Chefe do Exército, e da comissão mandada por Junot; e finalmente, na terça-feira pela manhã, sem mais processo nem figura de juízo, mandaram-se sair da prisão Pedro José Pedrosa, escrivão da Câmara, João de Proença, filho do Correio Mór, ambos rapazes de vinte anos, um padeiro da vila chamado Casimiro, um tenente do Regimento do Porto chamado Manuel Joaquim, um cadete, três soldados e um tambor do mesmo Regimento. Três ou quatro clérigos acompanharam estes nove desgraçados desde a cadeia até um campo que fica nos arrebaldes da vila; e este foi todo o tempo e todo o socorro espiritual que lhes foi concedido.
“Foram notificadas todas as pessoas de alguma representação da vila para assistirem; e no meio do Exército e da Artilharia, que formava os três lados duma grande praça vazia, todos os nove padecentes foram arcabuzados com poucos tiros, que ainda lhes deixaram alguns momentos de vida, para lançarem pungentes gritos de agonia e horríveis gestos de morte.
“Em todo aquele dia um terror inexplicável se apoderou dos moradores, que se fecharam em casa. Na quarta-feira seguinte, no mesmo sitio e no meio do mesmo bélico aparato, mandou-se formar o segundo Regimento do Porto, e com a maior infâmia, se lhe despiram as fardas, e se lhe tiraram as armas, lançando-se com desprezo as reais bandeiras sobre os tambores; e dissolvido o corpo, na mesma hora se dispersaram os soldados para fora da vila. Deste modo se vingaram de um Regimento que na Guerra do Rossilhão lhes fez sentir os golpes da sua bravura” (D. José Caetano da Silva Coutinho, op. cit., pp. 50-53).
Nas palavras de um escritor português da época: “Loison, mais conhecido pela alcunha de Maneta, foi sem contradição o monstro mais sanguinário que a cólera napoleana vomitou sobre Portugal” (Luís de Sequeira Oliva, “Diálogo entre as principais personagens francesas, no banquete dado a bordo da Amável por Junot, no dia 27 de Setembro de 1808”, Lisboa, 1808, 2ª ed., p. 7, nota).
RESISTÊNCIA
A notícia de que o sanguinário Loison marchava para Coimbra mobilizou toda a cidade. Foi dada ordem ao Batalhão Acadêmico para deixar Figueira da Foz e voltar à cidade.
Mas havia poucas armas, e, sobretudo, faltavam pólvora e balas. É nesse momento que José Bonifácio se destaca:
“Procurou-se salitre, fizeram-se ensaios no laboratório químico, e no dia 26 pelas dez horas da noite apareceu, com grandes aplausos, fabricada a primeira porção de pólvora; e neste trabalho se continuou noite, e dia, debaixo da inspeção do Doutor Thomé Rodrigues Sobral, lente de Química. Não se sabiam fazer cartuxos, nem havia balas; mas a essa mesma hora se mandaram buscar dois soldados portugueses convalescentes, que estavam no hospital, para se empregarem no cartuxame, e oficiais de ourives, e funileiros para fundirem balas. Igualmente foram chamados um sargento, e alguns soldados, que estavam destacados nas ferrarias de Tomar, debaixo das ordens do lente de Metalurgia, e Intendente das Minas, o Doutor José Bonifácio de Andrada e Silva, para trabalharem no cartuchame; e principiou a fazer-se metralha, para quando houvessem peças, que já se esperavam da Figueira” (cf. José Acúrcio das Neves, op. cit., pp. 224-225).
Entre as 10 horas da noite e às seis da manhã do dia 27, foram fabricados 3.000 cartuchos em Coimbra.
Porém, o país todo estava levantado – antes de qualquer intervenção externa, pois as tropas inglesas do general Wellesley (o futuro duque de Wellington) somente desembarcariam em Portugal a 1º de agosto de 1808.
Isso fez com que Junot desviasse outra vez as hordas do “Maneta”, que não chegaram a Coimbra.
ROMPIMENTO
Encerramos aqui essa breve incursão na resistência às invasões francesas – houve três, entre 1807 e 1811 – em Portugal. Basta, por último, dizer que, até a expulsão definitiva dos franceses, José Bonifácio destacou-se pela coragem e no comando militar – terminou a guerra como comandante do Batalhão Acadêmico (cf. Arthur Lamas, “Centenario de uma medalha da guerra peninsular”, O Arqueólogo Português, Volume XIII, 1908, p. 149).
A resistência aos ocupantes representava – e, efetivamente, era – uma ruptura com a nobreza, quase toda ela ajoelhada vergonhosamente diante do invasor ou asilada no Brasil. Teria, por isso, uma importância imensa na formação de José Bonifácio e de outros brasileiros que ficaram em Portugal durante a ocupação.
Mas é possível falar em “formação” a propósito de um homem que, em 1808, no levante de Coimbra, tinha 45 anos?
Essencialmente, ele já é um homem formado. No entanto, a invasão francesa colocou imediatamente para ele uma escolha: ficar em Portugal ou voltar para o Brasil – algo que, mais de uma vez, planejara.
Por que, então, ele ficou em Portugal?
Parece-nos que Octávio Tarquínio de Sousa abordou bem as motivações de José Bonifácio, quando escreveu: “Para um homem do seu feitio o abandono da terra ao invasor sem escrúpulos devia causar extrema repugnância. (…) Não parece, pois, temerário supor que ficou em Portugal porque quis, porque teve escrúpulos de figurar entre os numerosos parasitas e áulicos que acompanharam a família real portuguesa e aqui passaram anos amaldiçoando o clima, falando mal dos negros e mulatos, carpindo saudades da terra que não souberam ou não puderam defender” (cf. “História dos Fundadores do Império do Brasil”, Vol. I, ed. cit., pp. 100-101).
Pior ainda – com certeza – deveriam ser, para José Bonifácio, aqueles que se tornaram parasitas e áulicos de Bonaparte.
A resistência aos franceses tornou mais nítido, para ele, o significado daquela nobreza que sufocava Portugal. Algo disso transpareceu de forma explícita, anos depois, na sua recusa em aceitar qualquer título nobiliárquico – embora ele não tenha sido, nisso, único entre os homens da Independência: Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira também recusaram assumir títulos do que era, na opinião deles, uma simulação da nobreza metropolitana perfeitamente ridícula. E, realmente, assim era.
BAHIA
Nos estendemos sobre a questão da resistência popular – em total contraste com o agachamento da nobreza – à invasão em Portugal, porque há uma contribuição dela, em nossa opinião, inequívoca, ao lado plebeu da Revolução da Independência.
Notemos que, muito depois do fim das invasões de Napoleão, em 1816, quando o mulato baiano Francisco Gomes Brandão – conhecido na História do Brasil pelo nome que escolheu após a Independência, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma – foi estudar em Coimbra, o clima (ou, seria melhor dizer, o espírito) dos estudantes brasileiros era de mal contido inconformismo.
Especialmente Montezuma iria condensar esse espírito, naquilo que os mestres portugueses consideravam mau comportamento. Quando de sua formatura em Direito e Filosofia, no ano de 1821, o conceito da banca examinadora sobre esse estudante foi o seguinte: “Em procedimento e costumes, aprovado por 2, reprovado por 6; em mérito literário, muito bom por 1, bom por 7; em probidade, prudência e desinteresse, aprovado por 4, reprovado por 4” (v. Helio Vianna, “Vultos do Império”, CEN, 1968, p. 76).
Mesmo assim, foi diplomado. Talvez fosse um daqueles casos, referidos por Machado de Assis, na voz, vinda do além-túmulo, de Brás Cubas: “… desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, — principalmente de saudades. (…) No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso”.
Machado – que, aliás, seria autor de uma reminiscência sobre Montezuma, em seu artigo “O Velho Senado”, escrito já na época da República, em 1898 – devia saber do que estava falando: bacharéis do tipo de Brás Cubas, formados em Coimbra, existiam aos montes, no Brasil.
Mas, ao contrário de Brás Cubas, Montezuma preferiu voltar logo à Bahia, onde, em seguida, se engajou na sangrenta Guerra de Independência do Brasil.
Passou a fazer parte da redação do “Diário Constitucional”, jornal cujo dono, Francisco José Corte Real, mudaria seu sobrenome para “Corte Imperial”. Depois, Montezuma fundou “O Constitucional”, ao qual sucedeu “O Independente Constitucional”.
Vereador em Salvador, Montezuma tentou impedir a posse do general lusitano Madeira de Melo no comando militar da Bahia.
Isto aconteceu em 18 de fevereiro de 1822. No dia seguinte, os soldados portugueses de Madeira desencadearam a chacina. Ao invadir o Convento da Lapa, encontraram pela frente a abadessa, sóror Joana Angélica, assassinando-a com golpes de baioneta.
Madeira declara-se em sublevação contra o governo do príncipe regente, D. Pedro, com incentivo – e, mesmo, comemorações, como documenta Oliveira Lima – das Cortes de Lisboa.
Porém, na Bahia, as vilas de Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco, representadas por suas Câmaras, se declaram pelo governo do Rio de Janeiro. Salvador, ocupada pelas tropas lusitanas, está, a partir daí, isolada.
Montezuma escapa da capital e torna-se membro do governo provisório, estabelecido em Cachoeira. Foi na condição de representante desse governo – e, portanto, dos baianos – que ele irá, em seguida, ao Rio, onde foi recebido por D. Pedro I e José Bonifácio. Durante a Guerra da Independência – encerrada a 2 de julho de 1823 com a entrada das forças brasileiras em Salvador – Montezuma irá duas vezes ao Rio, a segunda, por terra, uma viagem que durou 74 dias por um país sem estradas, algo semelhante a uma epopeia.
A lembrança mais marcante desta viagem, para Montezuma, foi a lepra – a atual hanseníase – que afetava extensa parte da população no interior do Brasil.