CARLOS LOPES
O primeiro Censo geral realizado no Brasil, 50 anos após a Independência, registrou que “nada menos que 3.330.390 eram ‘pardos’, 919.801 eram ‘pretos’, 387.075 eram ‘caboclos’ e os brancos eram 3.778.101”. Além disso, havia 1.510.806 escravos – e os índios não foram contados nem estimados. Portanto, os brancos eram minoria (45%) entre a população não escrava – e, evidentemente, mais ainda na população total do Brasil (38%)
A trajetória de Montezuma – que, depois da Guerra da Independência, foi constituinte (exilado, com os Andradas, quando a Assembleia foi dissolvida por D. Pedro I), deputado, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, embaixador plenipotenciário em Londres, e uma das principais figuras no Senado do Império, recebendo o título de visconde de Jequitinhonha “com grandeza” (antes, no primeiro reinado, recusara o título de “barão da Cachoeira”) é uma boa introdução a um tema que aparece, em 1822, muitas vezes – sobretudo nos gritos lusitanos contra a Independência: a cor do povo brasileiro na época da separação de Portugal.
O próprio D. Pedro, ao relatar ao pai a sublevação da Divisão Auxiliadora lusitana, comandada pelo general Avilez, após o “Dia do Fico”, diz que “começaram os soldados da divisão auxiliadora a quebrarem as vidraças pelas ruas, quebrando, e apagando as luminárias com paus, e dizendo: esta cabrada leva-se a pau” (cf. “Cartas de D. Pedro, príncipe regente do Brasil, a seu pai, D. João VI, rei de Portugal 1821-1822”, Typ. Rothschild & cia, S. Paulo, 1916, carta de 23/01/1822, p. 57, grifo nosso).
“Cabra” era o termo pejorativo para os filhos de brancos com mulatas. A “cabrada”, referida pela soldadesca lusitana, era o povo brasileiro.
Porém, registram os historiadores – e sobretudo os autores que estavam presentes, no Rio de Janeiro dessa época – “a ‘cabrada’ não se atemorizou. ‘As tropas da terra, milícia e povo’ pegaram em armas na disposição de lutar. (…) Ao Campo de Santana, ponto de concentração da tropa brasileira, acorreram muitos paisanos, até padres e frades, armados ou pedindo armas. O morro do Castelo transformou-se no reduto português. Força contra força. Mas não houve combate. Avilez, na madrugada de 12, foi em pessoa ao paço propor o recolhimento às casernas das tropas de uma e outra facção e obteve do príncipe, segundo o visconde de Cairu, a resposta de que se as forças portuguesas lhe desobedecessem ‘poria a elas e a ele [Avilez] barra a fora’” (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, op. cit., vol. 2, p. 352).
Maria Graham, que esteve no Campo de Santana, escreveu que, às quatro da manhã do dia 12 de janeiro, quatro mil pessoas se concentravam lá, para enfrentar a tropa portuguesa, “não somente prontos, mas ansiosos para a ação, e, ainda que deficientes quanto à disciplina, formidáveis pelo número e pela disposição. Os portugueses de modo algum esperavam tal prontidão e decisão” (M. Graham, “Diário de uma Viagem ao Brasil – e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823”, trad. Américo Jacobina Lacombe, CEN, 1956, p. 203).
Por uma observação sobre o discurso de D. Pedro no Teatro de São João, na noite em que os portugueses começaram as depredações, pode-se tirar alguma conclusão do primeiro choque enfrentado pelas tropas de Avilez – isto é, quem resistiu primeiramente a elas. Diz Maria Graham que o então príncipe regente falou “que ele já havia dado ordens para reconduzir os soldados amotinados, que se haviam empenhado em briga com os negros, de volta a seus quartéis” (p. 202).
Aliás, sobre o tema que nos ocupa, a senhora Graham é uma excelente fonte. Por exemplo, desembarcando em Pernambuco, durante a revolta de 1821 contra o capitão-general lusitano Luís do Rego, diz ela:
“Cerca de duas milhas adiante do último posto avançado das tropas de Luís do Rego, chegamos ao primeiro posto dos patriotas, em uma casa de campo numa encosta, com armas ensarilhadas à frente, e uma espécie de guarda esfarrapada, consistindo num negro de olhar alegre, com uma espingarda de caça, um brasileiro com um bacamarte, e dois ou três sujeitos de cor dúbia com cacetes, espadas, pistolas, etc., que nos disseram haver ali um oficial” (p. 126).
[NOTA: A autora, como outros naquela época, usa a palavra “brasileiro” como equivalente a “branco nascido no Brasil”. Embora, mesmo então, esse uso, que se refere a um país em mudança, não é fixo ou único.]
A descrição que ela faz de Pernambuco, por exemplo, é bastante, digamos, colorida:
“Fiquei impressionada com a grande preponderância da população negra. Pelo último censo a população de Pernambuco, incluindo Olinda, chegava a setenta mil, dos quais não mais de um terço era de brancos. Os demais são negros ou mulatos. Os mulatos, em geral, são mais ativos, mais industriosos e mais espertos que qualquer das outras classes. Acumularam grandes fortunas em muitos casos, e estão longe de ficar para traz na campanha pela independência do Brasil” (p. 137) .
Mais adiante, visitando uma fazenda próxima ao Rio de Janeiro, ela diz:
“Saí antes do almoço em companhia de um carpinteiro negro como guia. Este homem, de alguma instrução, aprendeu seu ofício de modo a ser não só um bom carpinteiro, mas também um razoável marceneiro. Em outros assuntos revela uma rapidez de percepção que não dá fundamento à pretendida inferioridade da inteligência negra. Fiquei muito grata às observações que ele fez sobre muitas coisas que achei novidades, e à perfeita compreensão que parecia ter de todos os trabalhos de campo.
“(…) Contou-me [o dono da fazenda] que os negros crioulos [isto é, nascidos no Brasil] e mulatos são muito superiores em diligência aos portugueses e brasileiros, os quais, por causas não difíceis de serem imaginadas, são, pela maior parte, indolentes e ignorantes. Os negros e mulatos têm fortes motivos para esforçar-se em todos os sentidos e serem, por consequência, bem sucedidos naquilo que empreendem. São os melhores artífices e artistas. A orquestra da ópera é composta, no mínimo, de um terço de mulatos. Toda pintura decorativa, obras de talha e embutidos são feitos por eles; enfim, excelem em todas as artes de engenho mecânico” (p. 220).
CONCEPÇÃO
Parece bem estabelecido que a população – evidentemente, a população não escrava – apresentava, já em 1822, um elevado componente mestiço.
O primeiro Censo geral realizado no Brasil, 50 anos após a Independência, registrou que “nada menos que 3.330.390 eram ‘pardos’, 919.801 eram ‘pretos’, 387.075 eram ‘caboclos’ e os brancos eram 3.778.101”. Além disso, havia 1.510.806 escravos – e os índios não foram contados nem estimados (cf. nosso trabalho “A revolta dos escravos e o fim do Império”, HP 12/08/2016 a 07/10/2016).
Portanto, os brancos eram minoria (45%) entre a população não escrava – e, evidentemente, mais ainda na população total do Brasil (38%).
Não sabemos, com precisão, como era a distribuição da população 50 anos antes – mas a tendência, que esses números apontam, era, seguramente, a mesma.
Esta realidade não podia deixar de aparecer no pensamento dos homens da Independência. O principal deles escreveu:
“Nós não reconhecemos diferenças nem distinções na família humana: como brasileiros serão tratados por nós o china e o luso, o egípcio e o haitiano, o adorador do sol e o de Mafoma” (cf. José Bonifácio, in Octávio Tarquínio de Sousa, “O Pensamento Vivo de José Bonifácio”, Liv. Martins, 1944, p. 115).
José Bonifácio várias vezes abordou a questão da mestiçagem do povo brasileiro em seus escritos. E seu pensamento nem sempre foi o mesmo, porém, há uma constante: a recusa à concepção de inferioridade dos não-brancos. Pelo contrário, para ele a vida social – e especialmente as leis, que são uma expressão da vida social – decide tudo. Por exemplo, ele escreve:
“… a mistura de branco e preto é mais ativa que a mistura de brancos e índios”
Porém, também escreve, sobre os índios, em uma nota, em parte, corroída pelo tempo:
“… homens sem capacidade, sem indústria, estúpidos e demais supersticiosos, mas as ideias de honra e as necessidades factícias os estimulam a trabalhar e adquirir: mudam e parecem outros homens, casam e geram filhos com mais capacidade e delicadeza que seus pais” (cit. em uma interessante dissertação acadêmica, que utilizamos bastante nesta parte de nosso trabalho: Letícia de Oliveira Raymundo, “Legislar, amalgamar, civilizar: A mestiçagem em José Bonifácio de Andrada e Silva (1783-1823)”, FFLCH/USP, 2011, p. 40).
A superioridade da mestiçagem sobre supostas raças puras (isto é, os brancos europeus), numa época em que, apenas algumas décadas antes, nada menos que Voltaire, uma das principais luzes do Iluminismo, escrevera sobre a inferioridade dos negros – e José Bonifácio sabia disso, pois era leitor de Voltaire – é sua forma de reação:
“a mistura de branco e preto é mais ativa que a mistura de brancos e índios”
Ou, maldizendo aqueles que “folgam ser padres, rábulas, escrivães, porque são modos de vida que não carecem de trabalho aturado, e de boa conduta – ser lavrador e negociante exigiria deles atividade e mais economia, que detestam”, diz: “Os ofícios são para negros e mulatos, ou para os pobres de Portugal, que chegam de novo e ainda não estão afeitos à preguiça e orgulho bestial”.
Por fim:
“o mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora; pois reúne a vivacidade impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e sensibilidade do europeu”
UNIVERSAL
É muito interessante – ou seja, é muito importante – o resumo que a autora citada acima faz do pensamento de José Bonifácio sobre a questão étnica:
“Suas preocupações estiveram voltadas especificamente para a população do Brasil, onde aludir à ‘raça’ implicava, sobretudo, pensar em diferentes condições sociais. Extrapolando a dimensão biológica, Bonifácio entendeu a mestiçagem (referida em seus escritos como mistura ou amalgamação) como um instrumento civilizatório, capaz de transmitir hábitos e valores tidos como universais. (…) Suas propostas tiveram como foco principal as camadas da população vistas como ‘inferiores’, ou seja, índios, negros, mulatos, mestiços e brancos pobres. Por meio do contato cotidiano e dos casamentos mistos, José Bonifácio esperava torná-los mais ‘ativos’ e, paralelamente, promover sua inclusão social através do trabalho, suplantando a necessidade da mão-de-obra escrava e, ao mesmo tempo, propiciando a ‘homogeneidade’ social.
“Apesar de favorecida pela mestiçagem, a qualidade ‘ativa’ não era inata a uma ou a outra ‘raça’ (…). Além disso, no ideário andradino, a questão do ‘branqueamento’ não se fazia presente. Ali, a mistura da população não visava atingir determinado tom de pele. Tampouco a cultura era pensada em termos racializados. Ao eleger as virtudes que deveriam ser difundidas entre os habitantes do Brasil, Bonifácio não aludia a uma cultura ‘branca’, mas à cultura que, como dito, entendia ser universal” (Letícia de Oliveira Raymundo, op. cit., p. 160, grifos nossos).
REVOLTA
Nas Cortes de Lisboa – e, em geral, entre os adversários da Independência – a ideia de fundo (e, depois, martelada abertamente) era a suposta inferioridade do Brasil em relação a Portugal (por consequência, em relação aos países europeus). Esta era a justificativa para a recolonização do Brasil – e não podia ser outra.
Antonio Carlos de Andrada – já na Inglaterra, depois de sair de Portugal para não jurar a constituição lusitana – ao redigir o “Protesto dos Deputados Paulistas”, refere-se a esse mote da bancada lusitana, que, diz, as medidas das Cortes de Lisboa pretendiam tornar realidade (cf. Correio Braziliense, vol. XXIX, nº 174, p. 533; o “protesto” é datado de 20/10/1822).
Mas, onde se podia localizar tal inferioridade, se o Brasil era maior, mais populoso, no geral tornara-se mais desenvolvido que Portugal, e, inclusive, era a terra dos indivíduos de maior destaque no Reino?
Um trecho da obra clássica de nossa historiografia que examinou a participação dos brasileiros nas Cortes de Lisboa, publicada por Gomes de Carvalho em 1912, pode esclarecer bastante de que inferioridade se falava.
Ao responder a um discurso, aliás, bastante moderado, de um deputado brasileiro, o deputado português José Joaquim Ferreira de Moura, uma das principais figuras das Cortes e da Revolução do Porto – um dos cinco membros da Junta de governo que tomou o poder em 1820 -, ao defender o envio de tropas da metrópole para submeter o Brasil, falou “com desdém da população do Brasil, inclinada à anarquia em consequência de a constituírem ‘negros, mulatos, brancos crioulos e brancos europeus’”.
E Moura continuou:
“A heterogeneidade destas castas põe paixões diversas em efervescência, e esta agitação não pode ser contida nos seus respectivos deveres senão pela força, e a força indígena não é capaz de os conter: é sim antes capaz de promover as mesmas desavenças porque se compõe dos mesmos elementos” (cf. Manuel Emílio Gomes de Carvalho, “Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821”, Edições do Senado Federal, 2003, pp. 226-227).
O comentário de Gomes de Carvalho é, até hoje, pertinente:
“Era difícil a esse liberal ardente, que pregava sem cessar o direito dos povos de se governarem a seu gosto, conciliar a doutrina com a defesa de um ato que pressupunha o desconhecimento formal daquele direito. Esfalfou-se por isso em explicar que aprovava a expedição, não por ser ele contrário à independência, mas porque esta contrariava a opinião dominante em além-mar [ou seja, no Brasil].
“Podia-se-lhe responder que não havia necessidade de batalhões, e batalhões europeus, para reduzir semelhante minoria; mas Araújo Lima [o futuro marquês de Olinda] teve uma réplica fulminante. O respeito da vontade geral da América, ponderou, que persuadia o brilhante regenerador a impugnar a facção separatista, devia agora pô-lo ao lado dos brasileiros; porquanto se havia em além-mar um sentimento unânime e formulado com nitidez, era a aversão aos regimentos da metrópole. Deles todos se queixavam, Pernambuco e Rio repeliram-nos com as armas; e no entanto qual era a atitude do Moura? Promover e animar essas expedições” (M. E. Gomes de Carvalho, op. cit., 226-227).
Ressaltemos outra vez: essa era a opinião de um “regenerador” português do grupo mais extremista – o que correspondia, no Brasil da época, a um “liberal exaltado”. Se a então “esquerda” lusitana assim pensava, não é difícil concluir o que pensava a “direita”.
Frequentemente os deputados portugueses levantaram o Haiti – não o Haiti real, mas a versão paranoica-europeia dos acontecimentos que, entre 1794 e 1804, levaram à vitória da primeira revolução de independência das Américas – como suposto exemplo do que aconteceria no Brasil, se fosse consumada a Independência. O que provocou a réplica de Antonio Carlos:
“… clamam uns nobres preopinantes, e tem-se neste recinto aturdido a todos com a repetição da mesma linguagem: é para guardar os brasileiros contra os negros que se lhes mandam os batalhões não pedidos, antes detestados. Assombrosa audácia! Terrível zombaria acrescentada à mais escandalosa opressão! Tão ignorantes nos acreditam que imaginam recebemos como obséquio insultos e ofensas?! (…) Até quando há de continuar o vergonhoso comércio de falsidades e enganos, que pródigas entornam línguas de mel, ao mesmo tempo em que o coração está ensopado de mais refinado fel? Declare-se enfim a guerra abertamente: deputados haverá, e eu sou um deles, que preferirão a manejar inutilmente a imbele língua o lançar-se nas fileiras dos seus irmãos, e morrer nelas repulsando a injusta agressão de qualquer parte que ela venha” (Sessão de 22 de julho de 1822).