CARLOS LOPES
A disposição primeira dos deputados brasileiros não era pela separação do Brasil de Portugal. Mesmo aqueles que tinham participado de levantes republicanos contra a Coroa
Nas Cortes de Lisboa – a Constituinte originária da Revolução do Porto, também chamada “Soberano Congresso” – o ponto de vista lusitano pode ser resumido, em geral, a que a Independência do Brasil era impossível.
Não são apenas as medidas tomadas pelas Cortes que mostram que o absurdo, em termos ideológicos, pode predominar – e, com efeito, predominou. Um dos principais deputados portugueses, Borges Carneiro – um dos líderes do levante de 1820 e um dos autores da Constituição que saiu das Cortes – disse, em discurso no plenário:
“O partido do príncipe [D. Pedro] não tem importância alguma; mandem-se [para o Brasil] militares e almirantes não afeiçoados ao paço, e com eles uma alçada para o exercício da Justiça, que se restaurará prontamente o respeito aos poderes públicos de Portugal.”
Dos deputados portugueses, Borges Carneiro é considerado até hoje – e com razão – o mais sensível às reivindicações brasileiras. Pode-se imaginar os outros.
Tais afirmações não eram iniciais nas Cortes de Lisboa, mas “diziam-se essas coisas quando já haviam soado no Congresso informações oficiais do entusiasmo com que os povos [do Brasil] acolhiam as resoluções do governo do Rio” (cf. Gomes de Carvalho, “Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821”, ed. cit., p. 309).
Até homens moderados, como o deputado brasileiro Villela Barbosa – o futuro marquês de Paranaguá, ministro várias vezes e senador no reinado de Pedro II – foram, diante da atitude portuguesa, obrigados a radicalizar a própria posição. Por exemplo:
“Os povos não são rebanhos de ovelhas, cuja propriedade pertença a alguém. O Brasil tem tão livre a sua vontade e tanto direito de a manifestar como tem e teve Portugal no famoso dia 24 [de agosto de 1820: a Revolução do Porto]” (Villela Barbosa, sessão de 27/08/1822).
Se assim falava Villela Barbosa, pode-se intuir como se expressavam deputados brasileiros com a posição política de Cipriano Barata ou do padre Alencar – pai do romancista José de Alencar. Dizia, nas Cortes, Alencar:
“Não entrarei em minuciosa indagação dos artigos constitucionais prejudiciais ao Brasil. (…) falarei tão somente de um artigo constitucional, que, sendo prejudicial ao Brasil, está além disso reprovado e rejeitado absolutamente pelos brasileiros, isto é, que o Poder Executivo do Brasil nunca recaia na pessoa do herdeiro da Coroa e que Sua Alteza Real regresse para Portugal.
“Ora, por que fatalidade se faria este artigo ao mesmo tempo que todo o Brasil obrava em sentido contrário, assinando Sua Alteza regente defensor perpétuo do Brasil?
“Por que fatalidade o soberano Congresso, cujas deliberações não devem chocar diretamente com a vontade dos povos, havia de sancionar um artigo contrário à vontade expressa e geral de uma tão preponderante parte da nação?
“E se o soberano Congresso assim quis olhar, deverão os deputados brasileiros subscrever o ato da reprovação e indignação dos seus constituintes?
“É porventura ainda fato duvidoso que os brasileiros não querem que o príncipe venha para Portugal?
“Há alguma porção do Brasil que se não tenha declarado a favor dele, se excetuarmos o Pará e o governo do Maranhão, mas não o povo do Maranhão, como já ontem disse?
“A mesma Bahia, apesar de subjugada pelas armas europeias, não tem proclamado o príncipe em todas as vilas do Recôncavo?
“Pois então, como ainda se duvida da vontade geral do Brasil?
“E à vista disso devem os deputados brasileiros assinar a Constituição obrando expressamente contra a vontade dos seus constituintes?”
REVOLUÇÃO
Notemos que a disposição primeira dos deputados brasileiros não era pela separação do Brasil de Portugal. Mesmo aqueles que tinham participado de levantes republicanos contra a Coroa, como Cipriano Barata:
“O Brasil não se quer separar de Portugal, desde que os seus deputados aqui chegaram tem procurado a união: eu mesmo tenho falado sempre com a maior sinceridade e entusiasmo; mas o Congresso é incrédulo; pois eu afirmo que Portugal se não há de separar do Brasil, porque o Brasil não quer; o Brasil há de lançar-lhe arpéus com que o há de unir e prender a si; e ainda haverá quem diga que o Brasil aspira à desunião?”
Ou o deputado Antonio Carlos de Andrada, em seu primeiro discurso nas Cortes:
“A respeito de se dizer que os povos, apesar de gozarem os mesmos direitos, não hão de ter todos as mesmas comodidades, digo que isto, se assim fosse, a nossa união não duraria um mês. Os povos do Brasil são tão portugueses como os povos de Portugal e por isso hão de ter aqui iguais direitos. Enquanto a força dura, dura a obrigação de obedecer. A força de Portugal há de durar muito pouco, e cada dia há de ser menor, uma vez que se não adotem medidas profícuas e os brasileiros não tenham iguais comodidades” (sessão de 13/02/1822).
Essa era a disposição de dois deputados que estavam entre os maiores representantes do nacionalismo brasileiro de então. Somente para ressaltar o sentido em que evoluiu a luta dentro das Cortes de Lisboa, lembremos que Antonio Carlos, poucos meses depois, respondendo aos insultos assacados contra os brasileiros, dirá, da mesma tribuna: “Quando fala um deputado brasileiro, cala a canalha portuguesa” (cf. Casimiro Neto, “A Construção da Democracia: Síntese histórica dos grandes momentos da Câmara dos Deputados, das Assembleias Nacionais Constituintes e do Congresso Nacional”, Câmara, 2003, p. 63).
Enquanto isso, já em março de 1821, ao examinar os debates nas Cortes, escreveu Hipólito da Costa, no seu “Correio Brasiliense”, em artigo intitulado “Revolução no Brasil”:
“Não há produção de Portugal que o Brasil não possa comprar com seu ouro a melhor mercado, ou trocar por outras produções suas em países estrangeiros. Mas Portugal tanto precisa do Brasil, que o deputado das Cortes Fernandes Tomás, homem judicioso, e que se instruiu a fundo nesta matéria, foi obrigado a confessar no seu relatório às Cortes, que as exportações de Portugal para o Brasil estavam longe de contrabalançar o valor dos gêneros recebidos daquele país.”
[NOTA: Fernandes Tomás era o principal deputado português nas Cortes, maior líder da Revolução do Porto e membro da Junta que tomou o poder em 1820. Diz o principal historiador dessa revolução: “A primeira revolução liberal portuguesa tem a sua verdadeira personificação em Fernandes Tomás. O marquês de Pombal com a sua energia e vasta inteligência representa a revolução das ideias contra o passado dos jesuítas, da inquisição e dos frades; Manoel Fernandes Tomás representa a última palavra da grande obra pombalina, ou a revolução política” (cf. José D’Arriaga, “História da Revolução Portuguesa de 1820”, vol. 2, Portuense/Lopes & Cia., Porto, 1887).]
Hipólito da Costa estava exilado em Londres desde 1805, após escapar dos cárceres da Inquisição portuguesa, em que permanecera três anos por ordem de Pina Manique, o brutal chefe de polícia de Dª Maria I, a Louca, por ser maçom.
Em “Revolução no Brasil”, escrito um ano e meio antes da Independência – quando, mesmo no Brasil, permanecia o entusiasmo com a Revolução Liberal do Porto – Hipólito aponta para as injustiças contra a sua terra natal:
“Os procedimentos em Portugal, pelo que respeita o Brasil, têm até aqui levado uma direção mui errada; e até contraditória, que nos parece tendente a causar a separação daqueles dous Estados.
“… quando se promulgou em Portugal o regulamento para a eleição dos Deputados de Cortes, copiado da Constituição Espanhola, excluíram-se todos os artigos que diziam respeito aos domínios ultramarinos, dizendo-se que não tinham aplicação.
“Por que não tinham aplicação? (…) se o povo de Portugal assenta que como povo tem o direito de escolher para si a Constituição que quiser, e não a que outrem lhe imponha, seguramente deve convir que não tem direito de ir impor essa constituição, que fizer, ao povo do Brasil, que nela não teve parte.
“E que maior causa de divisão e discórdia se pode apresentar a duas porções de uma monarquia, do que tentar uma delas ditar leis constitucionais, sem primeiro buscar de ouvir o voto da outra?
“Um dos deputados das Cortes, que nelas tem mostrado mais justas ideias de política, propôs que se admitisse certa representação nominal, por meio de substitutos aos deputados das províncias ultramarinas. Sem entrar no escrupuloso exame desta proposição, nem de seus resultados práticos, podemos dizer que a mera adoção deste projeto mostraria o desejo das Cortes de reunir com Portugal, no sistema constitucional, as outras partes da Monarquia. Mas esta proposta encontrou mui geral oposição, e por motivos evidentemente especiosos; o que não pode deixar de produzir no Brasil o correspondente efeito.
“… Se, por outra parte, (…) os deputados que a isto se opuseram desejam a união política dos dous Reinos, aparecerá como inexcusável enfatuação tratar de bagatela todo o Reino do Brasil, superior ao de Portugal em extensão de território, em população, em riquezas, e em recursos de toda a qualidade.
“… Na sessão das Cortes em que tantos membros foram de parecer que não convinha procurar os deputados do Brasil, geralmente se admitiu que se chamassem deputados das Ilhas; ora, as razões que se expendiram contra os do Brasil, eram exatamente aplicáveis às Ilhas, logo há razão para supor que existem outros motivos, que se não alegaram.
“… além da linguagem dos Deputados há outras circunstâncias, como dissemos, concorrentes, que indicam desejos de não ter o Brasil unido com Portugal; e daremos um exemplo.
“O Edital da Junta do Comércio é um documento assaz notável, neste sentido. Proíbe a saída de marinheiros que não sejam os necessários à tripulação dos navios, para impedir a emigração para o Brasil.
“Primeiramente, mal vai ao povo na sua terra, se é preciso proibir-se-lhe que saiam dela; porque só a má vivenda pode obrigar os homens a deixar o seu país, em tal número, que precise isso impedir-se por medidas do Governo.
“Depois, quando se trata de emigração, isto se entende da saída da gente para um país estrangeiro: ora, se se considera o Brasil como parte de Portugal, a palavra emigração, e a proibição desta, são mui pouco aplicáveis.
“Se é reino unido, a passagem da gente de umas províncias para outras não pode chamar-se emigração; e a prisão dos indivíduos em uma província, a respeito de outra, mostra uma espécie de servidão, que mui mal se compadece com as presentes ideias de liberdade em Portugal.
“… não é possível que todos os povos do Brasil fechem os olhos ao abatimento a que se submetem, aceitando uma Constituição feita por quem os não quis consultar; e tornando assim o Brasil a retrogradar para o estado de colônia de Portugal, quando era já Reino, considerado igual em direitos, por concessão de seu Rei comum.
“… se o Brasil tem de ser administrado por leis feitas pelas Cortes de Portugal, sem os povos do Brasil serem nisso ouvidos, ficarão reduzidos a mera colônia.”
O fecho desse artigo é algo, até hoje, modelar – pela sua lucidez política e ao remeter o fundo da questão aos fatores econômicos:
“Ora, Portugal nem tem, nem pode ter, sequer o pão, que lhe é necessário para seu sustento; o Brasil, abundante em todas as produções necessárias, só precisa de que se lhe não impeça a indústria; a separação, portanto, dos dous Reinos, que os sentimentos das Cortes, em oposição ao projeto de procurar deputados do Ultramar, dão lugar para recear, não pode deixar de ser mui nociva a Portugal; e é em respeito a este, que a lamentamos” (v. Correio Braziliense, volume XXVI, nº 154, março/1821, pp. 339-345, grifos nossos).
CHEGADA
Afinal, foi admitida a representação brasileira nas Cortes de Lisboa, embora, com os deputados de Portugal em esmagadora maioria. Nas palavras de Cipriano Barata, nas Cortes: “Mas que sucesso pode ter o meu discurso, quando os ilustres membros são mais de cem, e nós, brasileiros, trinta ou quarenta, que, à exceção de poucos, os mais são tais e quais e nada valem” (Cipriano referia-se, nesta última parte, aos deputados que, embora nascidos no Brasil, oscilavam seus votos, às vezes em proveito da posição lusitana).
Ao todo, tomaram posse, em várias levas, 48 deputados brasileiros, um deles falecido logo após a posse (o bispo Dom José Joaquim de Azeredo Coutinho, representante do Rio de Janeiro). Não foram poucos os deputados que resolveram ficar no Brasil para participar do movimento da Independência, ao invés de ir a Lisboa – inclusive todos aqueles da província que elegera maior número de deputados: Minas Gerais.
Os primeiros deputados brasileiros que chegaram a Lisboa foram os seis representantes de Pernambuco, quase todos revolucionários de 1817 ou simpatizantes daquela revolução. Um deles era o padre Muniz Tavares, companheiro de Antonio Carlos de Andrada na prisão, que escreveria a principal obra sobre aquele acontecimento.
O deputado mais jovem da bancada pernambucana, com 28 anos, era Pedro de Araújo Lima, que seria regente após a abdicação de D. Pedro I, ministro e presidente do conselho de ministros no 2º Império – e seria mais lembrado pelo título que recebeu em 1854: marquês de Olinda.
Nessa época, 1821, talvez pela juventude, Araújo Lima ainda não era, pelo menos não definitivamente, aquele “espírito grave e profundamente conservador, (…) que será durante quarenta e nove anos de vida pública” (v. Gomes de Carvalho, op. cit., p. 93).
Os deputados da Bahia – inclusive Cipriano Barata, o mais velho, notável e famoso de todos, já com 60 anos – e de Alagoas só em meados de dezembro de 1821 desembarcaram em Lisboa.
Somente em janeiro de 1822 chegaram os primeiros deputados paulistas – Antonio Carlos, o padre Feijó e Vergueiro (que, nascido em Portugal, residia no Brasil desde 1803; depois da Independência, escolhendo a nacionalidade brasileira, foi senador do Império).
UM HOMEM
O primeiro deputado brasileiro a perceber que estava diante de uma tentativa de recolonização do Brasil foi, justamente, Cipriano Barata.
Dois dias após a sua posse como deputado às Cortes de Lisboa, na sessão de 17 de dezembro de 1821, Cipriano propôs o adiamento de qualquer discussão sobre o Brasil até que toda a bancada brasileira estivesse em Portugal.
A proposta significava apenas, como nota Gomes de Carvalho, o respeito ao artigo 21 das Bases da Constituição, aprovadas pelas Cortes em março de 1821 – e até juradas pelo rei.
No entanto, isso provocou tal agitação entre os deputados portugueses, que confirmou o sentimento de Cipriano Barata sobre a tentativa de recolonização. Mas era algo novo, ainda, esse sentimento. Nem a bancada brasileira já presente nas Cortes – com exceção do deputado Borges de Barros, também da Bahia – apoiou a proposta de Cipriano, que a retirou.
Porém, com um incidente que provocou tremenda algazarra nas Cortes, Cipriano Barata marcou o limite da tolerância brasileira. Não muito surpreendentemente, o incidente foi com um deputado brasileiro que favorecia Portugal, e não com um deputado português.
Depois de um debate sobre a ocupação de Salvador pelo general lusitano Madeira (ver a décima parte desta série de artigos), Cipriano brigou e jogou escada abaixo um deputado de nome Pinto da França. A descrição do episódio, por Gomes de Carvalho, tem interesse para o nosso tema:
“Barata, o idealista Barata, a quem leis sem espírito de justiça não passavam de abuso de poder, e não deviam ser respeitadas, explodiu acerbamente contra o colega. (…) A comissão de polícia e a comissão de regimento interno pronunciaram-se severamente contra o férvido ancião, propondo a última a sua exclusão da assembleia até que a justiça ordinária julgasse o crime. Lino Coutinho e Antônio Carlos impugnavam o parecer por aplicar pena sem devassa e prevenir, por conseguinte, o ânimo dos juízes”.
Pinto da França, que era militar de profissão (já era general no exército português), tinha 10 anos menos que Cipriano Barata. Este, além disso, era um homem de altura tão pequena, que ele mesmo se dizia “breve de corpo e resoluto de espírito” – o que era verdade.
Talvez por isso, dias depois, Pinto da França voltou ao plenário, algo contundido, inclusive no rosto, desistindo da ideia – que assustara Feijó – de duelar com o adversário.