CARLOS LOPES
José Bonifácio: “Quando o espírito mercantil predomina, quando se avalia cada ação como cada mercancia, vendem-se os talentos e virtudes e todos são mercadores e ninguém é homem”
Muito se escreveu sobre a relação entre o Estado monárquico no Brasil e a preservação da unidade nacional.
Em muitos textos históricos, aborda-se esta questão como se a monarquia fosse a única forma de manter a unidade de um país tão grande – e tão mais heterogêneo do que hoje, a julgar pelas observações de Saint-Hilaire ao viajar por nosso território, entre 1816 e 1822.
Do ponto de vista teórico, a tese é, no mínimo, duvidosa. Para os homens da Independência, nunca foi um problema teórico, pelo menos desde o último trimestre de 1821. A unidade do Brasil era uma questão de política atual – isto é, da época, pois, desde 29 de setembro do ano anterior à Independência, quando as Cortes decretaram que cada província (as antigas capitanias) do Brasil deveria obedecer diretamente a Portugal, com a dissolução da Regência – o governo de D. Pedro, no Rio de Janeiro – a unidade política do Brasil deixara, formalmente, de existir.
Por essa política de desmembramento do Brasil, o governo do Rio, pelos decretos de 29 de setembro (decretos nº 124 e nº 125), seria substituído por “juntas” em cada província – “juntas”, aliás, sem poder efetivo, já que não teriam a direção militar nem a administração financeira ou judiciária, que dependeriam de Lisboa.
Nas Cortes, foi um deputado baiano, Lino Coutinho, participante da “junta” que desligara a Bahia do governo do Rio, em fevereiro de 1821, que fez a condenação mais eloquente à fragmentação do Brasil.
Ao chegar a Lisboa, Coutinho ainda era partidário das “juntas” em cada província. Porém, sua opinião mudou, no correr dos debates. Na sessão de 3 de julho de 1822, ao repelir a proposta de criação de “agentes d’el-rei” em cada província do Brasil, disse ele:
“Longe, longe de nós semelhante ideia desorganizadora da unidade brasiliense. O Brasil é um reino, bem como Portugal; ele é indivisível, e desgraçados daqueles que tentam contra a sua categoria e grandeza, desmembrando as suas províncias para aniquilar o que tão liberalmente lhe foi concedido pelo imortal D. João VI, baseado em seu desenvolvimento político e em suas riquezas naturais. Jamais como deputado do Brasil consentirei em tão feio atentado: o nosso país há de reviver ou morrer com dignidade de um reino único e indivisível” (grifo nosso).
Lino Coutinho, como demonstraria sua carreira posterior (ou até mesmo pela maneira de mencionar D. João VI no trecho acima), estava muito longe de ser um radical ou progressista, do ponto de vista social. Entretanto, a questão da unidade nacional foi suficiente – afinal, não era qualquer questão – para fazê-lo recusar a Constituição portuguesa que saiu das Cortes.
Ele esteve entre os deputados brasileiros que preferiram sair de Portugal do que jurar essa Constituição. Os outros foram Antônio Carlos de Andrada, Cipriano Barata, o padre Diogo Antonio Feijó, Silva Bueno, Costa Aguiar de Andrada e o padre Francisco Agostinho Gomes.
Embora esse específico ato de recusa, sobretudo pelo manifesto lançado por esses deputados brasileiros ao chegar em Falmouth, Inglaterra, tenha sido importante para o movimento da Independência, acrescentaremos que, na bancada do Brasil, a recusa a jurar a Constituição das Cortes foi mais ampla: 29 deputados recusaram-se a jurar e 18 juraram essa Constituição.
É verdade, também, que o significado desse juramento tornou-se nulo em pouco tempo – homens como Pedro de Araújo Lima e Villela Barbosa, que assumiriam importantes funções após a Independência, estavam entre os que juraram.
Mesmo assim, o ato de Antonio Carlos, Cipriano Barata e seus companheiros, ao sair de Portugal, teve, na época, como registrou Hipólito no “Correio Brasiliense”, importância política. Diz o manifesto de Falmouth:
“Desde que tomaram assento no Congresso de Portugal, lutando pela defesa dos direitos e interesses de sua Pátria, do Brasil e da Nação em geral, infelizmente [os que assinam o manifesto] viram malogrados todos os seus esforços, e até avaliados estes como outros tantos atentados contra a mesma Nação.
“O desprezo e as injúrias andaram sempre de companhia à rejeição de suas propostas; e depois de verem com dor de seus corações todos os dias meditar-se, e por-se em execução, planos hostis contra o Brasil, apesar de suas repetidas e vivas reclamações, se lhes ofereceu para assinar e jurar a Constituição, aonde se encontram tantos artigos humilhantes e injuriosos ao seu país, e talvez nem um só que possa, ainda de um modo indireto, concorrer para sua futura, posto que remota prosperidade.
“Os abaixo-assinados não podiam, sem merecer a execração dos seus concidadãos, sem ser atormentados dos eternos aguilhões da consciência, sem sujeitar-se à maldição da posteridade, subscrever, e muito menos jurar, uma tal Constituição, feita como de propósito para exaltar e engrandecer Portugal à custa do Brasil, recusaram portanto fazê-lo” (Correio Brasiliense, vol. XXIX, nº 174, novembro/1822, pp. 530-532).
RAZÃO
Já se disse que, em 1821, na vaga da Revolução Portuguesa (24 de agosto de 1820), todos, no Brasil, eram – ou se diziam – liberais. O que incluía até mesmo o príncipe herdeiro, D. Pedro – que confirmaria seu credo liberal até a morte, quando, depois de abdicar ao trono brasileiro, desembarcou em Portugal, rompeu o cerco na cidade do Porto e derrotou as tropas de seu irmão, o absolutista D. Miguel.
Mas o que era esse liberalismo?
Sua essência estava, então, no espírito anti-absolutista – basicamente na ideia de que os homens deviam ser regidos por leis, a começar por uma Constituição, e não pelo arbítrio de outros homens. Essa ideia, expressa por uma série de personalidades políticas, tinha como seu conteúdo a recusa a se submeter à dominação feudal, que aparecia sempre como sujeição pessoal.
Mas aqui temos uma complicação: uma vez estabelecido um “regime de leis”, foi possível aos liberais, no Brasil, conviverem, durante 66 anos, com a escravidão. No Brasil, inclusive, seria correto dizer que os conservadores surgiram como dissidência dos liberais, a começar pelo seu primeiro chefe, Bernardo Pereira de Vasconcelos.
É interessante – aliás, é reveladoramente essencial – que José Bonifácio, sempre acusado de não ser um “liberal”, de não ser um “democrata” (como se liberal e democrata fossem sinônimos), fosse muito mais oposto à escravatura do que seus adversários, supostamente mais à esquerda.
Nele, predominava a concepção, que se revelará inteiramente justa na estagnação econômica ao fim do segundo reinado, de que “não pode haver indústria segura e verdadeira, nem agricultura florescente e grande com braços de escravos viciosos e boçais. Mostra a experiência e a razão que a riqueza só reina onde impera a liberdade e a justiça, e não onde mora o cativeiro e a corrupção” (cf. José Bonifácio, “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura”, 1823).
Para ele, os rapapés supostamente liberais eram uma farsa, pois, “como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos?” (idem).
Nessa rejeição ao formalismo liberal estava, em José Bonifácio, justamente, a sua essência como verdadeiro democrata. Ele desprezava as aparências – que eram chamadas de “liberalismo” – para ir à essência: a consideração de todos os seres humanos como membros da mesma espécie, o que significava, no Brasil, como premissa, a abolição da escravatura.
Era ele, a propósito, um grande conhecedor da literatura econômica de seu tempo, inclusive daquela que era fundamento do liberalismo – e que tanto fascinava, por exemplo, o visconde de Cairu (a obra de Adam Smith, “A Riqueza das Nações”, fora publicada em 1776, portanto, quase 50 anos antes da Revolução da Independência).
Um dos apontamentos de José Bonifácio é bem uma introdução ao seu pensamento sobre o liberalismo econômico:
“Quando o espírito mercantil predomina, quando se avalia cada ação como cada mercancia, vendem-se os talentos e virtudes e todos são mercadores e ninguém é homem.”
A LUTA
Em vários momentos de sua monumental – e imprescindível – “História dos Fundadores do Império do Brasil”, Octavio Tarquínio de Sousa associa a queda de José Bonifácio do Ministério de D. Pedro I à ascensão – ou à pressão – dos senhores e traficantes de escravos. Por exemplo:
“Enquanto todos ou quase todos os dirigentes do momento, impressionados de preferência pelo lado meramente exterior dos acontecimentos, julgavam possível e natural a criação de um Império constitucional sem adotar nenhuma medida contra a escravidão, José Bonifácio para logo se convenceu de que essa era a grande questão a enfrentar. Todos os males econômicos, sociais, políticos e morais do regime do trabalho servil, expôs e condenou na sua notável Representação à Assembléia Constituinte sobre a escravatura. Apeado do poder em grande parte por esposar essas ideias, exilado, proscrito da vida pública, predominariam os interesses dos senhores de engenho e fazendeiros empenhados na exploração latifundiária da terra, tendo a seu serviço os traficantes de escravos, ricos comerciantes portugueses, de ganância implacável” (Octavio Tarquínio de Sousa, op. cit., vol. IX, p. 25, grifo nosso).
Ou, mais adiante, no mesmo volume:
“Crises políticas da maior gravidade acarretaram a queda de José Bonifácio do governo. Os grandes traficantes de negros conluiados com os proprietários rurais prepararam a proscrição do estadista de tão larga visão” (p. 66, grifo nosso).
Aqui, é necessário, em nossa opinião, voltar à luta política anterior, entre os partidos que fizeram a Independência.
Pois, o conflito entre o partido dos Andradas – então no governo – e o grupo original da maçonaria (cujos principais líderes eram Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira, Januário da Cunha Barbosa, Domingos Alves Branco Muniz e Luís Pereira da Nóbrega de Sousa Coutinho) é, ainda, um dos episódios mais intrigantes – em vários sentidos – da Independência do Brasil.
Não se trata de que tenha sido pouco abordado. Pelo contrário: esse conflito deu origem a uma vasta gama de interpretações, que podemos resumir – ainda que seus autores, provavelmente, não concordem com essa redução de outras interpretações a variantes destas duas – aos que afirmam o papel central de José Bonifácio na revolução da Independência (como Oliveira Lima e Octávio Tarquínio de Souza), e àqueles que negam esse papel, em geral ressaltando o papel de Gonçalves Ledo como substituto.
[NOTA: O melhor exemplo, no século XIX, dessa última tendência, é Mello Moraes em “A Independência e o Império do Brasil”, Rio, 1877. Depois, na República Velha, Assis Cintra condensou as alegações contra José Bonifácio – e a favor de Ledo – em “O Homem da Independência”, 1921. Um texto mais moderno e interessante – na primeira tendência – é o de Emília Viotti da Costa, “José Bonifácio: mito e história”, in “Da Monarquia à República: Momentos Decisivos”, Unesp, 6ª ed., 1999, pp. 61-130).]
Depois de meses de tensão entre os dois partidos, no dia 30 de outubro de 1822, foi desencadeada o que alguns chamaram de “Bonifácia”, com a prisão de José Clemente Pereira, Januário da Cunha Barbosa, Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Nóbrega e outros líderes da maçonaria, depois deportados para a França. Gonçalves Ledo conseguiu, com a ajuda do cônsul da Suécia no Rio, asilar-se em Buenos Aires.
Todos – quatorze réus – foram julgados a 5-7 de julho de 1823. Todos, com exceção de Soares Lisboa, dono do “Correio do Rio de Janeiro”, foram absolvidos da acusação de fazer parte de “uma facção oculta e tenebrosa de furiosos demagogos e anarquistas” (portaria de José Bonifácio de 11/11/1822) e voltaram ao Brasil.
Seria um pequeno exílio, diante dos seis anos que os Andradas permaneceram no exterior, após a dissolução da Constituinte (12 de novembro de 1823), com sua prisão e deportação – também para a França.
Na aparência, essa comparação não é pertinente, e parece nada significar histórica e politicamente. Mas não é assim.
DISPUTA
Examinemos a questão sob o ângulo dos adversários dos Andradas.
Já em 14 de setembro de 1822 – sete dias após o Ipiranga – o grupo da maçonaria desfechou um ataque a José Bonifácio, durante a substituição deste por D. Pedro como grão-mestre. Saudando-o, o brigadeiro (isto é, general de brigada) Domingos Alves Branco Muniz Barreto – um dos mais ilustres maçons – condenou “o ciúme que se atiça contra a nossa franqueza e lealdade por aqueles que pretendem desvairar-vos do trilho que tendes seguido [que] vos quer fazer inúteis as nossas honrosas fadigas e a nossa vigilância. Não acrediteis que é por amor de vós; mas sim pelo bom sabor do despotismo que êles pretendem estabelecer, a coberto da vossa autoridade. Apartai-vos, digno grão-mestre, de homens coléricos e furiosos. Por mais cientes que eles sejam, nunca acham a razão e só propendem para o crime. Vós tendes sabedoria, prudência, comedimento e moderação; portanto não vos deixeis abandonar a malvados”.
A 28 de maio de 1822, quando se organizara o Grande Oriente do Brasil – tornando a maçonaria brasileira independente de suas congêneres de outros países -, José Bonifácio fora eleito grão-mestre. É verdade que ele próprio organizara uma sociedade que concorria com a maçonaria – – o Apostolado -, provavelmente por desconfiança do grupo de Ledo. Mas, a eleição de José Bonifácio para dirigente máximo do Grande Oriente marcava a aliança entre os Andradas e o grupo de Ledo e Clemente.
Três meses depois, a 20 de agosto, na ausência do grão-mestre José Bonifácio, esse grupo o destituiu, rebaixando-o a “grão-mestre adjunto”. É verdade que seu substituto era o próprio príncipe, que tomaria posse em setembro. Nesta mesma reunião, “Ledo propusera que se aclamasse o príncipe D. Pedro rei do Brasil, e Domingos Alves Branco Muniz Barreto que a aclamação fosse de imperador e não de rei” (cf. Octavio Tarquínio de Sousa, op. cit., vol. 1, 2ª ed., José Olympio, Rio, 1957, p. 222).
A descrição do que ocorreu logo depois da Independência – a divergência entre os Andradas e o grupo da maçonaria sobre o “juramento prévio” de aceitação da Constituição, que fosse elaborada pela Assembleia Constituinte (juramento que, segundo o último grupo, D. Pedro deveria realizar) – como o conflito entre um “partido democrático” e um partido que tendia ao absolutismo, é de todos os modos e sob todos os ângulos, completamente superficial. Ou, mais do que isso, errada.
A principal questão democrática dessa época era a própria questão nacional – isto é, a Independência. Nesse sentido, é absolutamente clara a mensagem de José Bonifácio que alcançou D. Pedro nas margens do Ipiranga (“Senhor o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha V. A. R. quanto antes e decida-se; porque irresoluções e medidas d’água morna, à vista desse contrário que não nos poupa, para nada servem e um momento perdido é uma desgraça”).
Ou seja, a ausência de democracia é uma direta consequência do jugo lusitano. A medida democrática mais decisiva é, portanto, a Independência (nas palavras de José Bonifácio: “Sem independência, não há para as nações nem Constituição, nem liberdade, nem pátria”).
Segundo, os integrantes do grupo da maçonaria (sobretudo José Clemente Pereira, que teve uma longa e bem sucedida trajetória política, mas o próprio Ledo, além de Januário Barbosa, para citar os principais), após sua absolvição conviveram muito bem com o regime da Constituição de 1824, inclusive no Segundo Reinado.
Terceiro, na outra questão democrática importante – o tráfico e a escravidão negreira – a posição dos Andrada estava anos-luz mais avançada que a posição de seus adversários de 1822.
Voltemos aos acontecimentos políticos.