CARLOS LOPES
A oposição dos Andradas à escravidão, que era, primeiro, uma questão humana, também, ao mesmo tempo, era algo que adquiria sentido dentro de um projeto nacional de desenvolvimento do país, que favorecia, já naquela época, a industrialização – evidentemente, industrialização nos limites técnicos então existentes
João Manuel Pereira da Silva, além de político do Partido Conservador – chegou a conselheiro imperial e senador – foi autor, entre outras obras, de uma “História da Fundação do Império Brasileiro”, em sete tomos, publicada entre 1864 e 1868.
Nessa obra, Pereira da Silva marca a agudização da luta política entre os Andradas e a maçonaria a partir da campanha pela convocação, antes da Independência, de uma Constituinte:
“Começou o periódico Revérbero [o jornal de Gonçalves Ledo e do padre Januário da Cunha Barbosa] a tratar desta questão importante, e a iniciar uma propaganda que tendesse a mudar o conselho de procuradores por uma assembleia legislativa, atribuindo a D. Pedro ideias liberais, e ao ministério de José Bonifácio a causa de se não realizarem elas com o seu necessário vigor e desenvolvimento, pelos desejos que nutria o ministério, de conservar todo o arbítrio e reprimir toda a oposição.
“Nos artigos que escrevia Ledo notavam-se talento particular de polêmica, instrução variada das doutrinas de liberdade política e de regime parlamentar, e estilo fluido, elegante e agradável, que atraía a atenção e excitava o interesse. Produzia assim o Revérbero imensa sensação, arrastava os espíritos, e agrupava-os em torno dos verdadeiros princípios e máximas do governo representativo. Incomodava tanto mais o ministério quanto unia a uma lógica tenaz e cerrada fórmulas moderadas e finas, à oposição decente contra os atos governativos uma dedicação decidida e extrema, uma afeição grata e sincera ao príncipe regente, que preconizava como o anjo tutelar do Brasil, e cujos sentimentos briosos e cavalheirescos e opiniões livres incessantemente encomiava” (cf. J.M. Pereira da Silva, op. cit., Tomo VI, Livro 11, Garnier, 1865, pp. 4-5).
Ao consultar a coleção (que está, hoje, digitalizada) do “Revérbero Constitucional Fluminense”, é forçoso concordar com Pereira da Silva.
Do mesmo modo, é o manifesto ao povo do Rio, escrito por Gonçalves Ledo após o Ipiranga e a volta de D. Pedro à capital:
“Cidadãos!
“A liberdade identificou-se com o terreno americano: a Natureza nos grita Independência; a Razão o insinua, a Justiça o determina, a Glória o pede; resistir é crime, hesitar é de covardes; somos homens, somos brasileiros.
“Independência ou Morte!
“Eis o grito de Honra, eis o brado nacional, que dos corações assoma aos lábios e rápido ressoa desde as margens do corpulento Prata, quase a tocar o gigantesco Amazonas. A impulsão está dada, a luta encetou-se, tremam os tiranos, a vitória é nossa.
“Coragem! Patriotismo! O grande Pedro nos defende: os destinos do Brasil são os seus destinos. Não consintamos que outras províncias mais do que nós se mostrem agradecidas.
“Eis um passo, e tudo está vencido. Aclamemos o digno herói, o magnânimo Pedro, nosso primeiro Imperador Constitucional. Este feito glorioso assombre a Europa, e, recontado por milhares de cidadãos em todos os climas do universo, leve à posteridade o festivo anúncio da Independência do Brasil.”
Porém, o mais notável na obra de Pereira da Silva, um empedernido escravagista, é, precisamente, o modo elogioso com que trata Gonçalves Ledo, ao contrário do modo como trata José Bonifácio – e seu irmão mais novo, Martim Francisco – retratados como autoritários, ditatoriais, persecutórios, inimigos das liberdades públicas.
[NOTA: Sobre a relação com o escravagismo de Pereira da Silva – nascido em uma das principais famílias, no Brasil de então, de comerciantes portugueses, o que quase sempre era sinônimo de traficantes de escravos -, se não bastassem os seus prolixos discursos, quando deputado, contra a Lei do Ventre Livre, restariam trechos de suas memórias, publicadas em 1896 (ou seja, já no período republicano). P. ex., diz ele sobre o período posterior à lei que proibiu o tráfico de escravos: “Executava-se com retidão a lei que secara a fonte principal e única da manutenção do cativeiro. Não se importando da África mais nenhum escravo, não nascendo mais nenhum que não fosse reputado livre, reduzidos ao cativeiro os pretos que existiam e que a morte devia arrebatar uns após outros, notava-se o porvir desassombrado da escravidão, que em poucos anos devia inteiramente desaparecer sem que grandes abalos prejudicassem os progressos da nação. (…) Convertidas em lei, os proprietários de escravos em suas fazendas timbravam em dar exemplo de exata obediência”. Porém, esses cidadãos modelares, tão respeitadores das leis, e que tanto contribuíam para o Brasil com a chibata no lombo dos seus “pretos”, tinham um problema, comenta ele, quase de passagem: “Na situação angustiada que a propaganda da emancipação dos escravos colocara a agricultura, que florescia somente com o trabalho dos cativos…”, etc. (cf. J. M. Pereira da Silva, Memórias do Meu Tempo, ed. Senado Federal, 2003, pp. 451 e 552).]
PROJETO
Isso não quer dizer, naturalmente, que tenha sido pouca a contribuição de Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira, Januário da Cunha Barbosa, e outros membros da maçonaria, para a Independência.
O que queremos aqui ressaltar é uma questão de caráter de classe, pois, a oposição dos Andradas à escravidão, que era, primeiro, uma questão humana (José Bonifácio escreveu: “Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume e a voz da cobiça, que veem homens correr lágrimas de outros homens sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura”), também, ao mesmo tempo, era algo que adquiria sentido dentro de um projeto nacional de desenvolvimento do país, que favorecia, já naquela época, a industrialização – evidentemente, industrialização nos limites técnicos então existentes (como, por exemplo, preconizara Alexander Hamilton para os EUA, em seu “Report on Manufactures”, apresentado ao Congresso norte-americano em 1791, portanto, mais de 30 anos antes da Independência do Brasil).
Ledo e Clemente não parecem perceber, em nenhum momento, a importância dessa questão – pelo menos não com a importância que realmente tinha. Ledo, em especial, mantém-se nos limites estritos do liberalismo da época. O que era pouco para as necessidades do país.
Ao localizar essa diferença entre os Andradas e seus adversários, torna-se menos inexplicável o conflito entre eles – assim como o destino posterior dos próprios Andradas, em um país onde a classe dominante passara a ser, incontestavelmente, a dos senhores de escravos.
Também, a partir daí, parece mais compreensível a influência, depois da Independência, do “partido português” (isto é, do partido dos traficantes de escravos), com a formação do “gabinete secreto” (o “Chalaça” & cia., com a marquesa de Santos, etc.) e os acontecimentos que levaram à explosão do sete de abril de 1831, com a abdicação do primeiro imperador.
[NOTA: Para os leitores interessados nos acontecimentos do período que vai de 1822 a 1831 (isto é, o primeiro reinado), que não abordaremos nesta série (exceto quando possa esclarecer algo sobre a Independência), o secretário particular de D. Pedro, Francisco Gomes da Silva, conhecido como o “Chalaça”, após sua demissão e saída do Brasil – debaixo da pressão pública, em 1830 – publicou um livro de memórias em que, ao pretender fazer sua própria defesa, produz um interessante panfleto do “partido português”; por exemplo, sobre a Assembleia Constituinte de 1823: “parecia querer-se começar a independência brasileira pela destruição do Brasil”; ele não cita os Andradas pelo nome, mas a referência é clara quando escreve sobre “planos adotados por certos homens de notórios princípios destruidores” para “roubar” os bens dos portugueses no Brasil; cf. “Memorias offerecidas a nação brasileira pelo Conselheiro Francisco Gomes da Silva”, L. Thompson, Londres, 1831, p. 47.]
Houve, inclusive, alegações de que José Clemente Pereira – que nascera em Portugal e somente chegara ao Brasil em 1815, com 28 anos de idade – tinha relações com o “partido português”. José Honório Rodrigues, no quinto volume de “Independência: revolução e contrarrevolução”, vai até mesmo mais longe:
“… tudo faz crer que ele [Clemente] persuadiu os portugueses, comerciantes e proprietários, que seria do interesse deles, senão a Independência, pelo menos a autonomia, com a liberdade comercial, os tribunais superiores, os privilégios do cidadão, tais quais existiam com o Reinado”.
Antes de José Honório Rodrigues, já falara disso Tristão de Alencar Araripe, em 1870, numa conferência depois reproduzida, em 1894, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Como Alencar Araripe, em geral, é um autor criterioso, que apresenta os fatos, mesmo quando sua opinião a respeito deles é discutível, citamos o que ele disse:
“A aceitação da causa do Brasil por parte de José Clemente foi também de máximo proveito para essa mesma causa. Homem ativo e enérgico, ele trabalhou com empenho pela ideia nacional, mas a proficuidade do seu concurso nasceu de outro motivo.
“Grande parte da população do Brasil em 1822 era de nascimento português; e quando agitou-se a questão da independência da nossa pátria, essa população dividiu-se: parte queria a independência da pátria americana, porque já considerava o Brasil idôneo para tratar da sua própria ventura; parte a impugnava, porque na estreiteza das suas ideias reputava crime o querer o Brasil a própria liberdade.
“Na parte da população portuguesa favorável à independência estavam os cargos públicos, a riqueza e a ilustração: José Clemente era alma e direção dessa importante massa.
“Aderindo ele à causa do Brasil não era um simples voto, que pronunciava-se por essa causa; era um partido poderoso, que por ela vinha combater. Daí pois mostra-se quão valioso foi o concurso desse atleta para a causa da independência. Ele não trazia simplesmente um nome, nem uma individualidade: trazia após si um partido e uma força considerável” (cf. Tristão Alencar Araripe, “Patriarcas da Independência Nacional”, RIHGB, tomo LVII, parte 1, pp. 175-176).
Ressaltemos que a conferência de Alencar Araripe tem o objetivo de retirar José Bonifácio do lugar único de “Patriarca da Independência”, com a sagração de mais dois “patriarcas”: D. Pedro I, e, exatamente, José Clemente Pereira.
Portanto, trata-se de um texto altamente favorável a Clemente Pereira, em que sua relação com os portugueses que residiam no Brasil é tratada como uma vantagem para o nosso país e um mérito de Clemente.
É possível, é até mesmo provável, que seja verdade. Mas, realmente, gostaríamos de mais provas a esse respeito. Infelizmente, não as encontramos nos autores que alegam essa relação, nem mesmo em José Honório Rodrigues. O fato de que Clemente nascera em Portugal é insuficiente, nos parece, para essa conclusão.
Porém, se aceita como premissa essa relação entre Clemente – apesar de toda a sua identificação com o Brasil – e os portugueses, seria mais fácil ajustar à sua figura histórica alguns acontecimentos, por exemplo, seu projeto, apresentado em 19 de maio de 1826, de proibir o tráfico de escravos em… 31 de dezembro de 1840, ou seja, 14 anos depois! (cf. Calógeras, “A Política Exterior do Império”, ed. cit, vol. 2, p. 495).
Realmente, Clemente Pereira não demonstrava desconforto com a escravidão. Nas palavras de um de seus apologistas (e, por sinal, dos melhores):
“Possuía José Clemente duas fazendas denominadas das Cruzes e Santa Eugenia, em Vassouras, onde tinha perto de 400 escravos. Não admitindo ele o concubinato dos servos, eram casados a maior parte deles. A cada mãe de sete crias, concedia ele a carta de alforria” (cf. Ernesto Senna, José Clemente Pereira, RIHGSP, vol. XII, 1907, p. 72).
CATIVEIRO
Essa incursão no relacionamento dos adversários de José Bonifácio com a escravidão tem apenas o sentido de caracterizá-los, mais precisamente, em termos de classe social.
Sobre Gonçalves Ledo, podemos apenas dizer que não se conhece um texto – ou um pronunciamento – sobre a escravidão que seja tão claro como aquele de José Bonifácio:
“É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que fomentamos entre os selvagens da África. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão dos nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda: é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território.
(…)
“Com efeito, senhores, nação nenhuma talvez pecou mais contra a humanidade do que a portuguesa, de que fazíamos outrora parte. Andou sempre devastando não só terras da África e da Ásia, como disse Camões, mas igualmente as do nosso país. Foram os portugueses os primeiros que, desde o tempo do infante D. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal de prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos. Ainda hoje perto de 40 mil criaturas humanas são anualmente arrancadas da África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportadas às nossas regiões, sem a menor esperança de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar toda vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos e os filhos de seus filhos para todo o sempre!
(…)
“Qual é a religião que temos, apesar da beleza e santidade do evangelho, que dizemos seguir? A nossa religião é pela maior parte um sistema de superstições e de abusos antissociais; o nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio e pela agricultura, e para formar, muitas vezes, das desgraçadas escravas um harém turco.
(…)
“O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o homem que conta com os jornais de seus escravos vive na indolência e a indolência traz todos os vícios após si.
(…)
“Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade” (cf. José Bonifácio, “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura”).
Nem mesmo Assis Cintra – apologista de Gonçalves Ledo que ataca José Bonifácio por ter comprado um escravo de Vasconcellos Drummond e por ter deixado, como herança, dois escravos à sua filha Narcisa – conseguiu apresentar um posicionamento de Ledo sobre a escravidão, muito menos algum que se compare ao do Andrada (cf. Assis Cintra, “O Homem da Independência”, ed. cit., pp. 183-189).
Nada disso apaga a ação de Ledo na Revolução da Independência. Apenas localiza, histórica e socialmente, seus limites.
Mas, voltemos aos acontecimentos políticos do ano de 1822.
RELATO
Em 14 de junho de 1841 – quase 19 anos após a Independência – em réplica a Antônio Carlos de Andrada, então deputado, o ministro da Guerra, José Clemente Pereira, fez um relato dos acontecimentos do dia 9 de janeiro de 1822 – o “Dia do Fico”.
Clemente Pereira, em 1822, era presidente do Senado da Câmara da Cidade do Rio de Janeiro – o correspondente à Câmara de Vereadores – e fora o orador que se dirigiu a D. Pedro para entregar o abaixo-assinado, pedindo que o então príncipe regente ficasse no Brasil. Em outubro do mesmo ano, Clemente fora preso, com os demais membros do grupo da maçonaria – com exceção de Ledo, refugiado em Buenos Aires.
Muitíssimo obrigada ao Hora do Povo e em especial a Carlos Lopes. Fantástico e esclarecedor o especial sobre os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil. Muito bom mesmo. Não sabia do papel importante da Revolução de 1817 na Independência do Brasil, até sabia um pouco, mas não tão quanto.
Parabéns e muito obrigada pela contribuição.
Edna Costa