CARLOS LOPES
Oliveira Lima aponta, com razão, que, mesmo antes da viagem de D. Pedro a São Paulo, na qual haveria o Grito do Ipiranga, a Independência já existia inclusive em documento oficial
Em 1841, a animosidade entre os Andradas e seus adversários de 1822, no mínimo, esmaecera. Os líderes de 19 anos antes, José Bonifácio e Gonçalves Ledo, já pertenciam à eternidade da História – o primeiro, falecido em 1838, na sua casa da Ilha de Paquetá; o segundo, retirado na sua fazenda de Sumidouro, no interior do Rio de Janeiro (faleceria em maio de 1847).
Naquela segunda-feira, 14 de junho de 1841, a discussão na Câmara era sobre o contingente militar terrestre a fixar no Rio Grande do Sul – a Guerra dos Farrapos já se arrastava havia seis anos – e sobre o desempenho do general João Paulo Barreto, comandante das tropas no Sul, que o governo demitira. Porém, antes de entrar nesses assuntos, o ministro da Guerra falou sobre outro:
O SR. MINISTRO DA GUERRA (José Clemente Pereira): … Talvez, Sr. presidente, devesse deixar sem resposta algumas observações que o nobre deputado por S. Paulo [Antonio Carlos de Andrada], que falou na última sessão, fez sobre o meu discurso; mas em dois pontos principais, em que tocou o nobre deputado, não posso deixar de fazer algumas observações.
O nobre deputado, por ocasião de uma declaração que eu fiz de ter tido a principal parte na representação para a convocação de uma assembleia no Brasil, disse que entendera que eu me referia ao dia 9 de Janeiro, conhecido pelo Dia do Fico; e que, a ser assim, queria reclamar, porque a glória da preferência neste caso pertencia a S. Paulo e não ao Rio de Janeiro.
O nobre deputado com muita razão desempenha o seu ofício de bom procurador dos paulistas, mas há de permitir-me que, como procurador dos fluminenses, eu chame a sua atenção sobre alguns fatos, dos quais se deduz que a prioridade, se prioridade houve, pertence aos fluminenses.
A mim me parece que na cooperação para a independência a glória é igual para todas as províncias; mas se é necessário que alguém tenha a prioridade, há de permitir-me o nobre deputado que o conteste, e que diga que ela pertence aos fluminenses. (Apoiados.)
O nobre deputado conhece, e não há dúvida, que a representação por parte da província do Rio de Janeiro teve lugar em 9 de Janeiro de 1822, e que a representação por parte da de S. Paulo teve lugar dias depois…
O SR. DEPUTADO ANDRADA MACHADO (Antônio Carlos): … [diz algumas palavras não ouvidas pela secretaria dos trabalhos.]
O SR. MINISTRO DA GUERRA: Perdoe-me; a representação [de S. Paulo] teve lugar dias depois de 9 de janeiro; é verdade que já nós esperávamos a deputação de S. Paulo e alguns preparativos se fizeram para recebê-la; mas o fato é que ela não pôde chegar aqui senão depois do dia 9… Mas o nobre deputado quer que a representação seja datada do dia da deliberação do governo de S. Paulo, e não do em que foi apresentada; pois bem, aceito a declaração do nobre deputado, e desejo que se escreva nos anais da história que o nobre deputado quer se conte a prioridade do dia em que se tomou a deliberação em cada uma das províncias. A de S. Paulo é marcada pelo nobre deputado no dia 3 de janeiro, porque foi quando o governo da província se dirigiu às municipalidades, participando-lhes a deliberação do governo, ou convidando-as para cooperarem…
O SR. DEPUTADO ANDRADA MACHADO: … [diz algumas palavras não ouvidas pela secretaria dos trabalhos.]
O SR. MINISTRO DA GUERRA: Pois bem, ainda mesmo como quer que seja, o nobre deputado há de ter lembrança de que em 22 de dezembro de 1821 saiu um comissário mandado do Rio de Janeiro ao governo de S. Paulo, convidando para cooperar para a ficada do príncipe regente; foi o Sr. Pedro Dias, hoje marquês de Quixeramobim. E no dia 20 saiu daqui para Minas outro comissário também por parte do Rio de Janeiro, encarregado de igual comissão, foi o Sr. Paulo Barbosa da Silva…
UM SR. DEPUTADO: Foi o Sr. cônego Januário.
O SR. MINISTRO DA GUERRA: Não, senhor, esse foi para a aclamação; estou bem certo nos fatos; foi o Sr. Paulo Barbosa. Em virtude destas enviaturas aconteceu que alguns povos de Minas mandaram as suas representações com data de dezembro (eu quero dar aos mineiros a parte da glória que lhes pertence). A vila de Barbacena enviou a sua representação datada de 27 de dezembro; a Câmara de Mariana enviou também a sua em data de 2 de janeiro. Mas no Rio de Janeiro foi este negócio tratado com muita antecipação, e convém que se dê o seu a seu dono. Devo declarar que os primeiros que se lembraram desta medida, ou ao menos que a fizeram sentir e levar a efeito, foram o Sr. José Mariano [de Azeredo Coutinho] e o Sr. José Joaquim da Rocha.
O SR. ANDRADA MACHADO (Antônio Carlos): É verdade.
O SR. MINISTRO DA GUERRA: E isto antes do dia 15 do mês de dezembro… isto creio que até anda impresso; e tanto que se me fez crime porque não fui dos primeiros a concordar com a medida como se me apresentava.
O Sr. José Mariano foi à minha casa, por ser então eu presidente do Senado da Câmara, comunicar-me a resolução em que se achavam de pedir ao príncipe regente do Brasil que quisesse ficar no Brasil porque assim convinha aos interesses do país.
Nessa ocasião eu disse que julgava de necessidade a ficada do príncipe, mas que não julgava prudente que o Rio de Janeiro fizesse a representação só por si, por que não havia a força necessária, muito mais existindo no Rio de Janeiro uma força portuguesa assaz forte, que, como o nobre deputado sabe por informações, até nos ameaçou com as armas.
Tratava-se de nomear então um governo, esse governo de três cabeças, governo que o Brasil não queria, e contra o qual eu me tinha pronunciado; e por isso foi-me objetado: ‘se o governo tem de nomear-se, o que há de fazer então o príncipe?’ A isto respondi: ‘enquanto se pede a cooperação das províncias imediatas, Minas e S. Paulo, pode o príncipe ir para Santa Cruz; logo que cheguem as representações, pede-se ao mesmo príncipe que se deixe ficar no Brasil’.
Estas minhas palavras serviram até, depois, para uma devassa por crime de republicano, na qual houvera quem fosse jurar que eu era tão republicano que tinha feito as observações que acabo de referir.
Mas o caso é que o Sr. José Mariano e o Sr. José Joaquim da Rocha acharam boas as minhas observações, e concordaram em que se deviam dirigir aos governos de S. Paulo e de Minas; e em consequência deste acordo partiram, para S. Paulo, como já disse, o Sr. marquês de Quixeramobim, e, para Minas, o Sr. Paulo Barbosa.
Ora, agora acresce mais que, tendo eu, como me convinha, tratado de saber do príncipe regente qual era a sua opinião a este respeito, porque corria a notícia de que ele queria ir para Portugal (o que depois reconheceu-se que era política sua, porque sempre teve vontade de ficar), dirigi-me logo depois da comunicação do Sr. José Mariano a [o palácio de] São Cristóvão, e Sua Alteza com efeito ainda reservou de mim sua verdadeira opinião; mas tomando consistência a opinião do povo fluminense, e estando eu decidido a cooperar para ela em todo o caso, procurei novamente o príncipe (e lembro-me bem) na véspera do dia de Natal, e falei-lhe na tribuna da capela imperial, dizendo a S. A. Real que o povo do Rio de Janeiro tratava de dirigir-lhe uma súplica no sentido que lhe havia participado dias antes, e que devia esperar igual representação de Minas e S. Paulo, porque era impossível que estas duas províncias não anuíssem às comunicações que lhe foram feitas pelo Rio de Janeiro; e Sua Alteza teve a bondade de responder-me que ficaria.
No dîa 26 de dezembro fui à casa do Sr. José Mariano, onde se achava o Sr. Rocha e o Sr. padre Frei Francisco de Sampaio, que foi quem redigiu a representação…
Creio que estas observações não são indiferentes para a história (apoiados), e fui dizer-lhes que a representação devia fazer-se, que estava disposto a cooperar para ela, e que deveria ter lugar no dia 9 de janeiro.
Tratou-se desde logo de dar a este ato o aparato mais majestoso possível, e na verdade creio que não será possível nos nossos dias tornar a haver um dia tão solene! (Numerosos apoiados.) Nele apresentaram-se sessenta e tantos cidadãos das primeiras classes do Rio de Janeiro, vestidos com o uniforme de capa e volta que então se usava: reuniu-se a eles o povo do Rio de Janeiro, com o maior entusiasmo e interesse, e isto no meio da grande oposição dos batalhões de Portugal, que chegaram a ameaçar-nos com o emprego da força!
Com estas informações o nobre deputado decidirá, decidirá também o público, e quem quiser ser juiz, quem deve ter a prioridade no ato de 9 de Janeiro. Talvez mesmo aconteça, que em nosso entusiasmo, sem nos havermos combinado, estivéssemos todos dispostos para o mesmo fim; mas eu hei de continuar a sustentar que a prioridade pertence ao Rio de Janeiro. O nobre deputado continuará a sustentar que pertence a S. Paulo, a questão será decidida pelos documentos oficiais que houverem a este respeito, mas, enquanto não se decide, nunca o Rio de Janeiro terá de ficar em segundo lugar (cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1841, Tomo I, pp. 528-530).
DISPUTA
Essa disputa, aparentemente bairrista, sobre a “prioridade” do Rio ou de São Paulo no Fico, era uma sombra (um resíduo, digamos assim) de outra disputa política, esta mais importante para o Brasil: aquela sobre o príncipe, depois imperador, entre os Andradas, de um lado, e o grupo da maçonaria, de outro.
Há uma omissão – provavelmente não intencional – no relato de José Clemente Pereira: no Dia do Fico (9 de janeiro de 1822), realmente, a deputação de São Paulo ainda não chegara ao Rio, mas as instruções políticas aos representantes paulistas, redigidas por José Bonifácio, já eram conhecidas na capital, pois foram citadas pelo próprio José Clemente Pereira, no discurso que pronunciou diante de D. Pedro.
Entremos, então, em uma questão tática, uma questão de política “atual” (naturalmente, de política atual daquela época).
No “Fico”, a revindicação brasileira é a de continuar em condições de igualdade com Portugal, como condição para manter a união com este último. Como no próprio discurso de José Clemente Pereira, nesse dia, para D. Pedro:
“A saída de Vossa Alteza Real dos Estados do Brasil será o fatal Decreto que sancione a independência deste Reino! Exige, portanto, a salvação da pátria que Vossa Alteza Real suspenda a sua ida, até nova determinação do soberano congresso.”
Depois de referir-se ao passado colonial (“[o Brasil] recorda sempre com horror os dias da sua escravidão recém-passada”), o discurso de Clemente Pereira aponta “o grito da opinião pública nesta província” e examina a situação política em outras províncias:
“Pernambuco, guardando as matérias primas da independência, que proclamou um dia, malograda por imatura, mas não extinta, quem duvida que a levantará de novo, se um centro próximo de união política a não prender?
“Minas, principiou por atribuir-se um poder deliberativo, que tem por fim examinar os decretos das Cortes soberanas, e negar obediência àqueles que julgar opostos aos seus interesses; já deu acessos militares; trata de alterar a lei dos dízimos; tem entrado, segundo dizem, no projeto de cunhar moeda – e que mais faria uma província que se tivesse proclamado independente?
“S. Paulo, sobejamente manifestou os sentimentos livres que possui, nas políticas instruções, que ditou aos seus ilustres deputados. Ela aí corre a expressá-los mais positivamente pela voz de uma deputação, que se apressa em apresentar a V. A. R. uma representação igual à deste povo!
“O Rio Grande de S. Pedro do Sul, vai significar a V. A. R. que vive possuído de sentimentos idênticos, pelo protesto desse honrado cidadão, que vedes incorporado a nós!”
A referência é ao coronel Manoel Carneiro da Silva e Fontoura, que, no Dia do Fico, representou o Rio Grande do Sul – e também discursou diante de D. Pedro.
O discurso de Clemente é longo – nos dias atuais seria considerado quase interminável – mas não era fácil a sua causa: fazer o herdeiro da Coroa enfrentar o governo da metrópole.
A justificativa encontrada mostra quão relativas eram as definições – quer dizer, alguns rótulos – ideológicos.
Como se pode ler nas cartas de D. Pedro a seu pai, ele – com poderoso estímulo dos homens da Independência – considera que D. João VI é prisioneiro dos liberais das Cortes. Por isso, não tem obrigação de obedecer a estas.
Numa delas, diz D. Pedro:
“… verá Vossa Majestade o amor que os brasileiros honrados lhes consagram à sua sagrada, e inviolável Pessoa, e ao Brasil, que a providência divina lhes deu em sorte livre, e que não quer ser escravo de lusos-espanhóis quais os infames déspotas (constitucionais in nomine) dessas facciosas, horrorosas, e pestíferas Cortes. (cf. carta de 19/06/1822 in “Cartas de D. Pedro, Príncipe Regente do Brasil a seu pai D. João VI, Rei de Portugal (1821-1822)”, Rothschild & Cia., S. Paulo, 1916, p. 103).
Assim, um príncipe “liberal” se choca com um parlamento “liberal”, porque este “aprisiona” um rei absolutista.
Na verdade, esses rótulos não têm real importância. A questão nacional – recolonização ou independência – é, desde o início, a verdadeira questão.
Oliveira Lima aponta, com razão, que, mesmo antes da viagem de D. Pedro a São Paulo, na qual haveria o Grito do Ipiranga, a Independência já existia inclusive em documento oficial, como a circular do ministro José Bonifácio ao corpo diplomático acreditado no Rio de Janeiro, datada de 14 de agosto de 1822, exatamente o dia em que o príncipe viajou para São Paulo.
Comenta o historiador pernambucano: “Nem este vocábulo [independência] falta no documento, embora atenuado pela ficção da união nominal sob um só soberano” (cf. Oliveira Lima, “O Movimento da Independência 1821-1822”, ed. Melhoramentos, 1922, p. 320).
E, realmente, diz, nessa circular, José Bonifácio:
“Tendo o Brasil, que se considera tão livre como o reino de Portugal, sacudido o jugo da sujeição e inferioridade com que o reino irmão o pretendia escravizar, e passando a proclamar solenemente a sua independência, e a exigir uma assembleia legislativa dentro do seu próprio território, com as mesmas atribuições que a de Lisboa, salva, porém, a devida e decorosa união com todas as partes da grande família portuguesa e debaixo de um só chefe supremo, o senhor D. João VI, ora oprimido em Lisboa por uma facção desorganizada e em estado de cativeiro, o que só bastava para que o Brasil não reconhecesse mais o Congresso de Lisboa nem as ordens do seu executivo, por serem forçadas e nulas por direito…”.